Editorial
Por
Gazeta do Povo
O relator do projeto de lei das fake news é o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).| Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados.
As negociações foram longas e intensas, a ponto de o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do Projeto de Lei 2.630/20, o PL das Fake News, ter apresentado a mais recente versão do texto apenas no fim da noite de quinta-feira, quando pretendia tê-lo feito durante aquele dia. Esta versão trouxe mudanças significativas em relação à anterior, e indicam que a pressão popular e a atuação firme de parlamentares conscientes da importância de preservar a liberdade de expressão fizeram efeito. No entanto, esta é apenas uma etapa de uma tramitação que, por ocorrer de forma bastante precipitada, ainda permite retrocessos que só a continuação desta marcação cerrada feita pela sociedade poderá impedir.
O projeto tem pontos positivos que vale a pena destacar: por exemplo, avança no sentido de exigir mais transparência das redes na moderação de conteúdos, com a obrigação de justificar adequadamente qualquer remoção de publicações ou outras medidas restritivas (cancelamento, desmonetização, shadow ban etc.) e oferecer canais efetivos para contestação. É também positivo o fato de enfrentar algumas das hipóteses de responsabilização das plataformas de forma melhor que a feita no Marco Civil da Internet, embora sem desfigurá-lo. Vê-se, ainda, que o relator se esforçou para retirar do texto – em grande medida, mas não totalmente – novas restrições abstratas (novos tipos penais, por exemplo) à liberdade de expressão, preferindo apoiar-se em textos legais pré-existentes como o Código Penal ou estatutos específicos. Assim, por exemplo, evitou introduzir um crime genérico de fake news ou “desinformação”, o que caracterizaria afronta direta e imediata à liberdade de expressão. Além disso, as sugestões feitas pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, que incluíam pontos bastante controversos, acabaram não sendo incorporadas à mais recente versão do PL 2.630.
As mudanças significativas em relação à versão anterior do PL 2.630 indicam que a pressão popular e a atuação firme de parlamentares conscientes da importância de preservar a liberdade de expressão fizeram efeito
Especialmente positiva foi a remoção de alguns dispositivos que escancaravam portas para ataques sem precedentes a esse pilar da democracia que é a liberdade de expressão. Queríamos, aqui, jogar luz especialmente sobre a previsão de criação da “entidade autônoma de supervisão”, que segundo a penúltima versão do PL deveria ser estabelecida pelo Poder Executivo. Tratava-se de algo que sintetizaria o que pode haver de mais contrário aos princípios que sempre regeram a liberdade de expressão nas nações democráticas, e espanta-nos que boa parte da sociedade não tivesse se dado conta dos desdobramentos que a criação de um órgão desse tipo poderia trazer.
Ainda que se assegurasse a essa “entidade autônoma” o modelo de autonomia e independência das agências reguladoras (mandatos de sua diretoria descasados e sem possibilidade de demissão de integrantes, por exemplo), ele continuaria a ser um órgão governamental ou, se se quiser, de Estado. Ora, um princípio básico de qualquer democracia é que não pode haver – afora a previsão legal de restrições à liberdade de expressão claramente definidas e facilmente compreensíveis, com análise pontual pelo Judiciário, sempre mediante provocação – uma atuação estatal ad hoc ampliando ou reinterpretando as restrições estabelecidas legitimamente pelo Congresso. A “entidade autônoma”, tal como estava prevista em versões anteriores do projeto, daria ao governo a possibilidade de exercer ingerência direta sobre a forma como as mídias sociais operam no país, com o enorme poder de decidir o que poderia ou não poderia ser dito nas mídias sociais, graças a outro conceito inserido no projeto, o de “risco iminente” ou “risco sistêmico”, casos em que esse novo órgão estaria autorizado a agir.
