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Alexandre Marques – Gazeta do Povo
Brasília (DF) 30-03-2023 O ex-presidente Jair Bolsonaro chega à sede do PL em Brasília e acena para apoiadores.| Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
A derrota de Bolsonaro nas eleições de outubro somada à prisão ilegal e indiscriminada de manifestantes bolsonaristas em janeiro, serão no futuro, profetizo, vistas como um evento só. A derrota eleitoral, sozinha, é só uma derrota eleitoral. Mas os eventos de janeiro arrematam-na de tal maneira que é difícil não enxergar em ambos um único episódio de humilhação. Primeiro, o presidente perde por um triz o pleito. Em seguida, nos primeiros dias do novo governo, centenas de apoiadores são presos em uma operação policial à revelia de qualquer direito, por conta de um evento insólito que ninguém consegue explicar, nem julgar definitivamente, com uma apuração a qual o governo eleito luta para combater. O sentido para o drama obriga a ver no episódio um ponto de virada na história que começou em junho de 2013.
- Dez anos de direitismo
A unidade dramática torna-se ainda mais obrigatória se levarmos em conta que junho de 2013 e janeiro de 2023 encerram quase exatamente uma década, que é o prazo que os antigos cronistas romanos usavam para dividir suas narrativas. Alguma razão eles tinham: uma década parece ser quase que o prazo natural para um processo político adquirir inteligibilidade própria: antes disto ele não assume uma forma, depois ele se deforma.
É mais ou menos o prazo que, na França, vai da Queda da Bastilha (1789) ao 18 Brumário (1799); da fundação do Império (1804) até a abdicação de Napoleão (1814). No Brasil, tenentismo (1920 a 1935) e o governo Vargas (1930 a 1945) duraram mais, 15 anos, o arraial de Canudos, menos, uns sete anos. O lulismo (2002 – 2013) quase um década exata. É perda de tempo tentar estabelecer uma lei, mas isso não é motivo para não atendermos ao significado heurístico do prazo, que é, ao menos, superior às opções cronográficas disponíveis, como o calendário eleitoral. Nada que dure muito menos de dez anos pode reverberar historicamente; o que durar muito mais deve ser capaz de mudar para não fenecer ou deformar-se.
Significarão os eventos que coroam os dez anos de bolsonarismo o seu fim? O fim do bolsonarismo significaria o fim do direitismo politicamente viável, ou seja, o fim da direita? Não é possível responder ao certo essas perguntas, é preciso acompanhar a história para saber o final. Mas alguma coisa já podemos e devemos saber da atmosfera geral da nova fase que se inicia, inclusive para poder enxergar o seu fio sem se perder. De saber acompanhar esse fio, depende a própria existência do direitismo, pois, embora um movimento político não possa ser totalmente consciente de si mesmo sem desencantar-se, também não pode não ter nenhuma consciência do sentido do processo.
- O esquerdismo e a razão.
Do contorno geral da nova fase é possível afirmar, já, o seguinte: o direitismo terá de aprender a pensar. Ou ele o faz agora ou continuará sendo o que já é, e se diluirá como realidade política.
E antes ele não pensava? Não. O direitismo até agora falou, escrachou, esculachou mas não pensou, e isso foi seu grande trunfo.
Como assim?
A velha esquerda, o marxismo, pretendia ser uma ciência e guiava-se pela razão. Se propor a guiar a massa de trabalhadores sem estar fundada em sólidos princípios científicos é pura fraude, disse Marx uma vez, socando a mesa, para um proselitista alemão, em 1845. Para a tradição socialista que foi vitoriosa até a segunda metade do século XX, o socialismo era acima de tudo verdadeiro, inclusive moralmente. O defeito da ciência burguesa e da moral burguesa era serem burguesas, não serem científicas e morais.
Não é assim com a dita “nova esquerda”, a tendência socialista que passou a ser dominante a partir dos anos sessenta, acompanhando a ascensão dos EUA no cenário econômico e geopolítico. As fontes filosóficas, e a propriedade do rótulo de Nova Esquerda é um problema que pode ficar para depois. Mesmo que ela não seja inspirada em Marx, e mesmo que a nova esquerda não seja revolucionária, é inegável que ela é parte da história do movimento socialista internacional, que deixou de ser um movimento de trabalhadores, operários e sindicalistas para ser um movimento de professores, artistas, jornalistas mas não deixou, por isso, de ser o mesmo movimento político.
