Editorial
Por
Gazeta do Povo

Dinheiro / Real – 25-05-2017 – O Real é a moeda corrente oficial da República Federativa do Brasil. A cédula de um real deixou de ser produzida, entretanto continua em circulação alguns exemplares. As demais cédulas de real continuaram sendo produzidas normalmente pela Casa da Moeda. Entre elas, as notas de: 2,5,10,20,50 e 100.


Projeções para a inflação de 2023 têm subido há várias semanas, segundo o Boletim Focus, do Banco Central.| Foto: Marcelo Andrade/arquivo / Gazeta do Povo

Com o início do terceiro governo Lula, o problema da inflação voltou às discussões públicas. O presidente, antes mesmo de assumir, vinha assacando críticas ácidas contra a taxa de juros e o teto de gastos públicos imposto por lei aprovada no governo de Michel Temer. Após assumir a Presidência, Lula não arrefeceu suas críticas; pelo contrário, ampliou os ataques ao presidente do Banco Central (BC) quando o Conselho de Política Monetária (Copom) manteve a taxa básica de juros, a Selic, em 13,75% ao ano diante de inflação prevista na faixa dos 6%.

Para sustentar suas críticas, Lula usa um argumento que, aos olhos dos leigos e de boa parte da população, parece nobre e a favor dos pobres, numa atitude para tentar mostrar ser ele o único defensor das famílias de baixa renda e daqueles excluídos do bem-estar social. A conexão entre o argumento – evidentemente nobre e humanitário – e a proposta de baixar juros na marra e estourar o teto de gastos é, porém, falsa e pode agir para explodir a inflação e massacrar financeiramente justamente os pobres e os excluídos que Lula diz defender. Embora seja fartamente debatida e analisada nos meios de imprensa, a inflação revisita os países sempre que alguma agressão à lógica econômica exacerba as causas inflacionárias por decorrência de medidas populistas ou teoricamente ilógicas.

A conexão entre a defesa dos pobres e a proposta de baixar juros na marra e estourar o teto de gastos é falsa e pode agir para explodir a inflação e massacrar financeiramente justamente os pobres e os excluídos que Lula diz defender

A inflação, entendida como aumento dos preços, é doença que tem múltiplas causas e padece de uma situação dramática: muitas vezes, duas ou três variáveis que, sozinhas, não produzem efeitos elevadores de preços, quando ocorrem simultaneamente de forma combinada, fazem a inflação explodir com todos os seus efeitos maléficos sobre a sociedade em geral. Por exemplo, quando Lula diz que não vai respeitar o teto de gastos públicos enquanto houver pobres e miseráveis no Brasil, e propõe a revogação da lei que definiu tal teto (como efetivamente ocorreu na PEC fura-teto), ele não leva em conta vários aspectos e riscos, especialmente as circunstâncias em que os gastos excessivos e os déficits fiscais vão ocorrer. Uma coisa é o governo elevar déficits em um país que não tenha histórico de déficits e cuja dívida pública é inexistente ou muito baixa. Outra coisa bem diferente, e muito perigosa, é aumentar os gastos e estourar o rombo fiscal quando a dívida pública bruta é alta e já está no teto considerável limítrofe para as condições econômicas do país.

A discussão lógica e tecnicamente eficiente sobre o problema da inflação – que é um dos temas mais complexos da ciência econômica – exige conhecimento teórico, domínio da história da inflação e, principalmente, entendimento dos efeitos de cada uma das várias causas que provocam esse mal econômico. Um dos exemplos é o próprio caso brasileiro, pelo menos em quatro momentos significativos de sua história, quando a inflação atingiu níveis elevados, inibiu o crescimento econômico e causou mais pobreza e desigualdade de renda. Nunca é demais reforçar que dois dos grandes males sociais que a inflação provoca são o crescimento da pobreza e aumento da desigualdade de renda.

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Os quatro momentos importantes em que a inflação se tornou a principal doença econômica perpassaram os anos 1964, 1974, 1984, 1994 e 2014; se o governo Lula seguir em sua lógica de ignorar as causas do processo inflacionário, o problema pode se repetir em 2024, perpetuando a escrita (rompida apenas em 2004) de uma crise inflacionária a cada dez anos, graças à repetição sistemática do histórico de má gestão macroeconômica, e jogando a nação de novo na mesma vala de outrora. Além disso, um mínimo de bom senso deveria levar os governantes a prestar atenção na trajetória de outros países (sobretudo na América Latina) que vêm sendo duramente atingidos pela inflação e empobrecendo sua população, como agora mesmo está ocorrendo com a Argentina.

