Promessas de Lula, despesas sem limite e falta de punição jogam contra meta fiscal

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Célio Yano – Gazeta do Povo


O ministro da Fazenda, Fernando Haddad.| Foto: EFE/André Borges

O novo arcabouço fiscal proposto pelo governo estabelece um limite para o crescimento real de gastos, que não pode passar de 2,5% ao ano. Mas o histórico das contas públicas e o tamanho das despesas obrigatórias indicam que, para cumprir as promessas de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), será preciso elevar muito a arrecadação para pagar a conta que se projeta para os próximos anos.

Esse não é o único problema. Uma longa série de exceções à regra – 13 despesas serão excluídas da contabilidade e poderão crescer sem limite – torna praticamente inviável o desafio de acabar com o déficit primário no próximo ano, como propõe o governo.

Além disso, o projeto de lei complementar (PLP) 93/2023, que institui o novo arcabouço, não prevê imputação de infração ao chefe do Executivo caso a meta fiscal seja descumprida, o que acaba por tornar o modelo ainda menos crível para analistas.

Quase 94% do gasto federal é obrigatório, e crescerá com aumento do salário mínimo

A atual regra do teto de gastos, instituída em 2016, teoricamente impede o crescimento anual de despesas acima da inflação. Apesar de ter, de fato, contribuído para frear o dispêndio de recursos público, o modelo acabou por engessar o Orçamento da União, muito em razão da crescente fatia de gastos obrigatórios, como o custeio da Previdência Social e da folha de pagamento do funcionalismo.

Com a evolução vegetativa das despesas de natureza impositiva, o espaço para acomodar gastos discricionários, como investimentos, foi ano a ano sendo comprimido, mesmo com uma série de “furos” feita no teto. Para se ter uma ideia, antes da aprovação da chamada PEC “fura-teto”, em dezembro, o Orçamento de 2023 foi discutido com 93,7% das despesas já comprometidas.

Para dar mais flexibilidade no Orçamento, o mecanismo apresentado pelo Ministério da Fazenda para substituir o teto de gastos propõe um ritmo de incremento das despesas equivalente a até 70% da alta das receitas – se a receita anual crescer R$ 100 bilhões, por exemplo, a despesa poderá avançar R$ 70 bilhões. O projeto coloca ainda um limitador de 2,5% no crescimento real de gastos, para o caso de aumento extraordinário de arrecadação.

Por outro lado, a proposta também pressupõe um aumento mínimo de despesas, de 0,6% acima da inflação, mesmo quando houver queda nas receitas – uma espécie de “piso de gastos”, portanto.

E para evitar que as verbas para investimentos sejam comprimidas em razão do aumento de gastos correntes, haverá um patamar mínimo para esse tipo de despesa, que deve partir dos R$ 75 bilhões previstos para 2023, com variação anual mínima equivalente à inflação.

Em entrevista ao site “O Antagonista”, o ex-diretor do Banco Central Alexandre Schwartsman se mostrou cético em relação à viabilidade do novo arcabouço. “Até agora a gente partiu do pressuposto que o gasto está limitado em crescer 2,5% ao ano acima da inflação. Não é o que a nossa história mostra na ausência do teto de gastos”, disse.

“Na ausência do teto de gastos, o gasto total cresceu na casa de 4,5% [ao ano]. O gasto obrigatório cresceu ao ritmo de cinco e pouco porcento ao ano. Então o gasto obrigatório subia, a gente segurava o investimento”, completou.

Para ele, sem mudanças na dinâmica de despesas impositivas e com um piso para o investimento, não há garantia de que o gasto vá crescer no máximo 2,5% em termos reais.

“Previdência vai subir com salário mínimo e com envelhecimento da população. Funcionalismo vai subir com o número de funcionários que se está colocando para dentro; vai subir com o aumento real que está sendo discutido agora. BPC [Benefício de Prestação Continuada], que também é um item importante, vai subir com salário mínimo. Abono salarial vai subir com salário mínimo. Bolsa Família vai subir também. Todas essas coisas estão subindo. Por que vai se limitar a 2,5% mesmo?”

