Atitudes simplistas e maniqueístas do governo ante o desafio complexo do trabalho por aplicativos prejudicam os esforços para encontrar uma regulação justa e eficiente para todos
Por Notas & Informações
Toda nova tecnologia traz novas oportunidades, riscos e desafios. Na Quarta Revolução Industrial, com seus paradigmas disruptivos de interconectividade e automação, todos eles são abundantes. Em particular, a regulação da chamada economia “gig”, em que serviços pontuais e temporários são contratados através de plataformas digitais, tem sido objeto de debate em todo o mundo.
Os benefícios para os consumidores são evidentes. Ao toque de um botão, qualquer um pode fazer um traslado, receber ou enviar uma encomenda ou contratar os serviços de uma faxineira, um contador ou um designer gráfico. Para os fornecedores de serviços, a intermediação das plataformas com a demanda reduz muito o tempo perdido. Muitos valorizam a autonomia e a flexibilidade.
No modelo-padrão, os trabalhadores são considerados autônomos. Os críticos acusam as plataformas de explorar o trabalho desses freelancers, impondo obrigações, como o uso de uniformes ou metas de produtividade, mas sem os encargos empregatícios, como aposentadoria, licenças remuneradas ou seguro-saúde ou desemprego. Em outras palavras, trata-se de uma precarização do trabalho.
Como solução, em geral apontam que os trabalhadores deveriam ser equiparados a empregados. Mas isso teria seus ônus. Muitos trabalhadores perderiam a liberdade e a flexibilidade que valorizam, como, por exemplo, trabalhar com múltiplas plataformas ao mesmo tempo ou trabalhar meio período. As plataformas teriam de reorganizar seu modelo de negócios. Dependendo da legislação, os preços para os consumidores poderiam subir demais; e os ganhos para os trabalhadores, diminuir demais, eventualmente inviabilizando o negócio para todos.
Há outras opções, como normatizar uma categoria intermediária entre o empregado-padrão e o autônomo-padrão, criar mecanismos de negociação coletiva similares aos sindicatos ou estabelecer um sistema de horas para determinar se o trabalhador é empregado ou autônomo. Todas essas opções têm seus benefícios – mas também seus custos.
É difícil negar que o status quo favorece os consumidores e as plataformas em detrimento dos trabalhadores. Mas identificar o problema é muito mais fácil do que encontrar soluções. Assim tem sido no mundo inteiro e no Brasil não é diferente. Por isso mesmo, a preocupação do governo em oferecer soluções é bem-vinda. Mas a maneira simplista, prepotente e maniqueísta com que as tem proposto é lamentável e contraproducente.
Recentemente, o presidente Lula da Silva comparou a economia gig a um “regime de escravos”: “As empresas de aplicativo exploram os trabalhadores como jamais em outro momento da história”. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, desdenhou: “Se a plataforma Uber for embora do Brasil é problema da Uber, não nosso”. Não, senhor ministro, isso seria um problema para os milhares de usuários e trabalhadores que contam com plataformas como a Uber para facilitar suas atividades e gerar renda. A sugestão caricata de Marinho de que os Correios poderiam substituir a Uber, provendo tecnologias que quebram cabeças no Vale do Silício, só expõe a leviandade com que a questão tem sido tratada.
Problemas novos e complexos exigem soluções novas e complexas. A maneira com que o governo trata do problema novo e complexo da economia digital ecoa a maneira com que o governo Bolsonaro tratava de outro problema novo e complexo: as mudanças climáticas. É a mesma arrogância, o mesmo reducionismo, o mesmo recurso a paradigmas forjados no século passado.
Uma arquitetura equilibrada do trabalho por aplicativos exigirá intensos debates e negociações entre as partes envolvidas e um trabalho cuidadoso do poder público para intermediar e regular essas relações. Todo esse processo depende de alguns princípios, sobretudo mais transparência e responsabilização por parte das plataformas e mais poderes de associação por parte dos trabalhadores. Ao apelar ao batido expediente do “nós contra eles” – nesse caso, tratando as plataformas como predadores e os trabalhadores como a sua presa –, o governo só prejudica os esforços para encontrar um modelo justo, eficiente e rentável para todos.