O item fundamental da doutrina da Nova Esquerda é a negação da própria capacidade humana de pensar, da lógica, da ciência, até da matemática. Todo o resto é consequência desse princípio. O leitor comum não se dá conta, mas a teoria de gênero, que afirma, contra o bom senso de todas as tradições éticas e religiosas da humanidade, que ser homem ou mulher é uma questão convencional sem qualquer fundamento na realidade (e como tal pode ser mudada a bel prazer), não é uma loucura. Ao menos não loucura em sentido próprio. É o fruto da elaboração intelectual de um século, o que a torna loucura em um sentido especial. E não é possível entendê-la sem entender a diferença. A afirmação de que não somos inteligentes, não somos capazes de distinguir o verdadeiro do falso só parece um contrassenso – uma loucura simples – por que pensamos, sem perceber, de acordo com a lógica aristotélica que ensina que existem “substâncias” e “acidentes”. Mesmo que não o formulemos dessa maneira sabemos que ser homem ou mulher não é, como as roupas e os nomes, um traço acidental da personalidade de cada um mas sua própria substância, e que, as convenções morais atribuídas a cada um, embora sejam convencionais, são convenções naturais, distintas das convenções puramente arbitrárias, como as cores dos sinais de trânsito ou os nomes das coisas, que são notas acidentais delas. Quando alguém não pensa assim ficamos chocados, e nos perguntamos como alguém é tão louco de pensar assim. Só que essa não é pergunta correta. A pergunta correta não é “como alguém pode pensar assim?”, mas “como alguém louco o suficiente para pensar assim veio a adquirir autoridade?”. A loucura em sentido especial não é um problema médico, mas um problema político.
Antes de vir alguém negar que a atribuição de diferentes obrigações morais aos machos e fêmeas da espécie humana é não apenas uma convenção sem fundamento, mas uma opressão política, o que faz de todo casamento e toda família um mini estado fascista, havia alguém muito erudito para explicar, uns 80 anos antes, em uma sala amadeirada de alguma universidade alemã, que esse negócio de substância e acidente é só uma coisa da cabeça de Aristóteles, e que ninguém era obrigado a acreditar nisso. Gerentes de RH, organizadores de competições desportivas professores e administradores escolares, todos que encontram-se atualmente engolfados em uma confusão infinita nessa matéria antes relativamente simples, confusão que acarreta prejuízos incontáveis para milhares de adultos e crianças, não percebem mas a origem de seus problemas está no fato de que dão crédito a filósofos que desconhecem, e de cujas ideias tomaram conhecimento por meio de jornalistas que por sua vez ouviam falar deles nas faculdades de comunicação social, e que tem os escritos acompanhados pelas pessoas capazes de fazê-lo nas respectivas organizações. O resto simplesmente aceita.
Não se combate uma doutrina assim com pensamento. Nem contra ele serve o que tradicionalmente se concebe como o veículo preferencial do pensamento nas sociedades modernas, a imprensa. Quem argumenta em público contra o fato de que ser homem, mulher, criança, animal, não é uma questão de simples convenção arbitrária, já perdeu. Contra teoria de gênero, o que o filósofo John Rawls chama de Razão Pública, principal fetiche do liberalismo, nada pode. É o que explica que o liberalismo tenha tido um papel não mais que coadjuvante – até parasitário – no caldo do recente direitismo brasileiro. E por que a hegemonia cultural esquerdista dos anos noventa e dos anos dez ter sido quebrantada por um filósofo cuja obra gira em torno da noção de “conhecimento por presença[1]”, que é o conhecimento que precede o próprio processo de pensamento.
- A educação pelo escracho
A esquerda reclamava da falta de “ideias” de Olavo de Carvalho por que ela esperava ser combatida por ideias. Mas o educador campinense foi efetivo precisamente por que não se ocupou de, como ele mesmo dizia, combater ideias, mas pessoas. Combater pessoas não significa, evidentemente, atacar grupos sociais, ou simplesmente ofender nominalmente este ou aquele. Significa denunciar o império universal da pose. Um pose não é uma tese, é uma atitude. E só se corta o efeito retórico de uma atitude com a expressão contundente da atitude contrária, que é para o que serviam os ataques às pessoas, consumados com verve inigualável.