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Gabriel Hartung, economista-chefe da SPX Capital, e Mario Carvalho, analista macroeconômico da instituição, avaliam o arcabouço como contraditório em relação à atual agenda do governo.

“O governo terá o desafio de compatibilizar as políticas que vem prometendo dentro de um limite de gastos. A regra será capaz de compatibilizar simultaneamente aumentos reais do salário mínimo, de transferências de renda aos mais pobres, aumento dos investimentos, e expansão das rubricas de saúde e educação?”, questionam, em artigo publicado no blog do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV).

“A experiência brasileira com regras fiscais nos sugere que quando a regra entra em contradição com o projeto político predominante, quem sai perdendo é a regra fiscal.”

No início do governo de Jair Bolsonaro (PL), o então ministro da Economia, Paulo Guedes, defendia um plano que batizou de “DDD” – de “desindexar, desobrigar e desvincular”. Seu objetivo era eliminar ou reduzir ao máximo gastos obrigatórios, despesas indexadas ao salário mínimo e pisos constitucionais de investimento vinculados ao crescimento de receitas. Diante do caráter impopular das medidas, no entanto, a ideia foi barrada por Bolsonaro.

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No projeto de novo arcabouço apresentado pelo governo estão previstas 13 situações que não terão o alcance do limitador e que, portanto, poderão crescer acima dos 2,5% reais estabelecidos pela regra principal:

Transferências constitucionais a estados e municípios;
Complementações para a educação básica de estados e municípios;
Créditos extraordinários;
Transferências a fundos de saúde de estados e municípios para o cumprimento do piso da enfermagem;
Despesas com projetos socioambientais ou relativos às mudanças climáticas custeadas com recursos de doações, e despesas custeadas por acordos firmados em decorrência de desastres ambientais;
Despesas – que forem custeadas com receitas próprias, de doações ou de convênios – de universidades e instituições federais, de empresas públicas prestadoras de serviços para hospitais universitários federais, e demais instituições científicas, tecnológicas e de inovação;
Despesas custeadas com recursos oriundos de transferências dos demais entes da Federação para a União destinados à execução direta de obras e serviços de engenharia;
Despesas em acordos para o pagamento de precatórios com desconto;
Despesas com precatórios do Fundef devidos a estados e municípios;
Despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições;
Despesas com aumento de capital de empresas estatais não financeiras e não dependentes;
Transferências legais, a estados e municípios, de recursos obtidos com concessão florestal e venda de imóveis da União; e
Despesas relativas à cobrança pela gestão de recursos hídricos da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
A maior parte dessas despesas já estava excetuada do teto de gastos, mas o projeto acrescenta novas exceções, como transferências de recursos de concessão florestal, despesas relativas à gestão de recursos hídricos e a atualização monetária dos precatórios inscritos no exercício. Por outro lado, no caso das estatais o projeto estabelece que apenas eventuais capitalizações das empresas não financeiras e não dependentes do Tesouro será excluída do cálculo.

“No caso das exceções de receitas, percebe-se claramente a iniciativa do governo em poder usar fora da regra do arcabouço as receitas extras com concessões, as advindas das estatais – já padrão conhecido do PT – e da exploração de nossas commodities – algo que fazemos com excelência como país”, comenta Rodrigo Correa, estrategista-chefe e sócio da Nomos.

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Eles ressaltam que receitas provenientes de Refis ou dos saques das contas inativas do fundo do PIS/Pasep, por exemplo, não são classificadas no PLP 93 como atípicas. Além disso, o texto inova ao acumular a receita nominal de 12 meses e deflacionar sua variação contra os 12 meses anteriores pelo IPCA, ano contra ano, em vez de obter uma série real deflacionando mês a mês e daí extraindo o crescimento.

