Editorial
Por
Gazeta do Povo
Segundo Lula, o “BC tem autonomia, mas não é intocável”, e o presidente do órgão, Roberto Campos Neto, não teria “compromisso com o Brasil”.| Foto: Reprodução
Os insistentes ataques de Lula à atual taxa básica de juros, a Selic, revelam muito mais uma obsessão contra a autonomia do Banco Central (BC), regulada por lei aprovada pelo Congresso Nacional, que qualquer tipo de contestação de natureza técnica ou de política econômica estudada e pensada para melhorar o Brasil. No fundo, a julgar pelas críticas ásperas dirigidas ao presidente do BC, Lula odeia tudo em que não pode mandar de forma absoluta. O presidente atribuiu a si próprio o direito de ter opinião sobre tudo, inclusive sobre assuntos complexos, sem que para isso tenha estudado, examinado e submetido suas ideias ao contraditório, o que é no mínimo um comportamento intelectualmente reprovável.
Em primeiro lugar, a autonomia do BC está consignada em lei aprovada pela instituição que é a legítima representante da população: o Congresso Nacional. Em segundo lugar, os insultos de Lula a Roberto Campos Neto, presidente do BC, são feitos como se Campos Neto fosse o único dirigente do BC e decidisse tudo sozinho, quando o órgão encarregado de analisar, debater e votar a taxa Selic é o Comitê de Política Monetária (Copom), composto por nove membros, todos com sólida formação teórica, prática de mercado e conhecimento sobre o que é a moeda, quais suas funções na economia e como ela é emitida e controlada, com vistas a cumprir seu papel de fazer a economia funcionar bem, combater a inflação e promover o crescimento econômico.
Mais uma vez, após a decisão do Copom de manter a taxa de juros em 13,75% ao ano, na reunião realizada neste início de maio, Lula repetiu a velha cantilena de críticas ríspidas ao presidente do BC. Um aspecto curioso digno de menção é o fato de, em seus dois primeiros mandatos como presidente, de 2003 a 2010, Lula ter visto seu vice-presidente, o empresário José Alencar, passar grande parte de seu tempo fazendo declarações enfáticas contra a taxa de juros elevada. Naquela época, não havia autonomia do BC, e Lula poderia ter forçado uma redução nos juros (como, depois, faria Dilma Rousseff, com Alexandre Tombini à frente do BC), como ele quer agora, mas não o fez.
O Brasil já tem falhas estruturais demais, a começar pelas leis confusas, instáveis e de baixa qualidade, para aguentar piora na economia causada por declarações do governo sobre suas intenções de fazer o que já deu errado no mundo inteiro
A taxa Selic é a taxa de juros incidentes sobre os títulos da dívida pública emitidos e vendidos a partir da aprovação da taxa. Dívidas antigas, com taxas pré-fixadas, custam ao Tesouro Nacional aquela taxa Selic vigente na data em que o título foi vendido pelo governo. É frequente ver comentaristas afirmando equivocadamente que, a cada vez que o BC aumenta a taxa de juros, por exemplo em um ponto porcentual, a despesa do governo com pagamento de juros sobe na mesma proporção. Por óbvio, não é assim. Somente seria assim todos os títulos públicos – antigos, atuais e futuros – passassem a pagar a nova Selic aprovada para vigorar de agora em diante, e isso não ocorre.
Embora seja assunto um tanto batido nas matérias especializadas, convém repetir que a taxa Selic é um indicador de aspectos importantes na economia – como inflação, déficit do governo, excesso de demanda etc. – e é a partir da Selic que as demais taxas de juros são determinadas. De um lado, existem as taxas de juros recebidas dos bancos pelos poupadores em suas aplicações financeiras; de outro lado, existem as taxas de juros pagas por pessoas, empresas e governo nos empréstimos tomados dos bancos. Nesse jogo, o dinheiro emprestado pelos bancos é o dinheiro que eles captam em forma de depósitos e aplicações de pessoas e empresas.
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Outra confusão comum é acreditar que todos os juros pagos pelo governo sobre sua dívida são apropriados pelos bancos. Os bancos são instituições que fazem intermediação de capitais e trabalham com dinheiro de seus depositantes, e é sobretudo por isso que os bancos são altamente regulados e fiscalizados pelo BC. A autonomia do BC foi aprovada por lei para que o órgão pudesse, em respeito à lei e a seu regulamento, tomar as decisões em seus colegiados – e não apenas por vontade unilateral do presidente do órgão – após analisar o comportamento da economia, especialmente as finanças do setor estatal nos três níveis – União, estados e municípios –, e os indicadores de crescimento, desemprego e inflação, seguindo o que é feito nos países adiantados.
Nesse confuso cenário, as repetidas declarações públicas de Lula contra regras fiscais – a exemplo do teto de gastos, aprovado no governo Michel Temer e recentemente revogado pelo Congresso Nacional sob o patrocínio do governo atual – e sua defesa dos déficits públicos para enfrentar os problemas sociais são elementos a fazer a sociedade acreditar que o governo não vai controlar gastos e, por consequência, vai aumentar a dívida pública.
Se há fato capaz de ampliar a incerteza e induzir empresários e investidores a botarem o pé no freio em suas decisões de investimentos é a falta de clareza sobre o pensamento do governo, suas políticas e seus programas. Os agentes econômicos são muito sensíveis, em especial porque a atividade empreendedora é difícil e cheia de armadilhas, fazendo o fracasso ser um fantasma a rondar o tempo todo a vida de quem investe e produz. Tanto é assim que a corrente de pensamento econômico chamada “escola das expectativas racionais” mostra a elevada sensibilidade do mercado a qualquer medida, declaração ou ato gerador de incertezas e riscos. O Brasil já tem falhas estruturais demais, a começar pelas leis confusas, instáveis e de baixa qualidade, para aguentar piora na economia causada por declarações do governo sobre suas intenções de fazer o que já deu errado no mundo inteiro.
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