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A definição de “risco iminente” ou “risco sistêmico” na penúltima versão do PL 2.630 ia muito além do cometimento de crimes concretos, incluindo também a possibilidade de “danos à dimensão coletiva de direitos fundamentais”, uma das situações que autorizariam a instalação de “protocolos de segurança” por parte da entidade autônoma de supervisão. A ideia de risco sistêmico, sem clara definição legal (que realmente não é factível), criaria de per si um novo modelo de restrição de impossível delimitação. Ou seja, por um viés indireto, ampliar-se-ia, sim, o que parecia querer evitar-se: um novo âmbito de ilícitos. Ainda que se tentasse defender o conceito afirmando que a noção abrangeria apenas situações de ofensas sistemáticas a normas penais já estabelecidas, o fato é que não era esse, no entanto, o espírito do projeto, como se depreendia, entre outras coisas, do conceito de “danos à dimensão coletiva de direitos fundamentais” e da possibilidade de punir meros riscos. Tudo isso poderia abarcar uma série de manifestações perfeitamente lícitas, como a crítica a determinados comportamentos ou a oposição veemente a políticas públicas ou projetos de lei, especialmente quando estão em jogo temas da chamada “pauta de costumes”. Assim, o conceito de “risco sistêmico” poderia ser usado para estabelecer autênticos tabus, inclusive criando obrigações para que as mídias sociais agissem “preventivamente” diante de certos conteúdos (ou seja, impedindo que eles fossem publicados). Assim, estaria criado um mecanismo sutil, mas extremamente poderoso e não menos pernicioso, de limitação severa da liberdade de expressão, sob o disfarce da “defesa de direitos”.
A liberdade de expressão, como já afirmamos em inúmeras ocasiões, não é absoluta. Mesmo assim, eventuais restrições, vale a pena repetir, devem ser sempre bastante pontuais e devidamente registradas na lei, que cabe ao Judiciário interpretar. A “entidade autônoma de supervisão” extrapolaria completamente este princípio. Não faz o menor sentido que uma entidade governamental pretenda regular a liberdade de expressão, interpretando, ampliando ou restringindo quais temas podem ou não ser comentados, e em que termos. Não se trata, portanto, de um órgão que pudesse ser tolerado desde que estivesse em boas mãos, mas de uma entidade cuja existência seria intrinsecamente incompatível com a defesa da liberdade de expressão. O fato de a penúltima versão do PL 2.630 ainda conceder a tal órgão superpoderes como os de limitar o encaminhamento de mensagens, instaurar “protocolos de segurança” e impor “medidas preventivas” às mídias sociais antes mesmo que se instaurassem processos administrativos era apenas agravante para algo que em si mesmo já ameaçaria frontalmente a democracia no Brasil.
O governo federal ainda não desistiu de tentar colocar de volta no texto do PL 2.630 a criação da “entidade autônoma de supervisão”, o que traria de volta uma série de ameaças graves à liberdade de expressão
É verdade que a mais recente versão do PL 2.630 eliminou completamente qualquer menção à “entidade autônoma de supervisão” e atenuou as menções aos “riscos sistêmicos”, delegando ao Comitê Gestor da Internet, um órgão já existente, algumas das atribuições que pertenceriam à nova entidade, e mesmo assim de forma bastante mitigada. Ocorre, no entanto, que, segundo informações de bastidores, o governo federal ainda não desistiu de tentar colocar de volta no texto do PL 2.630 a criação da “entidade autônoma”, o que traria de volta todos os riscos que acabamos de mencionar. E a tramitação em regime de urgência oferece condições bastante propícias a alterações de última hora que a Câmara sabe muito bem como fazer – ainda estão frescas na memória de todos os que se importam com o combate à corrupção, por exemplo, as “emendas da meia-noite” que destruíram o projeto das Dez Medidas Contra a Corrupção, em 2016.
Este é um caso emblemático em que o dito de John Philpot Curran segundo o qual o preço da liberdade é a eterna vigilância deve ser entendido literalmente. Se os brasileiros não queremos que o PL das Fake News receba de volta trechos frontalmente contrários à liberdade de expressão, teremos de acompanhar cuidadosamente cada passo desta tramitação-relâmpago. Até aqui a pressão foi essencial para depurar o projeto de lei e retirar dele ameaças graves às garantias democráticas, enquanto passava a preservar mais explicitamente outros direitos, como no caso do discurso religioso, agora protegido com um dispositivo específico. Tudo que muitos desejam é que a sociedade baixe a guarda no momento mais importante, o da votação em plenário. Que não deixemos isso acontecer.
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