“Esse detalhe sutil gera uma diferença grande para o próximo ano por conta da desinflação que tivemos na segunda metade de 2022, em grande parte decorrente da queda do ICMS sobre alguns itens no mesmo período”, afirmam. Para eles, os períodos dos deflatores foram “cuidadosamente escolhidos para maximizar o crescimento do gasto em 2024”.

Conforme o texto, a variação da receita será calculada considerando-se o período até junho do ano anterior, mas o reajuste das despesas considerará o a projeção do IPCA até dezembro.

“Dessa forma, o gasto nominal de 2024 será o nível do gasto da LOA [Lei Orçamentária Anual] de 2023 inflacionado pelo IPCA de 2023 (aproximadamente 6%) e ainda terá um ganho de 2,5% por conta do crescimento real da medida de receita recorrente escolhida”, dizem os economistas. “Como consequência, o gasto público em 2024 deve apresentar um crescimento nominal de 8,5% e um crescimento real de 4,3% (usando o IPCA esperado pelo Focus para 2024).”

Para os economistas, sem uma relevante elevação na carga tributária, é improvável que o governo obtenha, como deseja, resultado primário neutro em 2024, superávit primário de 0,5% do PIB em 2025 e de 1% do PIB em 2026.

Eles estimam que, caso a regra seja mantida por um longo período, o país só voltaria a ter superávit primário em 2031, “caso o PIB cresça em linha com o potencial em cada um dos próximos oito anos”.

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Tiago Sbardelotto, economista da XP Investimentos, lembra que o uso da inflação realizada entre os meses de janeiro a junho e da inflação estimada de julho a dezembro já existe no atual teto de gastos, mas que eventuais desvios são minimizados pela atualização das projeções à medida em que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) é discutido no Congresso, entre setembro e dezembro.

“Pela proposta do governo, entretanto, não há possibilidade de atualização dessa projeção, devendo ser considerado apenas o valor encaminhado no PLOA”, ressalta.

Para se ter uma ideia, em 2022, o Orçamento aprovado considerou uma projeção de inflação de 7,2%, mas ao fim do ano o indicador ficou em 5,8%, o que permitiu um crescimento adicional do teto em R$ 24 bilhões.

Sbardelotto, considera, no entanto, que a maior preocupação está nas alterações referentes à meta de resultado primário. “Além de não inserir na proposta as metas para os próximos anos, o governo afrouxou as penalidades, desobrigou o contingenciamento e impôs apenas um ônus temporário sobre as despesas em caso de descumprimento da meta”, diz, em relatório para investidores. “Isso acaba por gerar um desincentivo ao próprio governo em perseguir o ajuste fiscal nos próximos anos.”

Para Marcos Mendes, pesquisador do Insper e ex-assessor especial do Ministério da Fazenda, a falta de sanções aponta para um abandono da regra de limite de despesa e também das metas de resultado primário. “O que parece é que o governo fragilizou a meta de primário porque não conseguirá cumpri-la, não conseguirá levantar toda a receita necessária nem cortar as despesas do jeito que seria preciso”, disse ao “Valor Econômico”.

“Aperfeiçoamentos à regra incluem considerar um IPCA realizado em 12 meses até junho do ano corrente ou uma estimativa mais próxima do realizado, adotar um conceito de receitas mais próximo possível da receita recorrente e impor ônus mais pesado ao governo em caso de descumprimento da meta”, avalia Sbardelotto.

Para Marcelo Cursino, do Braza Bank, a proposta tem caráter “conservador em alguns trechos, mas muito vago no tocante às despesas”, o que deve dificultar uma redução na taxa básica de juros, como defende o governo.

“O texto deixa um viés bastante expansionista nos gastos e responde pouco sobre a origem das receitas”, diz. “Em suma, volta a preocupação com o fiscal com reflexo de alta nos juros futuros e desvalorização do real. A possibilidade de corte da Selic vai ficando cada vez mais distante.”

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