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Como funcionava o suposto esquema de extorsão e ameaças de Zé Rainha contra fazendeiros
Por
Raquel Hoshino, especial para a Gazeta do Povo


Segundo investigação da Polícia Civil, José Rainha exigia pagamento a produtores rurais depois de invadir as terras| Foto: (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

José Rainha Júnior, famoso pela alcunha de Zé Rainha, que ganhou notoriedade quando foi um figura proeminente do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e, hoje, é uma das lideranças da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), foi preso no dia 4 de março junto com um outro líder do movimento, Luciano de Lima, na região do Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo. Na última quinta-feira (09), um terceiro homem, Cláudio Ribeiro Passos, o Cal, também foi preso, desta vez na cidade de Assis, também em São Paulo. As acusações são graves: associação criminosa e extorsão.

A Gazeta do Povo teve acesso ao processo e falou com o delegado responsável pelas apurações. Segundo esta complexa investigação, executada em sigilo, José Rainha Júnior, Luciano de Lima e Cláudio Ribeiro Passos fazem parte de um esquema de extorsão, que utiliza as ocupações de propriedades rurais realizadas por integrantes da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), um dos movimentos pela reforma agrária, para coagir arrendatários e donos dos sítios e fazendas ocupados.

As extorsões
Tudo teria começado em outubro de 2021 quando, durante a investigação de uma ocupação de uma fazenda feita por integrantes da FNL na região de Pontal do Paranapanema, a polícia também recebeu informações da prática de extorsão. Desde então, foram identificados seis casos, que vão de outubro de 2021 até meados de 2022 e envolvem diversas propriedades.

Segundo as investigações, primeiro, ocorria a ocupação das propriedades rurais por integrantes da FNL. Algumas vítimas chegam a relatar 300 pessoas presentes; muitas vezes, causando danos às benfeitorias das propriedades, quebrando porteiras e derrubando árvores e até parte da plantação para a construção de acampamentos. Algum tempo depois da ocupação, o acesso de arrendatários e proprietários aos sítios e fazendas era impedido. E era nesse momento que havia o contato do grupo, a negociação de valores e de parte da propriedade para que houvesse o fim da ocupação das terras. Segundo os autos do processo, uma das vítimas foi extorquida no sentido de transferir de dez a quinze alqueires de terra para José Rainha, assim eles desocupariam a propriedade.

Segundo o depoimento de uma outra vítima à polícia: “os invasores cortaram, danificaram os cadeados e colocaram outros no lugar, bem como montaram uma guarita com sentinelas no local, onde permanecem por 24 horas/dia, dificultando a entrada de qualquer pessoa naquela propriedade”. E completa: havia “ameaças no sentido de que se entrarem no local, os invasores irão iniciar a pratica de vandalismo e ainda impedir o manejo e trato do gado”.

De acordo com o delegado Ramon Euclides Guarnieri Pedrão, responsável pelo caso, os motivos da extorsão variavam de acordo com o espaço ocupado. “Se fosse uma propriedade com uma plantação de soja, que é a cultura que se explora ali naquela região, na iminência de ser colhida, eles mantinham contato com o arrendatário e cobravam dele um valor para que ele pudesse entrar e colher aquela plantação”. Uma vítima teria pagado R$ 25 mil em dinheiro para conseguir realizar a colheita da soja, segundo seu depoimento. O valor inicial solicitado foi de R$ 100 mil.

No caso de ser uma propriedade em que houvesse gado, “para que a pessoa pudesse retirar o gado de lá ou manter por alguns dias a alimentação, o fornecimento de água e até o remanejamento desse gado, tinha que ser acertado um valor mensal com esse grupo da cúpula”, afirma o delegado. Uma vítima teria sido extorquida inicialmente em R$ 10 mil reais para ter acesso à propriedade, também foi coagida, segundo os autos do processo, a retirar todos os seus animais dali, sob ameaça dos integrantes do grupo de que desmanchariam as cercas do local. Outra vítima relata em depoimento que pagou R$ 15 mil em dinheiro para conseguir o acesso a seus animais. Os pagamentos mensais continuaram por cerca de quatro meses até conseguir retirar o gado da propriedade. O primeiro foi realizado em espécie e os demais por meio de transferência bancária. No total, foram pagos R$ 75 mil.

