Editorial
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Gazeta do Povo
Cannabis se tornou a “planta mais defendida do mundo” no passado recente.| Foto:
A tentação de trocar o papel de intérprete pelo de redator das leis, na qual o Supremo Tribunal Federal cai recorrentemente já há muitos anos, agora se espalha por outros tribunais superiores. A mera decisão, por parte do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de dar sequência a um caso que envolve a atual Lei de Drogas é a demonstração de que, ainda que no fim acabe tomando a decisão correta, a corte já se sente à vontade para assumir a tarefa de legislar e substituir deputados e senadores eleitos pelo povo, assim como faz o Supremo.
No caso em questão, uma empresa chamada DNA Soluções em Biotecnologia foi à Justiça solicitar autorização para plantar uma variante da Cannabis sativa que, segundo a companhia, produz THC (a substância com efeitos entorpecentes) em níveis baixos e canabidiol (o componente que pode ser usado para a fabricação de medicamentos) em grandes quantidades. O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4) deu a resposta óbvia: primeiro, que o país já tem uma lei sobre o assunto, e ela proíbe terminantemente, e de forma inequívoca, o cultivo da maconha no Brasil; segundo, que a regra pode até ser mudada, mas não pelo Judiciário, e sim pelo Legislativo.
Alguém insatisfeito com a lei, pelo motivo que for, busca a Justiça e encontra magistrados igualmente insatisfeitos com a lei, e que julgam ter o poder de alterá-la com uma decisão judicial, invalidando com isso todo o trabalho dos representantes eleitos pelo povo
Tamanha clareza na resposta do TRF4 não demoveu a empresa, que foi ao STJ e conseguiu o apoio da relatora Regina Helena Costa. Seu voto prevaleceu e, com isso, deu-se seguimento a uma proposta de Incidente de Assunção de Competência (IAC), a declaração de que certo tema tem relevância e repercussão social que justificariam análise do STJ para fundamentar decisões em outros tribunais no país. No entanto, o fundamento para decisões judiciais a respeito de demandas como essa já existe: é a Lei 11.343/2006; o que o STJ está querendo dizer, na prática, é que a lei não basta como fundamento e precisa ser substituída pelo que a corte decidir – ainda que decida em consonância com a lei, a mensagem é a de que o texto legal só tem validade se algum tribunal superior “concordar” com ele.
O grande problema está na pretensão do STJ de substituir o Congresso como formulador de legislação. O ativismo judicial consiste precisamente nisso: alguém insatisfeito com a lei, pelo motivo que for, busca a Justiça e encontra magistrados igualmente insatisfeitos com a lei, e que julgam ter o poder de alterá-la com uma decisão judicial, invalidando com isso todo o trabalho dos representantes eleitos pelo povo. Neste caso específico, ainda por cima, seria totalmente descabido falar em “omissão” do Legislativo, argumento frequentemente usado pelos defensores do ativismo judicial, pois já existe uma lei sobre o tema. Mesmo que eventualmente se considere que a legislação precise de mudanças – a ministra relatora citou o alto custo de importação do canabidiol como fator que justificaria a autorização de plantio –, este é trabalho do Legislativo, que está fazendo justamente isso ao discutir o PL 399. Se a análise se encontra interrompida, foi apenas porque muitos deputados estavam alarmados com a pressa na tramitação de tema tão sensível. E aqui não cabe ao Judiciário nem mesmo querer impor prazos ao Legislativo, o que seria tão descabido quanto um projeto de lei que obrigasse o STF ou o STJ a analisar logo este ou aquele processo, dos milhares que se encontram parados nas cortes.
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O ativismo judicial subverte a tripartição de poderes ao permitir que o Judiciário avance explicitamente sobre as prerrogativas do Legislativo, composto pelos representantes que o povo escolheu para propor, analisar, votar e aprovar leis. Infelizmente esta é uma prática da qual o atual comando do Supremo não se considera culpado, a julgar pelo discurso de posse da atual presidente da corte, Rosa Weber, que em setembro do ano passado criticou os “ataques injustos e reiterados, inclusive sob a pecha de um mal compreendido ativismo judicial, por parte de quem, a mais das vezes, desconhece o texto constitucional e ignora as atribuições cometidas a esta suprema corte pela Constituição”. Se o principal tribunal do país segue adiante com seu ativismo judicial considerando que não faz nada de errado, não é surpresa que outras cortes passem a fazer o mesmo.
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