Artigo
Por
Charles C. W. Cooke – Gazeta do Povo
The National Review


Estátua de Shakespeare: autor também será censurado?| Foto: Pixabay

Começaram com Roald Dahl. Agora estão atrás de Ian Fleming. Posso perguntar quem será o próximo? William Shakespeare, talvez?

“Isso não vai acontecer!”, eu já até ouço você retrucar. Mas bem, por que não? Certamente, o trabalho de Shakespeare é extraordinariamente conhecido. Mas o trabalho de Dahl também é. E o de Fleming também. E, além disso, é justamente o próprio fato de que nossa sociedade está familiarizada com um determinado conjunto de obras que faz com que os totalitários queiram, em primeiro lugar, expurgar essas obras. Há um toque quase evangélico nos “leitores sensíveis” literários – em última instância, eles acreditam que estão salvando almas – e quanto mais amplo for o público leitor, mais almas serão salvas. Assim como Ian Fleming, Roald Dahl foi um dos alvos porque seus livros continuam populares. As pessoas os leem, se lembram deles, são sensibilizados por eles. Em um mundo em que as palavras são consideradas violência, isto não basta.

Por isso, volto a perguntar: Por que não começar a censurar Shakespeare então?

Ao contrário de Dahl e Fleming, Shakespeare já tem seus direitos autorais abertos, o que significa que qualquer pessoa pode publicar seu trabalho da forma que desejar, mais ou menos reescrito. Mas seria ingênuo supor que isto mudará alguma coisa no desejo dos obscurantistas. Em nenhum outro lugar a longa marcha através de nossas instituições teve mais sucesso do que nas artes e na educação, e se, como tanto na editora Puffin como na Ian Fleming Publications Ltd., os poderes determinarem que o catálogo de Shakespeare poderia muito bem contar com uma Edição Aprovada, essa Edição Aprovada logo se tornará a norma aplicada sem nenhuma piedade em nossas universidades, teatros e assim por diante. A última vez que tentaram fazer isso, falharam. Da próxima vez – quando toda a força do establishment esquerdista for colocado diretamente a favor dos vândalos – não falhará.

Diz-se frequentemente que Shakespeare tem um personagem para todos, e, infelizmente, isto também se aplica a nossos maravilhosos árbitros de gosto. O Caliban de “A Tempestade” é descrito na lista de personagens da peça como “um escravo selvagem e deformado”. No texto principal da peça, é descrito como um “bezerro da lua” e uma figura que “não foi honrada com uma forma humana”. Isso é aceitável? “Otelo” inclui todo tipo de calúnias raciais: Iago diz a Brabantio que “um velho carneiro negro / está enganando sua ovelha branca”, avisa que “você terá sua filha coberta com um cavalo bárbaro”, e propõe que há algo de “não natural” sobre a falta de interesse de Desdemona em casar com um homem “de seu próprio clima, tez e grau”, enquanto Brabantio acredita que sua filha deve ter sido “encantada” com “encantos sujos” para, “apesar da natureza”, ter consentido em “se apaixonar pelo que ela temia ver!”. Esta linguagem “sensível” é apropriada? E o que dizer de “O Mercador de Veneza”, que é construído em torno de um personagem judeu chamado Shylock, que não só manuseia seu dinheiro para empréstimo comercial com uso de termos desagradáveis, mas que é convertido ao cristianismo no final da peça? Será que o Caliban é mal compreendido pelo público moderno? Talvez. Será que as calúnias em “Otelo” serão incluídas de forma descritiva, como em “Huckleberry Finn”? Talvez. Shakespeare foi de fato solidário com Shylock, como seu inquérito seminal poderia sugerir: “Se você nos cortar, não sangramos”? É possível que sim. Alguma dessas coisas teve importância depois do começo do pânico moral? Não, não teve.

É possível encontrar material “não-inclusivo” em todo a obra canônica de Shakespeare. ‘Henrique IV’ está repleto de piadas sobre gordos que fazem com que aquela removida da Matilda de Dahl pareça positivamente inocente. Exemplos: “Quanto tempo faz, Jack, desde que você viu seu próprio joelho?”;  “Estas mentiras são como o pai que as gera; nojentas como uma montanha” e “Esta prensa-cama, este quebra-cama, esta enorme colina de carne”.

Visto de uma perspectiva particular, ‘Macbeth’ reforça o estereótipo misógino de que por trás de cada homem culpado, há uma mulher (neste caso, não só Lady Macbeth, a “rainha-feiticeira”, mas as três bruxas também) que o manipulou para realizar seus esquemas covardes. ‘Ricardo III’ reescreve a história da Inglaterra para reforçar uma caricatura “capaz” de malevolência. ‘Júlio César’ ressalta e justifica a violência política. E se eu continuar, a lista vai ficar imensa.

Se isso tudo lhe parece bastante ridículo, fique certo de que concordo de todo coração. Eu simplesmente faço esta pergunta na esperança de que me digam onde está o limite. Se formos considerar o que nossos autoproclamados “leitores sensíveis” apontam, não posso discernir nenhuma razão básica para que Shakespeare seja poupado do tratamento que tem sido administrado a Roald Dahl e Ian Fleming. A nova versão de “Os pestes”, de Dahl, remove uma referência a um “queixo duplo”; a nova edição de “James e o pêssego gigante” muda “um daqueles rostos flácidos brancos, como se tivessem sido cozidos” para “um rosto que parecia um grande repolho cozido”; e a palavra “gordo” foi expurgada de cada um de seus livros. Por que, me digam, isso está além do shakespeariano “saco de manto recheado de tripas”?

O mesmo vale para a raça. Todas as referências de Dahl a “preto” e “branco” foram removidas – o manto de uma das personagens não é mais “preto”, e os personagens não ficam mais “brancos de medo” – enquanto muitas das descrições arcaicas das minorias de Ian Fleming foram eliminadas. Shakespeare é de alguma forma diferente? Em “Otelo”, o personagem que dá título ao livro é obcecado pela pele branca de sua esposa (“Não colocarei uma cicatriz naquela pele mais branca do que a neve”) e conscientemente associa seu próprio comportamento assassino à escuridão (“Levanta-te, vingança negra, do inferno vazio!”). Devemos acreditar que estas ideias destroem o prazer dos leitores de Dahl e Fleming, mas não de Shakespeare? E, se sim, por quê?

Essa, como alguém famoso uma vez escreveu, é a questão.
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