Editorial
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Gazeta do Povo
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro| Foto: Vinicius Loures / Câmara dos Deputados
Depois meses de idas e vindas, tentativas de esvaziamento e reformulações, os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar os acontecimentos do 8 de janeiro, quando as sedes dos Três Poderes em Brasília foram invadidas e depredadas, finalmente, começaram. Na quinta-feira (25), foram escolhidos os nomes do presidente da comissão, o deputado Arthur Maia (União Brasil-BA), aliado do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL); da relatora, senadora Eliziane Gama (PSD-MA); e de dois vice-presidentes, os senadores Cid Gomes (PDT-CE) e Magno Malta (PL-ES). A previsão é de que os trabalhos da comissão durem seis meses. Com base nas investigações realizadas, o relatório final será entregue às autoridades judiciais.
Por mais importante que seja esclarecer os acontecimentos do 8 de janeiro, é difícil acreditar que a CPMI recém-instalada possa trazer avanços reais nesse sentido. Além de ter a concorrência de outras comissões de inquérito, como a CPI sobre o MST e da CPI das apostas esportivas, e de acontecer longe do período eleitoral que poderia atrair mais atenção e interesse, a composição da CPMI do 8 de janeiro é um balde de água fria em quem via nela uma chance de uma investigação séria sobre a invasão aos prédios dos Três Poderes.
A relatora, senadora Eliziane Gama, não consegue nem disfarçar sua disposição em agradar à base governista e seu aliado direto e amigo, o ministro da Justiça Flávio Dino.
Dos 32 integrantes da comissão, 16 de cada Casa Parlamentar, 20 pertencem à base governista, mau sinal quando se considera que um dos objetivos da comissão seria também apurar eventuais omissões das autoridades governistas durante o ocorrido. Outro mau sinal – pior ainda, na verdade – é o fato de a relatora, senadora Eliziane Gama, não consiga nem disfarçar sua disposição em agradar à base governista e seu aliado direto e amigo, o ministro da Justiça Flávio Dino.
Logo após ser declarada relatora, a senadora deixou claro seu posicionamento – que deverá conduzir todo o seu trabalho na comissão. “Houve uma tentativa de golpe, mas não conseguiram o golpe. E um fato é claro, todos nós aqui somos contra o que aconteceu. Queremos garantir ao Brasil a democracia cada vez mais forte, cada vez mais firme”, discursou. Ou seja, antes mesmo de qualquer trabalho, levantamento de dados ou de ouvir possíveis envolvidos, a senadora, responsável por elaborar o relatório final com os resultados dos trabalhos da comissão, já tem definido seu veredicto: foi tudo obras de “golpistas” – e o governo federal não tem qualquer responsabilidade sobre o que ocorreu.
A possível leniência do governo e os abusos cometidos em nome da repressão aos atos de 8 de janeiro, certamente mereceriam uma investigação apurada do Congresso.
É importante lembrar que o próprio governo de Lula relutou bastante em apoiar a abertura da investigação, oferecendo até cargos e liberação de emendas a parlamentares que retirassem o apoio à comissão proposta pela oposição. Oficialmente, o governo de Lula alegou que a instalação da CPMI poderia “atrapalhar” a atuação do Congresso, atrasando ou paralisando a votação de temas importantes. A disposição do governo mudou repentinamente após 19 de abril, quando foram divulgadas as imagens das câmeras de segurança do Planalto em que o ex-ministro do GSI, general Gonçalves Dias, aparece supostamente facilitando a entrada de manifestantes no prédio. Como era inevitável que a comissão fosse instalada, o governo passou a buscar apoio para ser maioria e controlar os trabalhos, e foi bem-sucedido, o deve mudar significativamente os rumos da comissão.
O propósito original da oposição ao pedir a instalação da CPMI era tentar promover uma investigação “alternativa” àquela sob tutela do Supremo Tribunal Federal – em mais de uma ocasião já mostramos as arbitrariedades contra a Constituição e ao Direito Penal cometidas em relação ao caso. Assim, esperava a oposição, seria possível esclarecer se houve ou não leniência por parte do governo Lula, que pode ter tomado ações no sentido de facilitar o acesso dos invasores às sedes dos Três Poderes, como o esvaziamento proposital das forças de segurança locais.
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Outro ponto seria identificar os abusos cometidos na prisão dos manifestantes – por ordem de Alexandre de Moraes, aproximadamente 1,5 mil brasileiros, entre eles muitas mulheres e idosos, foram detidos e levados para um ginásio da Polícia Federal, sem a mínima condição para comportá-los. Desse total, 1,3 mil foram denunciados em massa pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Como mostrou a Gazeta do Povo, as denúncias são todas igual, genéricas, em um enorme “copia e cola” jurídico que altera apenas nomes e dados pessoais dos denunciados, o que contraria diretamente os princípios básicos do direito penal.
Esses dois pontos, a possível leniência do governo e os abusos cometidos em nome da repressão aos atos de 8 de janeiro, certamente mereceriam uma investigação apurada do Congresso Nacional, mas agora, com maioria governista e uma relatora amiga de um possível investigado – a atuação de Flávio Dino no 8 de janeiro era uma das que certamente entraria no rol de investigados da CMPI – o risco é que se tenha um mero embate de narrativas prontas e tentativas de blindagem ao governo federal e à atuação escandalosa do STF. Uma pena que um instrumento que poderia ser tão valioso para a democracia corra o risco de ser apenas uma perda de tempo, um jogo de cartas marcadas, com final já sabido.
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