O que fazer?

Por
Francisco Escorsim – Gazeta do Povo


| Foto: kalhh/Pixabay

“Para sair de um universo cerrado – e não é necessário de modo algum que seja um campo de concentração, prisão ou uma outra forma de encarceramento, pois a teoria se aplica a qualquer tipo de produto do totalitarismo – existe a solução (mística) da crença. A esse respeito não se vai dizer nada no que se segue, sendo a crença consequência da graça divina, seletiva por essência. As três soluções a que nos referimos são estritamente do mundo, têm caráter prático e se mostram acessíveis a qualquer um.”

É como começa o testamento político de Nicolae Steinhardt, publicado em seu O Diário da Felicidade, terminado de ser escrito em 1972, fruto de sua experiência nas prisões e campos de trabalhos forçados da Romênia comunista por ter se recusado a colaborar com o regime. Foi condenado a 12 anos de prisão em 1960 e libertado em 1964. Eis suas três soluções:

Primeira solução: a de Solzhenitsyn
“Essa solução consta, para quem passa pelo limiar da Securitate ou outro qualquer órgão análogo de inquérito, em dizer a si mesmo, com decisão: neste exato instante, morro mesmo. (…) Se pensar assim, sem hesitação, o indivíduo está salvo. Já não se pode fazer nada contra ele: já não tem nada com que possa ser ameaçado, chantageado, iludido, enganado. (…) Já não existe a moeda com que se possa pagar o preço da traição. Exige-se, todavia, naturalmente, que a decisão seja firme, definitiva.”

A condenação do humorista Léo Lins e a cassação do mandato de Deltan Dallagnol são sinais mais do que evidentes de que a corda totalitária em torno do pescoço da sociedade brasileira está no ponto certo para ser puxada e nos enforcar

Segunda solução: a de Alexander Zinoviev
“A solução reside na total inadaptação ao sistema (…). Não entra no sistema por nada deste mundo, nem mesmo no serviço mais insignificante, mais inútil, mais desengajado. (…) Tal homem, situado à margem da sociedade, é também imune: não há de onde possam exercitar sobre ele nenhuma pressão, não têm o que lhe tirar nem lhe oferecer. (…) Tem a língua solta, fala até cansar, dá voz às mais arriscadas anedotas, não sabe o que é respeito, vê tudo de cima, diz o que lhe passa pela mente, pronuncia verdades que os outros nem sequer poderiam imaginar sussurrar. É o menino do conto de fadas de A roupa nova do imperador, de Andersen. É o bufão do Rei Lear.”

Terceira solução: a de Winston Churchill e de Vladimir Bukowski

“Resume-se ela: em presença da tirania, da opressão, da miséria, das adversidades, das desgraças, das calamidades, dos perigos, não só não te abates, mas, ao contrário, tira delas a vontade louca de viver e lutar. (…) Quanto mais as coisas vão mal para ti, quanto mais imensas são as dificuldades, quanto mais és ferido, mais cercado e submisso aos ataques, quanto mais não entrevês nem sequer uma esperança probabilística e racional, quanto mais o cinzento, a escuridão e o viscoso se intensificam, se inflam e se enredam de modo mais inextricável, quanto mais o perigo te desdenha mais diretamente, tanto mais tens desejo de lutar e conheces um sentimento (crescente) de inexplicável e eminente euforia.”

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Na conclusão de seu testamento, Steinhardt responde aos prováveis discordantes de suas soluções, que considera cada uma como sendo “boa, suficiente e salvífica”, duvidando existirem outras:

“Protestareis, quem sabe, considerando que essas soluções subentendem uma forma de vida equivalente à morte, ou pior que a morte, ou implicando o risco da morte física a qualquer instante. Isso é assim, admirai-vos? Porque ainda não lestes Igor Safarevich, porque ainda não vos destes conta de que o totalitarismo não é tanto a solidificação de uma teoria econômica, biológica ou social, mas muito mais a manifestação de uma atração pela morte. Mas o segredo dos que não podem enquadrar-se no abismo totalitário é simples: eles amam a vida, não a morte.”

Lembrei deste testamento político nesta semana, com as notícias da condenação do humorista Léo Lins e a cassação do mandato de Deltan Dallagnol, sinais mais do que evidentes de que a corda totalitária em torno do pescoço da sociedade brasileira está no ponto certo para ser puxada e nos enforcar.

Considerada do ponto de vista “estritamente do mundo”, essa solução de se dar por morto não significa amar a vida. Sem uma perspectiva transcendente, a morte é só a morte, não uma solução

Já reli esse trecho da obra de Steinhardt dezenas de vezes, como um memento mori, aquele exercício diário de aceitação da morte que monges fazem. Sei que, das três soluções, somente a primeira eu talvez conseguisse aplicar. As outras duas, só por graça divina. E reconhecer isso não deixa de ser uma aplicação da primeira.

Acontece que, considerada do ponto de vista “estritamente do mundo”, essa solução de se dar por morto não significa amar a vida. Sem uma perspectiva transcendente, a morte é só a morte, não uma solução. Não é à toa que o próprio Steinhardt termina seu testamento contradizendo a premissa inicial de que nada falaria sobre a “solução (mística) da crença”, dizendo: “Mas a morte, quem sozinho a venceu? Aquele que com a morte a morte pisou”. Quem? Jesus Cristo. Ou seja, somente aquele que se dá por morto por amor a Cristo irá realmente se salvar. Esta é a única solução.


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