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Por
Rafael Salvi – Gazeta do Povo


Proclamação da República (1893), óleo sobre tela de Benedito Calixto (1853-1927).| Foto: Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo

A convulsão política pela qual passa o Brasil atualmente, e cujo último capítulo presenciamos no último 8 de janeiro, é reflexo de uma crise muito mais profunda e que precisa ser vista além dos reveses que se sucedem no noticiário.

Foi esse o esforço empreendido há não muito tempo pelo jurista e cientista político José Pedro Galvão de Sousa, fundador da Faculdade Paulista de Direito, diante de outra crise (a de 1964) em seu livro ‘Raízes históricas da crise política brasileira’ — publicado em 1965, mas com a reunião de artigos escritos antes do início regime militar.

Creio que não seja exagero dizer, mesmo sem análise acurada, que a crise política de hoje reflete a de 1964. Basta analisar os lados da disputa atual: uns à custa de defender a democracia contra um possível retorno da ditadura militar atropelam as garantias constitucionais; outros, temendo a subversão e uma ditadura de esquerda clamam por uma virada de mesa que coloque o país em ordem.

Chamar um testemunho da crise política de então (e sem que tivesse o tempo de fazer o famigerado juízo contra ou favor), parece-me algo bastante sensato se quisermos compreender o Brasil de hoje. Também é uma oportunidade de conhecermos um pouco do pensamento conservador nacional, que recentemente anda bastante sufocado por sua vertente anglo-saxã, e que precisa ser resgatado se quisermos abandonar nosso complexo de vira-latas.

“Apriorismo político”
Galvão de Sousa começa o livro com a sola na porta ao afirmar que o grande culpado pelos males políticos do Brasil é o chamado “apriorismo político” e que a mudança da monarquia para a república foi a responsável por consolidar esse vício na história nacional.

Mas calma. Isso não significa que vamos todos “apoiar a monarquia” e nosso problema estará resolvido. Na verdade, essa pressa em apoiar esquemas abstratos sem levar em conta o contexto histórico é justamente o erro que o autor chama de “um dos nossos grandes males”.

O raciocínio apriorístico em matéria de política é aquele “que desdenha da realidade e dos conhecimentos da história para construir sistemas tão somente em princípios jurídicos”.

Foi assim que, das reformas necessárias no final do período imperial, optamos por uma mudança radical em todo o aparato político, como se tudo estivesse errado. Passa-se portanto da monarquia à república; do Estado unitário ao Estado federal; do parlamentarismo ao presidencialismo. Tudo de uma só vez.

Isso não poderia resultar noutra coisa senão uma instabilidade política-social enorme: na época em que o autor escrevia o livro já contávamos com 4 constituições (logo viria uma quinta) contra apenas uma da monarquia, passando pelo varguismo e pela “república da espada”.

Mas vejamos o que o autor aponta como consequência das três principais mudanças e o que o “apriorismo” tem a ver com isso.

Para que ser uma exceção?

República— O Brasil era uma exceção na América. E isso não é necessariamente algo ruim. A monarquia de fato era de fato uma exceção, mas estava ligada à continuidade histórica nacional. A colonização portuguesa tinha como diferencial, além da língua: a fusão das raças, a unidade territorial (ao contrário do sistema de vice-reinos espanhol e de “colônias” dos futuros Estados Unidos), a presença da Coroa e a elevação de status do Brasil para Reino e do Rio de Janeiro como capital do Império.

Já o republicanismo advinha das ideias da Revolução Francesa, das instituições americanas e da filosofia positivista de Augusto Comte, encampada pelo exército (instituição pivô da Proclamação da República).

Entre as consequências desse transplante exógeno, o poder pessoal do monarca passou a ser exercido pelo Presidente da República (e Lula e Bolsonaro estão aí para confirmar ajudar na tese — mas o leitor certamente lembrará outros).

A primeira constituição republicana tinha como grande modelo “a Constituição dos Estados Unidos. Sobre o arcabouço do tipo presidencial e federativo justapuseram os constituintes princípios colhidos, aqui e acolá, no direito público de outros países, principalmente dos publicistas franceses”, aponta o autor, citando Alberto Torres, um entusiasta republicano arrependido. A Constituição, se bem redigida, deveria ser uma lei orgânica, refletindo a “constituição” do “organismo político” do país.

Do republicanismo americano, importaram ainda os dois conceitos que padecem dos mesmo vício apriorístico: a Federação e o presidencialismo.