A hierarquia do esquema de extorsão
Os resultados das investigações apontam José Rainha Júnior como o líder do esquema de extorsões. Luciano de Lima seria o segundo na hierarquia, responsável por contatar e, inclusive, de receber em sua conta bancária, pagamentos das vítimas. Já Cláudio Ribeiro Passos, o Cal, teria o papel mais inferior entre os três. Ele teria, inclusive, recolhido dinheiro em espécie, fruto das extorsões. “Muitas vezes, o primeiro contato inicial era feito com o Luciano e, às vezes, junto com o José Rainha. E depois, todas as tratativas do desenrolar disso acabavam sendo assumidas pelo Cal, que é quem estava in loco, na propriedade ocupada por determinada vítima. Era quem estava em contato direto”, diz o delegado.

“Há uma escala hierárquica entre eles. Os atos de extorsão normalmente eram encetados diretamente por Luciano com a participação, ciência e comando do senhor José Rainha, pelo menos é isso que os elementos de informação e as provas correlacionadas nos autos nos apontaram. E, muitas vezes, o Cláudio também, com a participação direta ali, na recolha desses valores extorquidos e pagos pelos proprietários ou pelos arrendatários, porque se viam, na verdade, sem opção. Daí a caracterização, de fato, no nosso entender, do crime de extorsão”, diz o delegado.

“O que a gente percebeu e ficou muito claro é que o líder do movimento é o José Rainha, que tem, através do Luciano, seu braço direito. Então essas abordagens eram feitas pelo Luciano, só que nenhuma posição de fechamento ou de concordância era dada pelo Luciano. Ele sempre tinha que voltar no José Rainha. Rainha também participou de algumas reuniões com as pessoas extorquidas. Nós conseguimos demonstrar isso nos autos e com outros elementos de informação, e que daí vai se formando um conjunto probatório — porque uma investigação é assim, é uma peça que se encaixa na outra e forma um todo. Inclusive, nós ficamos com bastante segurança que nenhuma decisão era tomada sem a anuência dele. Ele tinha tanto o poder de iniciar, como o de fazer cessar aquela conduta”, complementa.

O maior valor foi em relação a uma fazenda localizada no município de Rosana (cerca de 730 km de São Paulo). A vítima relatou que os réus pediram R$ 2 milhões e 20 alqueires de terra para que os invasores fossem embora.

Segundo o delegado, este caso é diferente dos outros pois esta propriedade é a única que não tinha uma plantação em tempo de colheita ou gado. Conforme descrito nos autos do processo, a fazenda acabara de ter sua venda negociada, faltando apenas — de acordo com o depoimento da vítima — “assinar os papéis”. O dinheiro, então, seria para que os integrantes do movimento desocupassem a propriedade e ela pudesse ser vendida.

Para a defesa de José Rainha Junior, Luciano de Lima e Cláudio Ribeiro Passos, “a ideia da associação criminosa é usada corriqueiramente, não é novidade, para caracterizar uma ofensiva na tentativa de criminalizar movimentos sociais”, conforme afirma Rodrigo Chizolini, advogado dos réus. “Todos sabem que o José Rainha é uma liderança histórica da luta por reforma agrária no Brasil, então há muitas perseguições”, complementa. Ainda segundo o advogado: “não existem elementos que provam que existe uma organização criminosa; o que existe é um movimento social, que luta por uma causa grave”.

De acordo com as investigações, as extorsões não eram de conhecimento dos demais integrantes da FNL. Apenas parte da liderança do movimento estaria envolvida. Segundo o delegado responsável pelas apurações: “uma parcela da cúpula desse movimento mantinha contato, ora com os arrendatários das propriedades invadidas, ora com os proprietários realmente, os possuidores anteriores daquelas propriedades, com o intuito de extorqui-los, ou seja, exigir vantagens pecuniárias, para benefício deles, e não para o benefício do movimento”.

