Décadas atrasado, Brasil tem muito a aprender com países campeões em saneamento básico
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Raquel Hoshino, especial para Gazeta do Povo
Brasil está quase 30 anos atrasado em relação à experiência internacional, o que causa grandes prejuízos aos mais pobres, com consequências como maior mortalidade infantil| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Com 35 milhões de pessoas sem água potável e quase 100 milhões (44,2% da população) sem acesso a rede de esgoto, segundo dados do Instituto Trata Brasil, o país retrocedeu ainda mais em saneamento básico no último mês, com dois decretos assinados por Lula alterando o Marco do Saneamento. De acordo com especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o Brasil está quase 30 anos atrasado em relação à experiência internacional, o que causa grandes prejuízos aos mais pobres, com consequências como maior mortalidade infantil. Enquanto isso, nações como Israel, Chile, Espanha e outros países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e União Europeia, Noruega, Dinamarca, Suécia, e Japão são exemplos em termos de saneamento.
Em vigor desde 2020, o Marco Legal do Saneamento mira universalizar os serviços, garantindo que, até 2033, 99% da população brasileira tenha acesso a água potável e 90% a coleta e tratamento de esgoto. De acordo com Gesner Oliveira, ex-presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) e coordenador do Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais da Fundação Getúlio Vargas, o Brasil já está de duas a três décadas atrasado em relação à experiência internacional.
Um atraso desses significa maior mortalidade infantil, incidência maior de doenças durante a gestação com possíveis prejuízos ao bebê e até mesmo absenteísmo nas escolas. “Quando você compara com Colômbia, Uruguai e Argentina, esses países acabam tendo cobertura maior que a brasileira”, afirma.
Confira o que o Brasil pode aprender com os países melhor colocados em saneamento ao redor do globo:
Planejamento
O saneamento é um tipo de infraestrutura complexa, que requer muito capital e que leva vários anos do planejamento à implementação. “Você precisa de toda uma projeção de população, de intervenção dos projetos no meio ambiente, de planejamento de uma bacia hidrográfica. A cidade precisa estar planejada”, afirma o ex-presidente da Sabesp. “Os países onde há mais coordenação da política pública e mais planejamento apresentam melhor desempenho também.”
Para o engenheiro civil Álvaro Menezes, tesoureiro-adjunto da Diretoria Nacional da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), que faz um ranking do saneamento baseado nos países que disputam a Copa do Mundo de Futebol – uma maneira lúdica de chamar a atenção para o tema –, “ter planejamento e respeitá-lo” é algo que os países bem-sucedidos fazem e que poderia servir de modelo para o Brasil.
Na Copa do Mundo do Saneamento 2022, por exemplo, o Brasil teria sido eliminado durante as oitavas de final. E a Coreia do Sul seria a grande campeã (levando o bicampeonato), seguida por Suíça e Estados Unidos. Em quarto lugar, ficaria a Inglaterra.
Gestão
A gestão profissional é outro segredo. “Você pode conseguir o recurso e fazer uma obra maravilhosa, de abastecimento de água, de esgotamento sanitário e de tratamento de resíduos sólidos, mas depois pode não ter condição de operar. Entregar [a obra] para uma operação deficiente, ao longo do tempo vai deteriorando a qualidade do serviço”, explica Menezes, reforçando que operação tem de se sustentar.
Gesner Oliveira completa que uma gestão profissional torna o serviço bom e barato, e que o fisiologismo é um aspecto prejudicial, já que “critérios não profissionais de gestão atrapalham muito”.
Regulação
A estrutura de mercado do saneamento, explica Oliveira, é de monopólio natural. Ou seja, não há duas, três ou quatro empresas cuidando do saneamento de uma cidade, sendo necessária, portanto, uma regulação muito equilibrada: “Não se pode ter uma tarifa baratinha, boa para o consumidor atual, mas que não fará o serviço chegar aos filhos e netos dele, por falta de investimento”.
Outra coisa que, segundo Álvaro Menezes, poderia servir de modelo para o Brasil é “uma regulação mais bem-preparada e que tenha autonomia”, já que nossas agências reguladoras “são muito suscetíveis a interferências políticas”. Ainda mais grave é a incapacidade dessas agências em fazer “a aplicação da agenda regulatória econômica na prestação de serviços de saneamento”, afirma.
Visão de comunidade
Álvaro Menezes coloca ainda um quarto elemento importante, o senso comunitário. “Na América Latina, a gente tem uma solidariedade muito grande com todos os nossos irmãos, mas não tem compromisso comunitário”, diz. “O saneamento é uma atividade integrada. Não dá para imaginar que vai resolver o problema de abastecimento de água e não vai ter que resolver o problema do esgotamento sanitário; que não vai ter de gerenciar bem os recursos hídricos e que não vai ter que cuidar dos resíduos sólidos e da saúde pública”, enumera.
Um agravante no caso do Brasil, segundo Oliveira, é que o espaço público também é pouco valorizado. Enquanto as fazendas do Rio de Janeiro, Vila Rica, São Paulo ou Salvador, por exemplo, eram limpas, “o resto dos dejetos eram jogados na rua”, o que pode ajudar a explicar um pouco o atraso do país em relação ao saneamento básico.
“O ponto é esse: é uma questão que associa a postura cultural da sociedade, entendendo que o saneamento é um bem da saúde pública; é um bem econômico que valoriza seu imóvel; é um bem para a cidade toda, para a sociedade; que limpa as ruas, em resumo. E, do lado das nossas autoridades, o saneamento não pode ser visto somente como algo em que você vai investir bilhões; que vai ter outorgas milionárias. Tem que ser visto como uma atividade que vai gerar saúde pública, que vai reduzir internamentos, que vai fazer com que a vida melhore”, afirma Menezes.
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