Federação — No período de independência dos EUA, as chamadas 13 colônias gozavam de bastante autonomia. Durante as discussões para a formalização da Constituição Americana, era bastante natural que cada ente da federação discutisse que poderes seriam outorgados para a União e quais ficariam reservados para si.

A organização territorial brasileira foi, ao contrário, desde início um esforço vindo do governo central. Se isso, por um lado, sufocava a iniciativa de províncias mais desenvolvidas (e que lutavam por maior descentralização estatal), por outro, livrava a população das áreas mais ermas da ausência do Estado (creio que uma pesquisa sobre a relação entre a implantação do sistema federativo e o fenômeno do cangaço daria bons frutos).

Para Galvão de Sousa, a sedução pelas “fórmulas estrangeiras” fez os nossos bacharéis ideólogos confundir o federalismo “enquanto princípio de filosofia política e a mesma ideia enquanto expressão de uma forma de Estado”. Em outras palavras: o princípio do federalismo deriva da ideia da subsidiariedade, mas disso não decorre que a forma estatal específica norte-americana poderia ser aplicada universalmente.

Para o autor, a solução para o problema da descentralização teria sido resolvido com uma “nova divisão administrativa e de uma revisão dos limites entre as províncias […]. Reforma fácil de executar num Estado unitário”, como era o caso brasileiro. Com isso, a questão “do princípio de aglutinação social, com resguardo das liberdades”, cara aos advogados da descentralização teria sido contentada. Com a escolha da Federação, ficaram apenas com a “teoria” do Estado federal.

A centralização ou a descentralização não podem ser vistos como fins em si mesmos, mas são meios pelo qual o Estado deve buscar uma organização mais próxima do ideal. É por isso que as discussões sobre o federalismo e a repartição de competências são importantíssimas. O grande problema no Brasil foi que o “apriorismo” fez implantar no Brasil a Federação sem que fossem levadas em conta as peculiaridades históricas.

Rui Barbosa, outro grande defensor da República, já em 1890 reclamava que os constituintes “puseram timbre em nos dotar de uma Constituição mais adiantada, mais liberal, mais descentralista, mais tudo que a americana, não havendo liberalismo, nem democracia, nem federação que lhes bastasse”.

O próprio Rui lamentava mais tarde que o regime federativo em vez de garantir o “governo dos Estados por si mesmos” levou à “tiranização dos Estados pelos governadores”.

Presidencialismo – O sistema parlamentar iniciou-se na Inglaterra. Ali, segundo o autor, foram encontradas as condições propícias para o seu bom funcionamento: uma opinião pública organizada, partidos políticos de caráter representativo das correntes de opinião, isenção do chefe de Estado nas disputas políticas e a própria tendência ao povo inglês para o fair play.

Essas características não existiam nas nações latinas, e o exemplo do Chile do início do século dava sinais claros que o sistema parlamentar não se adaptaria bem no Brasil.

Contudo, não foi isso que aconteceu. Nossa constituição monárquica teve como fundo de inspiração as mesmas ideias que animaram a chamada Monarquia de Julho na França. Em que ao lado dos três poderes clássicos, acrescentava-se o poder neutro na pessoa do chefe de Estado. Foi daí que surgiu a ideia de Poder Moderador, que volta e meia ressurge nas discussões políticas.

Para o autor, longe de ser uma traição à ideia original, a ideia de um Poder Moderador atuante com fins de garantir o equilíbrio político do País foi “a válvula de escape pela qual ficamos livres da anarquia parlamentar sem cair nos abusos do poder discricionário”. Nesse sentido, os constituintes conseguiram copiar o parlamentarismo monárquico à inglesa, porém unindo-o à nossa tradição política do “poder pessoal”.

Com a república, copiou-se o sistema presidencialista americano a priori, e já em 1961 com a renúncia de Jânio Quadros, uma manobra do Congresso retomava o parlamentarismo no Brasil para tentar salvaguardar a política, e os políticos… Sabemos já da instabilidade política dos anos que antecederam o regime de 1964.

Galvão de Sousa aponta que na ocasião “uma regulamentação que impedisse que a política exterior ficasse à mercê do arbítrio presidencial” e “uma eficácia maior ao Conselho de Segurança Nacional” teriam sido melhor remédio para a crise. Optou-se, como costuma acontecer na política nacional, pelas palavras mágicas “parlamentarismo” e “presidencialismo”, temperadas com o famoso “oportunismo” que virou marca registrada da política profissional.

