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Antônio Carlos Will Ludwig


Desfile de tropas do Exército no 7 de setembro.| Foto: Exército/divulgação

A nossa história, desde a época da Proclamação da República até os dias que correm, registra a presença marcante e persistente dos militares na política. De modo bem resumido, ela revela que até meados do século passado os fardados exerceram uma espécie de poder moderador. Nas décadas de sessenta a oitenta, por meio de um golpe, detiveram as rédeas do governo; e nesses últimos quatro anos, sob a liderança do partido verde oliva, atuaram para a vitória eleitoral de Bolsonaro. Eles assumiram milhares de cargos na administração federal e se envolveram com os bolsonaristas radicais desejosos da instauração de um condenável golpe capaz de impedir a posse do atual presidente da República.

Esses acontecimentos recentes provocaram reações contestatórias no âmbito da sociedade já a partir da primeira ação depredatória em Brasília e principalmente após os atos de vandalismo incidentes na Praça dos Três Poderes. As críticas recaíram na censurável anuência para permanecerem em frente aos quartéis, na execrável manifestação de uma reação colaborativa e na ajuda prestada no momento da invasão criminosa dos prédios públicos.

Parece claro que é incorreto e inviável a proposta de proibir terminantemente os militares de manifestar suas preferências políticas.

Com base em tais eventos emergiu a ideia relativa à imprescindibilidade de despolitizar as Forças Armadas. Quanto a ela, alguns eminentes personagens apresentaram suas posições: eliminar a atuação indevida dos militares na política; voltar ao que sempre fomos e deu certo; uma instituição de Estado e sem participar de política; veto efetivo a manifestações políticas tanto pelo pessoal da ativa como da reserva remunerada; se dedicar à sua tarefa principal, a defesa da pátria.

Não é preciso fazer qualquer esforço analítico para entender estas concepções porquanto são muito óbvias, expressam de modo claro e inequívoco o dissentimento de qualquer exteriorização política aos militares. Embora não declarados, tais juízos se assentam em dois pressupostos que precisam ser examinados. Primeiro, existem dois tipos específicos de cidadãos, o civil e o militar, porém, só ao civil é outorgado o direito da manifestação política. Segundo, é viável e correto que uma parcela de cidadãos, no caso os fardados, leve uma existência de maneira apartada da vida política.

Embora talvez se desconheçam as bases teóricas dessas concepções, elas estão em consonância com uma das duas mais relevantes teses da sociologia militar que é a da profissionalização por meio do temerário enclausuramento dos fardados na caserna. De modo sintético, ela estabelece a concessão de autonomia profissional aos militares pelos civis, a subordinação deles aos líderes políticos paisanos, a não intervenção dos mesmos na política e a não ingerência política nas Forças Armadas por parte dos civis.

Vale expor que desde há muito tempo essa diretriz vem orientando a vida da quase totalidade das Forças Armadas do mundo, especificamente as dos países regidos pela democracia. Entretanto, em seu desenrolar ela se mostrou totalmente inviável. Veja-se o que aconteceu no continente europeu. Na França, durante os anos sessenta do século passado emergiu a Organização do Exército Secreto cujos generais integrantes tentaram dar um golpe de Estado e fracassaram. Recentemente apareceram dois manifestos assinados por militares, um advertindo sobre o crescimento do caos no país com a provável convocação das Forças Armadas para controlá-lo, e outro com a acusação da incapacidade do governo para enfrentar o avanço do islamismo, da imigração e da violência interna. Nessa mesma década, na Grécia, foi deflagrado pelos fardados o Plano Prometheus, norteador da Ditadura dos Coronéis e destinado a salvar a nação de um suposto regime comunista, e em Portugal veio à tona a alcunhada Revolução dos Cravos na década de setenta.

Na América Latina, muitos golpes militares foram aplicados, tais como no Chile, na Argentina e no Brasil, onde, além os servidores uniformizados se intrometeram na política por meio do poder moderador e nos últimos quatro anos se envolveram em demasia com o bolsonarismo. Contemporaneamente, outras intervenções foram praticadas em Mianmar, Sudão, Mali e Chade que estavam tentando firmar o regime democrático. Em Israel, é marcante e muito duradoura a presença de um Estado Guarnição sustentado pelo poder castrense.

Quanto ao primeiro pressuposto apontado ele é extremamente frágil. A errônea insistência em continuar distinguindo, essencialmente, civis de militares só é viável por causa do uso de um raciocínio baseado nos princípios da identidade e da não contradição que não servem para explicara real existência dessa dualidade, mesmo porque o fenômeno da civilinização está apagando celeremente as diferenças entre ambos.

Por outro lado, é invalidado pela legislação em vigor, haja vista que nossa Carta Magna não atribui apenas aos civis o direito à livre expressão que inclui a manifestação política. Ressalte-se que há décadas ele foi outorgado aos citizens in uniform europeus. De resto, inexiste um consistente princípio ético justificador dessa restrição e nem procedimentos adequados para efetivá-la mesmo porque a sociedade civil, desacertadamente, não controla a educação formal e o processo de socialização dos fardados.

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O segundo também se revela inócuo, pois nenhuma corrente ideológica democrática defende a presença na vida em sociedade de indivíduos desligados da atividade política, uma vez que ela constitui uma experiência essencial do ser humano que não pode ser barrada. Outrossim, considerando que a política gira em torno do exercício do poder, os que dela se distanciam podem tornar menos ou mais difícil a ação daqueles que governam, bem como favorecer os vitoriosos aptos a assumir o governo. Isto significa que é impossível a existência de pessoas afastadas da vida política. Ademais, fica demonstrado que não é factível a existência de um comportamento neutro. Diga-se ainda, que nenhuma concepção filosófica ou científica admite a neutralidade da conduta porquanto é impossível sustentar sua aparição e permanência.

Frente a essas colocações, parece claro que é incorreto e inviável a proposta de proibir terminantemente os militares de manifestar suas preferências políticas. No entanto, revela-se necessário e acertado impedir que tais manifestações ocorram no âmbito da caserna, no horário do expediente e com a chancela e envolvimento de seus comandantes. Aliás, cabe ressaltar que não é conveniente que qualquer ambiente de trabalho, estatal ou privado, seja transformado em palco e arena para manifestações políticas uma vez que ele se destina à prática ocupacional.

A democracia disponibiliza a todos, inclusive aos militares, o espaço cívico da esfera pública para o exercício da cidadania ativa. Portanto, a despolitização não pode ser entendida como uma ação incidente na pessoa do militar e sim com como profissional no interior do quartel, a qual deve ser feita por meio de regulamentação apropriada.

Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutor em Educação pela USP e autor de “Democracia e Ensino Militar” (Cortez) e “A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania” (Pontes).


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