Verve que nunca teria a eficácia que teve se não viesse conjugada com atitude aparentemente contrária, mas na verdade complementar, do filósofo em sentido clássico. Somente por que entendia que a primeira atitude, mais visível e barulhenta, era uma iniciação à primeira, o seu público foi fiel e crescente e influente como o de nenhum comediante pode ser. Para entender o efeito da arte do esculacho, que Olavo de Carvalho desenvolveu até o limite, é preciso entender que e como ela se coaduna com sua arte de ensinar filosofia socraticamente, pois são dois lados da mesma moeda. Seus inimigos não gostam de ver, sob o palhaço, e se veem forçados a defender a tese asinina de que um astrólogo maluco saiu pela rede esculachando todo mundo, desmoralizou a esquerda no país e ainda criou um movimento político cultural que conta com milhões de simpatizantes e eleitores.
Mas o fato é que em política, a esculhambação pode muito, mas não pode tudo. Como esculhambador, a obra de Olavo foi comparável, talvez, à de Beppe Grillo, o comediante italiano que, de tanto esculachar a elite política, terminou por fundar o movimento 5 estrelas, um dos principais movimentos políticos de direita do mundo[2]. A diferença é que em vão o leitor procurará nas livrarias italianas obras de Grillo, ou de filósofos, romancistas e poetas publicados por inspiração sua. A arte esculhambatória de Grillo foi um instrumento de um movimento exclusivamente político — uma direita — mas não tinha substância para alimentar um direitismo consistente, como a de Olavo tinha. Para o primeiro, a crueza cínica era quase um fim em si; para o segundo, servia a uma finalidade pedagógica. Como o esculacho pode ter uma finalidade pedagógica não é difícil de compreender. Se seu público está convictamente persuadido de que sua motivação para argumentar é o amor pela verdade, você está livre para, além de argumentar, esculhambar. O próprio fato de que você o faça servirá para enfatizar o amor. Agora, se ninguém acredita que você queira de fato entender, conhecer a verdade, é melhor que você use um terno e use palavras difíceis. Não dá para parecer o que todos suspeitam que você seja.
Assim como o escracho, também o socratismo de Olavo de Carvalho possui paralelos históricos a que devemos prestar atenção por que não dá pra entender sem comparar. O direitismo brasileiro não foi o único movimento político a ser inspirado pela atitude socrática de um pensador antes que por sua doutrina propriamente dita[3]. Cito, como caso análogo, a influência de Jan Patocka (1907-1977) na Revolução de Veludo de 1989 na antiga Checoslováquia, que terminou levando seu discípulo, Václav Havel, ao poder.
Como no caso da influência exercida pelo professor brasileiro, a de Patocka se deu menos por suas ideias, que não eram ideias políticas propriamente ditas, que pela imagem socrática do filósofo que Patocka representava para seus discípulos, atitude que, depois, Havel chamou “vida na verdade”, e que ele reconheceu ser o único recurso efetivo contra aquele regime específico[4]. Também digna de menção é a influência do filósofo judeu Leo Strauss (1899-1973) na formação de um certo veio do republicanismo americano. Como Carvalho e Patocka, Strauss foi um professor carismático, admirador da filosofia clássica, sem programa ideológico definido, cuja atividade pedagógica – mais que as obras filosóficas propriamente ditas – esteve na raiz de um movimento político de considerável proporção sem caráter definido[5].
Patocka e Strauss compartilhavam com Olavo de Carvalho um grande número de preferências filosóficas, entre as quais ressaltam a filosofia alemã do começo do século em sua vertente fenomenológica e existencialista, de modo que a semelhança que os une está longe de ser uma mera questão de atitude. Compartilhavam, além disso, os três, da convicção de que a filosofia clássica era superior a moderna, e que ser um verdadeiro filósofo era, em última instância ser um imitador de Sócrates. E que, portanto, segundo o exemplo desse, a filosofia não era um sistema de conhecimento teórico mas uma arte de viver.
Por último, compartilhavam a ideia de que essa vida verdadeiramente vivida era o único ensino realmente eficaz contra o socialismo pós-marxista. Este já não era uma doutrina propriamente dita mas uma negação da realidade e da inteligência em favor de uma emancipação social concebida não mais em termos socioeconômicos como no velho marxismo, mas antropológicos.