Medo
Algo comum às vítimas é o sentimento de medo. Em um dos depoimentos, um proprietário “teme pela segurança de seus funcionários, uma vez que os invasores sempre agem de forma intimidadora”. Já uma outra vítima, que esteve junto com outra pessoa em um encontro com Luciano e Cláudio Ribeiro Passos, “Cal fez um gesto com a mão, simulando uma arma, fato que os deixaram extremamente amedrontados”.

O Pontal do Paranapanema é uma região explosiva. As ocupações de propriedades rurais têm sido frequentes nos últimos anos. Em 2014, por exemplo, durante o chamado “Carnaval Vermelho”, foram 17 propriedades ocupadas na região. Em setembro do mesmo ano, quatro usinas de cana-de-açúcar. No carnaval de 2017, dez fazendas foram ocupadas por cerca de 700 integrantes da FNL, noticiou a imprensa. Segundo o delegado, de 2020 a 2021, a região sofreu uma série de ocupações pela FNL. E nos dois últimos carnavais, isso voltou a acontecer. Só neste ano, segundo a polícia, entre o dia 18 e 20 de fevereiro, houve ao menos nove invasões a fazendas na região.

“Já estamos no Pontal, num momento tenso entre os possuidores dessas terras e esse movimento de ocupação. E a ocupação em si, ela já gera uma tensão. Agora, a partir do momento que o proprietário, ou possuidor da terra, tem a ciência e o conhecimento de que, além da sua terra ser ocupada, ele vai passar a ser extorquido, a animosidade dele em repelir aquele ato e combater aquilo começa a ser agravado. Então é um contexto que vai muito além da mera extorsão em si, os reflexos que isso traz. E é isso que é a nossa preocupação aqui, que nós entendemos pela necessidade das prisões dos indiciados”, afirma o delegado. No dia 3 de março, por exemplo, uma ação da polícia, não relacionada ao processo de extorsão, levou à apreensão das armas, incluindo dois fuzis, de um fazendeiro que efetuou disparos na tentativa de impedir a ocupação de suas terras durante o feriado.

As prisões
De acordo com o relatório da Promotoria de Justiça de Rosana no processo, assinado por Guilherme Rodrigues Batalini, promotor de Justiça substituto: “fica evidente que a segregação cautelar dos três denunciados é absolutamente imprescindível para a garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal. Ademais, os proprietários e arrendatários de terras, em sua maioria, efetivamente cederam às extorsões praticadas, de modo que fica evidenciado o temor do poderio que os denunciados detêm, e não apenas de causar prejuízos financeiros, mas de efetivamente causar danos e colocar em risco a segurança das pessoas. O fato que mais evidencia perigo é o risco real, atual e concreto de sérios conflitos armados na região”.

Segundo o advogado Rodrigo Chizolini, que defende os três réus, as prisões são ilegais: “Nós questionamos essas razões que as determinaram porque a prisão preventiva deve ocorrer só em alguns casos estabelecidos no Código de Processo Penal: caso exista ameaça à ordem pública; caso exista ameaça à instrução processual; ao bom andamento do processo; ameaça a testemunhas, por exemplo, algum risco de fuga, para que se esquive, no futuro, do seu cumprimento, da aplicação da lei penal. Ou seja, esses requisitos não estão presentes na realidade concreta”.

De acordo com a defesa, José Rainha Júnior, Luciano e Lima e Cláudio Ribeiro Passos têm emprego e residência fixos no interior de São Paulo. Os três vivem em assentamentos: José Rainha Júnior em Mirante do Paranapanema, onde planta abóbora, alface e mandioca, e tem um criadouro de peixes. Já Luciano de Lima, que realiza o plantio de mudas, e Cláudio Ribeiro Passos, que limpa piscinas, residem em Iepê. “Não há nenhuma situação que leve à segregação cautelar neste momento”, afirma o advogado, cujo próximo passo é entrar com pedidos de habeas corpus no início desta semana no Tribunal de Justiça para que os três possam responder ao processo em liberdade.


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