Outro aspecto diz respeito às críticas ásperas direcionadas ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, que só não encontraram terreno fértil para piorar de vez o clima e gerar sinais de crise graças a dois fatores: primeiro, o presidente e a diretoria do BC têm mandato fixo de quatro anos nos termos da lei que estabeleceu a autonomia do órgão (o mandato do presidente do BC termina no fim de 2024, portanto, dois anos após o início do atual mandato de Lula); segundo, o presidente do BC e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não seguiram na linha beligerante de Lula, seja pela falta de disposição de ambos para exasperar o conflito verbal, seja porque acreditam que Lula está desempenhando seu papel de populista e poderia não seguir a linha de irresponsabilidade fiscal e monetária que ele mesmo anuncia.

Um mínimo de bom senso deveria levar os governantes a prestar atenção na trajetória de outros países que vêm sendo duramente atingidos pela inflação e empobrecendo sua população, como agora mesmo está ocorrendo com a Argentina

Os intrincados aspectos da inflação e as teorias publicadas nos últimos 200 anos a respeito do processo inflacionário, numa tentativa de compreender a experiência mundial a esse respeito, são de escasso domínio público, o que abre amplo leque de opções para discursos, propostas e medidas erradas e nocivas quanto ao enfrentamento do mal inflacionário, uma doença crônica que retorna sempre que medidas erradas são cometidas. As crenças erradas a respeito prejudicam o enfrentamento da inflação e a busca de crescimento econômico consistente. Por coincidência, o intelectual que mais empreendeu uma cruzada contra a ignorância e a demagogia sobre o problema inflacionário foi o economista Roberto Campos – avô do atual presidente do Banco Central –, especialmente quando foi ministro do Planejamento de 1964 a 1967, no governo Castello Branco.

Naquele fim de governo João Goulart, o Brasil tinha o desafio de enfrentar uma inflação que castigava o país justamente pelo populismo fiscal que vinha de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e do próprio Goulart, período em que o Brasil fez exatamente o que Lula pensa fazer agora: emitir moeda à vontade sem considerar os efeitos negativos que isso pode ter sobre a inflação. Roberto Campos, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1991, alertava para a compreensão errada sobre as causas da inflação. Para ele, os políticos e boa parte da população veem a inflação como o processo de remarcação de preços, e passam a culpar os empresários e produtores como malvados, ao ponto de haver perseguição e prisão de empresários, como ocorreu em 1986 com o famigerado Plano Cruzado, do presidente José Sarney, liderado pelo ministro da Fazenda, Dilson Funaro, um neófito em economia. De outro lado estão aqueles que entendem a inflação como a criação de moeda em níveis que superam a expansão monetária compatível com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), e descobrem que o culpado pela inflação é o governo.

O Poder Executivo é a entidade jurídica encarregada de executar o orçamento fiscal, arrecadar tributos e administrar os gastos do governo; se ele manda no Banco Central como mera autarquia sob o comando do presidente da República e do ministro da Fazenda, a gestão do estoque de moeda em circulação e a expansão monetária são obras do governo. Logo, sendo a inflação a expansão monetária da qual a remarcação de preços é mera consequência, o culpado pela inflação é o governo. A compreensão correta do problema e a identificação das causas e seus autores são condições necessárias para o enfrentamento desse mal tão presente na vida das nações.

Se a inflação voltar por força de medidas populistas e de irresponsabilidade macroeconômica, o país seguirá em sua triste sina de perder décadas de crescimento pífio

Não é razoável supor que um homem alçado ao terceiro mandato na Presidência da República de um país do tamanho do Brasil não tenha apreendido pelos menos os rudimentos teóricos e os efeitos práticos de medidas de política econômica. Ou é isso ou se trata de imensa irresponsabilidade sair pregando que não quer saber de teto de gastos nem de uso da taxa de juros para combater a inflação. O argumento de que se deve fazer o possível para reduzir a pobreza é aceitável, porém, desde que preservadas as condições para o crescimento econômico e o desenvolvimento social de forma sustentável, sem o que não se reduz a pobreza nem a miséria. Pelo contrário: inflação inibe o crescimento, gera desemprego, reduz o poder de compra dos salários, cria pobreza, miséria e desigualdade de renda.

No Brasil, os historiadores econômicos já produziram farto material demonstrando que a convivência de décadas com a inflação e o baixo crescimento responde, entre outras causas, pela pobreza e pela desigualdade de renda. É assim que o Brasil tem sido e, se a inflação voltar por força de medidas populistas e de irresponsabilidade macroeconômica, o país seguirá em sua triste sina de perder décadas de crescimento pífio. Não se trata de buscar o equilíbrio fiscal a qualquer custo e em qualquer circunstância, mas sim de entender em que quadro geral da economia brasileira estão sendo analisados os gastos públicos, déficits fiscais, taxa de juros e taxa de inflação, como caminho para adoção das medidas eficazes diante dos problemas econômicos e suas causas.

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