A libertação, tal como a nova esquerda a concebe, já não é a libertação das correntes da opressão econômica e política mas da própria natureza humana. A tentativa de realizá-la não resulta apenas em um sistema politicamente opressivo e economicamente falido, como resultou o experimento do socialismo marxista mas em sociedade fundada na mentira, na confusão artificialmente provocada usada como meio de poder. Frente a um regime como esse, a tarefa do intelectual não pode ser mais a de contrapor um sistema de ideias verdadeiras a um sistema falso mas, simplesmente, de ensinar a vida verdadeira. Não dizer a verdade, mas vida de alguém que naturalmente o faz.
A admiração pela filosofia política antiga não foi, claro, exclusiva apenas desses pensadores. Muito pelo contrário. A recuperação do “saber dos antigos” é um dos fatos mais característicos da filosofia política do século passado. Quase todos os grandes pensadores políticos do século XX, reportaram-se, de um modo ou outro à herança grega, em agudo contraste com século que os precedeu. Muito menos são estes os únicos filósofos que pregaram a filosofia como arte de viver no século XX.
O próprio Michel Foucault, talvez a maior celebridade francesa da Nova esquerda, cultivou, no fim da vida, inspirado pelo trabalho de Pierre Hadot, uma versão peculiar do socratismo. A obra de filosofia alemã mais badalada dos anos oitenta, A critica da Razão cínica, de 1983, de Peter Sloterdijk, é uma defesa, à sua maneira, uma visão socrática da filosofia.
O que torna o movimento da Carta 77 que deu origem à revolução de veludo, o straussianismo na cultura americana dos anos oitenta e o direitismo brasileiro análogos não é somente o fato de que foram inspirados por uma certa concepção da filosofia grega antiga — isso, por si só, já é um pouco insólito, se se tem em mente o resultado político — mas o fato de que, além disso, foram movimentos ideologicamente ecumênicos que tinham como único princípio o antiesquerdismo. E vistas as coisas em retrospectiva, considerando o pouco de onde partiram, quem dirá que não souberam mostrar-se rivais à altura? No futuro, uma história intelectual global do século XX deverá, para ser justa, incluir um tópico sobre as “reações socráticas” que ocorreram na Checoslováquia, dos Estados Unidos e do Brasil contra a forma decadente do socialismo. E quem sabe que outros casos poderiam ser aduzidos.
- Direitismo sem olavismo
As reações socráticas sofrem, porém, de um defeito fundamental, que é só a outra face de sua qualidade fundamental: não possuem um programa ideológico definido, o que significa que não são feitas para durar como movimento político organizado. Sua eficácia como discurso deriva da expressão de uma atitude fundamental, não da persuasividade de um programa. Mas a expressão de uma atitude, se serve para inspirar uma maioria silenciosa submetida aos ditados do politicamente correto, não pode orientar um movimento político partidário organizado, para isso é preciso um programa positivo amparado em uma tradição de pensamento político discernível.
Nem a reação socrática patockiana nem a straussiana puderam subsistir como forças políticas autênticas depois de consumada sua reação. A primeira se diluiu num vago esquerdismo democrático, inteligente, crítico dos regimes totalitários, mas não muito mais do que isso. O straussianismo se converteu em uma vertente minoritária da política externa norte americana que, não obstante a mitologia que se tem construído em torno do tema, tem poucas conexões com as ideias do mestre. Converteu-se, também, é verdade, em um movimento pedagógico imensamente benéfico, centrado na leitura quase religiosa pelos chamados grandes livros da cultura ocidental. Mas o fato que, em termos de discurso político, o straussianismo não vai muito além de um civismo indefinido.
Olavo de Carvalho morreu em janeiro de 2022, quase dez anos depois de publicar o livro que selou sua influência política efetiva, a coletânea de artigos intitulada ‘O mínimo que você precisa para não ser um idiota’, de 2013. Não é sensato esperar que sua atividade pedagógica tenha um destino diferente da de seus antecessores, que é a de findar naturalmente uma vez cumprida a sua tarefa. O caso brasileiro possui, porém, como sempre, uma especificidade, quiça uma distorção. Abaixo do Equador, as coisas são mais complicadas.
Tanto o ensino de Patocka como o de Strauss se desenvolveram por meios tradicionais perante um público letrado tradicional. Isso significa que, encerrada a sua atuação negativa, havia um conteúdo ideológico positivo latente na cultura do país a que os discípulos poderiam recorrer caso quisessem continuar a disputa política, que foi exatamente o que aconteceu. Seu trabalho inspirou uma direita, mas não criou um direitismo.
