Comércio exterior
Domínio global
Por
Mariana Ceccon, especial para a Gazeta do Povo
Alexander Olmos, um venezuelano de 38 anos, mostra uma nota de cem dólares na comunidade de Bajo Chiquito, em Darién (Panamá).| Foto: EFE/ Bienvenido Velasco
O economista britânico mais famoso de sua geração, John Maynard Keynes, infartou no meio da conferência de Bretton Woods, em 1944, tentando impedir que o dólar se tornasse a moeda mais poderosa do globo. Mesmo assim, não conseguiu. Embora o Reino Unido estivesse saindo como uma das potências vencedoras do conflito mais importante do mundo e lastreado por uma bandeira que dominou a economia por mais de 400 anos, Keynes não conseguiu argumentar contra a estabilidade institucional, democrática e econômica que o dólar americano poderia oferecer ao mundo após duas guerras mundiais.
Por essas e por outras, especialistas são taxativos ao dizer: o dólar não deve sumir das transações globais tão cedo. Não há substituto à altura. “Não existe um arcabouço institucional e financeiro tão sólido e organizado como o dos EUA atualmente, e eu não acho que isso vá mudar nos próximos cem anos”, diz Igor Macedo de Lucena, economista e doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa, além de membro da Chatham House (The Royal Institute of International Affairs).
Para ele, as recentes sinalizações de países como China, Rússia, Brasil, Índia e Arábia Saudita de substituir essa moeda por yuan e outros ativos, como criptomoedas, fazem parte do jogo geopolítico, mas não conseguirão prosperar devido à falta de segurança para investidores e exportadores. “As nações que estão discutindo isto têm problemas territoriais e podem estar envolvidas em desfechos geopolíticos extremamente complexos muito em breve, como o caso da China e Taiwan, Índia e Paquistão ou Arábia Saudita e Irã. Elas sabem que podem ser a Rússia de amanhã. Então o recado delas é básico: EUA parem de usar sua moeda como arma política, porque nós podemos trocá-la. É uma ameaça”, resume.
Não que nenhuma moeda tenha caído em declínio antes e que uma substituição seja inédita. As primeiras moedas cunhadas oficialmente por um governo surgiram há mais de 650 anos antes de Cristo, na Anatólia, atual Turquia. Desde então, o mundo assistiu à evolução e queda do áureo romano, a moeda da Roma Antiga que prevaleceu como a mais valiosa do mundo por mais de dois séculos, o estável ducado de ouro usado por comerciantes da Idade Média e Renascimento, além dos modernos dólar espanhol, iene e libra esterlina. Entre elas, um ponto em comum: sua decadência acompanhou a do poder de suas nações.
Ascensão
O sucesso do dólar americano é fruto deste mesmo ciclo. No último ano da Segunda Guerra Mundial, quando a vitória dos Aliados começou a parecer certa, líderes das principais potências reuniram-se a portas fechadas na conferência de Bretton Woods para decidir qual moeda ditaria a reconstrução da Europa e, portanto, concordar uma única vez com uma reforma na estrutura do sistema monetário internacional.
Por 22 dias, no hotel Mount Washington em New Hampshire, 44 delegações apartaram a briga entre Keynes e o anfitrião do encontro, Harry Dexter White, um economista e funcionário do Tesouro dos Estados Unidos, especialista em finanças internacionais e um dos arquitetos do Plano Marshall. Segundo narra o editor de economia Ed Conway no livro “The Summit” [sem edição em português], obra dedicada a detalhar tudo o que aconteceu no hotel Mount Washington naqueles dias, o encontro ocorreu em uma atmosfera caótica de brigas, inúmeros drinques no bar do hotel e até mesmo espionagem, quando White provou ser também um informante da KGB russa.
Ainda assim, nas palavras do autor, o encontro mudou a história da humanidade, evitando uma terceira guerra e criando as bases para a criação das Nações Unidas um ano depois. Não só as notas verdes passaram a dominar as transações internacionais, através do estabelecimento de uma taxa fixa de câmbio entre as moedas dos países participantes e o dólar americano, que por sua vez foi vinculado ao ouro, mas também o encontro deu origem ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial, instituições que fariam empréstimos em dólar a países com problemas econômicos após o fim da guerra.
“O acordo permitiu o mais longo período de estabilidade e crescimento econômico da história. Seus protagonistas devolveram as sólidas bases que faltavam à economia global desde o colapso do padrão-ouro, em 1914. Entre 1948 e 1970, o produto interno bruto global cresceu 2,8%”, resume Conway.
Queda
Se a predominância do dólar no comércio exterior coincide com a escalada do poder norte-americano como potência mundial, muitos teóricos apontam que o crescimento chinês nas últimas décadas tem potencial para abalar as regras do sistema monetário. No entanto, este não é o primeiro teste para o poder e estabilidade do dólar como moeda de reserva. No final dos anos 60, diante de uma crise econômica doméstica causada pelos altos custos de programas sociais, das elevadas despesas com a Guerra Fria e o conflito no Vietnã, os Estados Unidos começaram a imprimir mais dólares do que podiam, levando ao fim do sistema Bretton Woods e a vinculação do dólar com o ouro.
“Quando as perdas de mercado inevitavelmente fizeram a crença na capacidade dos EUA de manter o valor do dólar inalterado desaparecer, o fim de Bretton Woods se tornou quase inevitável. A quebra, no entanto, não foi meramente uma consequência de má gestão orçamentária, mas sim de um mundo onde as fronteiras começaram a se tornar cada vez mais porosas para fluxos de dinheiro”, explica Conway.
Apesar do abalo financeiro e da guinada global ao monetarismo, o dólar não perdeu sua posição de destaque. Lucena explica que isso ocorreu porque os Estados Unidos continuaram sendo o ator mais importante do comércio global, importando bens e serviços de outros países. Isso tornou vantajoso para os países manterem reservas em dólares para facilitar as transações comerciais tanto com os EUA quanto com outras nações que usam o dólar como moeda de câmbio.
E é esta falta de flexibilidade de mercado que falta aos ativos digitais e a moeda chinesa. “É o partido comunista que decide o câmbio. Você pode até comprar yuan e investir na China, mas não tem a mesma liberdade de tirar o dinheiro do país. Hoje, a porta de negociações chinesa é Hong Kong e não a Bolsa de Pequim. É um mercado altamente controlado e restrito. Ninguém vai pegar ativos livres de risco e investir onde não há muita confiança dos agentes”, observa o especialista. “Quanto aos criptoativos, o lastro de toda moeda é a capacidade de uma nação prosperar. Você não sabe onde está o lastro das ‘criptomoedas’ e cada vez que você tem uma fraude relaciona a elas, mina-se toda confiança nesse mercado”.
Para o especialista, o futuro é um mercado com transações multimoedas no qual a supremacia do dólar será reduzida, mas não superada. “O mais lógico a acontecer é as pessoas físicas e jurídicas passarem a fazer operações com outros países, uma espécie de ‘pix internacional’, como a Índia e Singapura testaram recentemente. Assim, as pessoas teriam poupanças em várias moedas e iriam ranqueá-las conforme o desenvolvimento econômico dessas nações. Em teoria, voltamos ao que Keynes queria em Bretton Woods”.
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