Quando os apegos ideológico e partidário sobrepujam interesses estratégicos de longo prazo do Estado e da sociedade, se desfaz à noite o que foi feito durante o dia

Por Isaías Pascoal – Jornal Estadão

Em dois editoriais recentes, nos dias 28 de março e 8 de maio de 2023, este Estadão abordou o tema da relação entre educação e o mundo do trabalho, enfatizando a importância da formação profissional dos jovens e do enfrentamento dos desafios impostos aos sistemas educacionais pelas rápidas transformações tecnológicas do mundo atual e seus impactos na forma de organização do trabalho.

A educação técnica e profissional, vista de forma depreciativa no passado, há bom tempo ocupa um lugar estratégico no planejamento do desenvolvimento econômico e social da maior parte dos países. No Brasil, desde o início da era Vargas ela tem avançado. O Sistema S se consolidou como instituição ofertante desta modalidade de ensino. Vários Estados montaram estruturas apreciáveis de educação profissional, constituindo-se como exemplar o caso de São Paulo. No final de 2008, a União criou os Institutos Federais de Educação (IFs), que, em conjunto com outras instituições federais de ensino técnico, fizeram a rede pública federal se expandir por todo o País.

Os avanços não são desprezíveis, mas estão aquém do padrão desejável visto nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nos últimos 30 anos, o avanço da educação profissional no Brasil, além de enfrentar os desafios inerentes a uma modalidade cara de educação, presenciou o conflito entre concepções de formação profissional calcadas em pressupostos filosóficos, ideológicos e políticos antagônicos.

A mudança de grupos políticos no poder tem levado a alterações no quadro normativo que rege a formação profissional, pressionando as unidades escolares a um exaustivo trabalho de adaptação. O que era para ser uma política de Estado tem se transformado em política de governos criadora de descontinuidades que, em boa parte, são tributárias de injunções políticas e ideológicas.

Em 1997, o governo Fernando Henrique Cardoso editou o Decreto n.º 2.208. O decreto ajustou a oferta de ensino técnico às exigências da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), n.º 9.394/1996, e aos parâmetros internacionais. Foi o início de um longo processo de elaboração de documentos normativos da educação profissional no Brasil, que durou até 1999. Sua decisão mais controversa foi a proibição do ensino integrado na formação profissional de nível médio.

Em 2004, já sob o governo Lula, foi editado o Decreto n.º 5.154. Ele, ao revogar o Decreto n.º 2.208, permitiu a volta do ensino integrado e foi saudado pelos opositores ao conjunto de reformas do período anterior como o resgate do ensino técnico e profissional autêntico. Até 2012, um novo conjunto normativo foi erigido com novas orientações e sob marco ideológico e político diferente do anterior.

O Parecer n.º 11 e a Resolução n.º 6 de 2012 do Conselho Nacional de Educação (CNE) se tornaram os documentos mais importantes do novo arranjo. Em suas entranhas estão expressos os conceitos, as esperanças e o sentido do que a rede federal de ensino, parte da intelectualidade atuante no campo da educação e vários movimentos sociais e sindicais levantaram como bandeira de luta e identidade ideológica. Entre eles, o conceito de ensino integrado, que se transformou no marco identitário mais importante, uma espécie de Santo Graal.

A partir de 2015, o governo Dilma mergulhou na crise política, veio o impeachment e um novo grupo ascendeu ao poder sob a liderança de Michel Temer. Teve início um conjunto de reformas na educação, que tem na reforma do ensino médio o seu ponto mais importante. Culminou com a edição da Resolução CNE/CEB n.º 01/2021, que normatizou a oferta da formação profissional de nível técnico no Brasil.

Antevendo as consequências das reformas em curso, os variados setores sociais que se opunham à reforma se mobilizaram. Os IFs se destacaram na oposição. Entre 2018 e 2021, o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) produziu dois documentos que tiveram grande impacto na mobilização interna da rede federal e na reorganização da oferta do ensino integrado: as Diretrizes Indutoras para a Oferta de Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e a Análise da Resolução 01/2021/CNE e Diretrizes para o Fortalecimento da EPT na Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. Neles, os IFs explicitam as razões da sua oposição à reforma de 2017 e à adesão às Bases Nacionais Comuns Curriculares.

A vitória eleitoral de Lula em 2022 deu fôlego às forças sociais contrárias à reforma de 2017. Em razão de pressões sociais, o cronograma de implantação da reforma foi interrompido e foi criado um fórum de discussão da questão.

Divergências em educação são normais, mas elas se tornam autofágicas quando os apegos ideológicos e partidários sobrepujam os interesses estratégicos de longo prazo do Estado e da sociedade, resultando em desfazer à noite o que foi construído durante o dia. Assim, “o manto de Penélope” pode nunca terminar de ser confeccionado. Se na Odisseia, ao fim, o estratagema serviu a Ulisses, na vida real ele pode se restringir a mero canto de sereia.

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PROFESSOR APOSENTADO NO INSTITUTO FEDERAL SUL DE MINAS GERAIS, ESTUDIOSO DA EDUCAÇÃO, DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS (UNICAMP)

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