Tal seria impossível no caso da Checoslováquia dos anos setenta, que ainda era um regime comunista (o próprio Patocka morreu depois de um interrogatório na delegacia) e desnecessário na América dos anos oitenta e noventa, que até uns anos antes tinha o socialismo como inimigo público. De modo que, se sua obra não foi principalmente conceitual, o ambiente em que ela se desenvolveu era dona de uma herança conceitual poderosa, apropriada para mediar uma interpretação realidade política ao mesmo tempo verdadeira e útil a seu ponto de vista — que é o que se espera de um programa ideológico, sem o qual não existe luta política consistente.
Já a influência de Olavo de Carvalho não se exerceu pelos meios tradicionais da universidade mas pelo novo médium da internet introduzido exatamente naquela geração o qual ele foi o pioneiro intelectual público brasileiro a usar com eficácia. Graças à rede, ele pôde alcançar um público novo, desencantado com um sistema universitário intelectualmente esclerosado ao entusiasmo pioneiro do qual se deveu toda a sua presença popular. A outra da face do mesmo fenômeno é que o mesmo desencanto que tornou um número expressivo de jovens estudantes apto a apreciar um pensador original, os tornou marginais ao mesmo sistema em comparação com o qual o novo professor se fazia tão interessante.
Por sua própria natureza, olavismo jamais poderia ou poderá tornar-se uma ideologia política mas o direitismo, subproduto seu, poderia, e deverá fazê-lo, caso queira subsistir como recurso de poder. O problema é que, sem os benefícios de lazer e influência proporcionados pelo aparato universitário, ele queda desprovido dos meios que tornam a interpretação conceitual da realidade social ela própria uma realidade social.
A inspiração negativa, puramente antiesquerdista do filósofo, foi multiplicada quando se coadunou com o novo médium. Nem Patocka nem Strauss deixaram de ser discretos professores ao passo que Olavo de Carvalho, a cujo carisma pessoal somou-se o carisma da novidade do médium, teve a foto exibida em cartazes de “Olavo tem Razão”, sobre ele se fizeram filmes, entrevistas, vídeos.
A questão está em que, quando o carisma pessoal dos discretos professores desapareceu, sua inspiração socrática pôde ser transformada por um aparato educacional em uma tradição pedagógica institucionalizada, fonte permanente de renovação para uma tradição positiva de interpretação da realidade política.
Nada disso está disponível para direitismo brasileiro, que entretanto precisa dela para que haja uma ponte entre o direitismo e a direita. Pois são as ideias, os programas, e a interpretação da realidade política de que esse dependem que mediam o direitismo — a agitação da propaganda, apoiada na insatisfação difusa — e a direita, a ação política partidária. Sem a mediação do pensamento, não há movimento político capaz de contar como um fator na luta pelo poder. O que quer que venha a ser o direitismo brasileiro pelos próximos dez anos dependerá da resposta que se dê a esse desafio.
Alexandre Marques é professor de Teoria Política na Universidade Federal do Piauí e autor de ‘A religião de Carl Schmitt: verdade cristã, autoridade letrada e o poder do Estado no século XX’
[1]Ver Robson, Ronald. Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho, Vide, 2020.
[2]Sobre Grillo e o novo direitismo internacional, ver Da Empoli, Giulianno. ‘Os engenheiros do caos’, Vestígio, 2019.
[3]Ensino socrático é uma arte de ensinar filosofia praticada por professores e filósofos durante toda a história da filosofia. Sua principal característica é que compreende a filosofia como uma “arte de viver” e, até, certo ponto, de expressar-se falando ou escrevendo, não como uma doutrina abstrata, e que tem como fonte última os diálogos socráticos de Platão. Boa introdução ao tema em Nehamas, Alexander. ‘The art of living: socratic reflections from Plato to Foucault’, University of California Press, 1998.
[4]Havel, Václav. Le Pouvoir du sans Pouvoir, In: Essais politiques, Seuil, 1991. Para a conexão entre o seu pensamento e o de Patocka, Findlay, Edward. ‘Classical Ethics and postmodern critique: political philosophy in Václav Havel and Jan Patocka, Review of Politics, Vol. 61, No 3, Verão de 1999.
[5]O straussianismo foi objeto de uma longa polêmica entre filósofos americanos ´nas últimas décadas. Ver um histórico dela, e uma defesa de Strauss, em Minowits, Peter. Straussophobia, Lexington books, 2009.
Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/o-passado-e-o-futuro-do-direitismo-brasileiro/
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