Lembremos que, recentemente, a mudança de regime de presidencialismo para parlamentarismo entrou em pauta quando do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e do entrechoque entre o ex-presidente da Câmara de Deputados Rodrigo Maia e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Crises e soluções

O livro traz ainda um bom levantamento histórico tanto das questões constitucionais brasileiras e do direito privado, como das diferenças históricas do Brasil em relação à América Latina.

Para isso, o autor contrapõe o direito histórico ao direito abstrato — que foi o grande inspirador das constituições imbuídas do espírito da Revolução Francesa. Note que as democracias mais estáveis, Estados Unidos e Inglaterra, não tiveram suas Cartas Magnas elaboradas dessa maneira, o mesmo não pode ser dito do Brasil, da América Latina, e mesmo da França, que deve estar em sua 5ª república, se não perdi a conta.

Afirma o autor: “A instabilidade política reinante nestas nações decorre, em grande parte, do conflito entre um direito constitucional abstratamente elaborado e o direito histórico permanentemente transgredido. Daí a legalidade espúria, sem foros de legitimidade nacional, ou, como se diz na França, a oposição entre o ‘país legal’ e o ‘país real’ [essa discussão existe no país até hoje]”.

A questão do direito abstrato que já era marca da própria Constituição Imperial, embora salvaguardada pela preservação da instituição monárquica, acabou por predominar na república e o distanciamento com as raízes portuguesas só aumentou: “Quando veio a república, a consciência do nosso direito histórico já estava amortecida. Iniciara-se o fenômeno do desenraizamento das elites.”

Embora o direito abstrato tenha sido o grande animador das constituições latinas, em relação ao direito privado, ao menos em nosso País, não sofremos do mesmo problema (pelo menos até o momento em que o autor escrevia o texto – hoje com o ativismo judicial e com a interferência cada vez maior do Estado na esfera privada esse cenário mudou bastante, e o tema mereceria melhor atualização).

No Direito Civil a situação foi diferente. Embora passível de críticas e necessitado de reformas, sua elaboração foi efetuada dentro das formas estabelecidas desde as Ordenações do Reino.

O direito civil encontrou, no Braisl, maior continuidade histórica e mudanças mais orgânicas. Nesse sentido, o trabalho do jurista brasileiro Teixeira de Freitas foi valiosíssimo ao publicar a Consolidação das Leis Civis em 1858, fazendo um hercúleo esforço de recenseamento sobre o tema.

O autor reputa o fato de o povo brasileiro sempre ter conseguido viver em relativa estabilidade apesar das convulsões políticas muito em conta da estabilidade do direito privado. Alertava, porém, desde aquela época que as recentes linhas revolucionárias estavam subvertendo os códigos para que este apoiasse a alteração da ordem social querida pelas minorias revolucionárias. De fato, essa agenda avançou muito.

Na comparação da história do Brasil e de seus vizinhos hispânicos, releva os feitos do povo brasileiro quando seguia a tradição portuguesa: “a monarquia pôs a salvo o Brasil, na época da independência, de um traumatismo que lhe teria sido fatal,  assegurou-lhe a unidade territorial, evitou as crises tão frequentes no regime parlamentar e im­pediu a formação do caudilhismo. Num confronto do itinerário político do Brasil com a marcha tumultuária seguida pelos povos irmãos do conti­nente,  aí está a nota diferencial por excelência. Veio a república, e tudo igualou, suscitando, entre nós, a mesma crise constitucional desses povos: instabilidade política, comoções eleitorais, golpes e revoluções, demagogia e caudilhismo”, resume ele.

Embora soe um panegírico, é difícil não dar alguma razão ao autor quando colocamos as histórias dos povos latino-americanos lado a lado. O livro traz, por fim, um panorama do que foram as crises políticas brasileiras e, portanto, dá boas indicações do que podemos fazer para sair da crise presente.

É claro que o trabalho não é nenhum pouco fácil. Os portugueses que aqui vieram desde a época da colônia trouxeram suas formas de vida, adaptando-as às necessidades locais. Quando de sua independência, o Brasil já era uma nação. Garantir uma continuidade, acrescentadas às reformas necessárias era o caminho certo para o Brasil seguir. Infelizmente, a elite brasileira resolvia imitar a potência estrangeira do momento, seja ela França, Inglaterra ou Estados Unidos. E segue nisso até hoje.

Conhecer e reconhecer a importância das instituições portuguesas transplantadas para o Brasil e, a partir daí, retomar o direito histórico com as reformas necessárias para o presente, é a essa lição que fica do livro de José Pedro Galvão de Souza, e o desafio que temos em mãos.


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