Agressão em Roma mostra que o debate político adora ressuscitar os mortos: do comunismo aos políticos declarados inelegíveis
Por Marcelo Godoy – Jornal Estadão
Em Non gridate più (Não gritem mais), Giuseppe Ungaretti inicia seu poema com o verso Cessate d’uccidere i morti – Parem de matar os mortos, na tradução de Aurora Bernardini. O leopardiano Ungaretti fazia as palavras assumirem uma intensidade em que um simples vocábulo se tornava um termo elegante, no qual vagavam a fantasia e o sentimento.
Mas, se aos poetas é possível levar ao verbo o inexprimível, aos iracundos é permitido apenas a aridez monótona, vulgar, cansativa e vexatória do xingamento. Dar a Alexandre de Moraes a alcunha de “comunista” mostra que o criador do apodo não leu sequer uma linha do autor que tanto odeia: Karl Marx.
Ele escreveu há quase dois séculos, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, que a reação do partido da ordem diante de qualquer ação da oposição era sempre o mesmo e invariável veredicto: “socialismo!”. “Até mesmo o liberalismo burguês é declarado socialista”. O desenvolvimento cultural, a reforma financeira, a construção de ferrovias e o “defender-se com um porrete quando se é atacado com um florete”: tudo era socialismo.
Passados 200 anos, os hábitos perduram. Mas, nos tempos atuais, tudo também é bolsonarismo. Seria o partido da ordem, nas suas mais variadas manifestações, ainda a expressão do gendarme? Ou não passaria de falta de bons modos e de civilidade a ação do empresário em Roma?
São várias as manifestações dos que pretendem representar o partido da ordem. Luís Roberto Barroso, homem de boas leituras, permitiu-se a frase “Perdeu, mané” para depois achar normal ir a um convescote da UNE e se associar em um palanque à derrota do bolsonarismo.
Açular os órfãos de Jair Bolsonaro tornou-se tão enfadonho quanto o uso da palavra comunismo. Uma revive o fantasma do socialismo real, morto e enterrado nos escombros do Muro de Berlim; outra, o de Bolsonaro, fulminado pelo TSE.
Moraes, no entanto, não deve se ver só como vítima de um episódio, que expõe o espírito do tempo. O ministro ofendido devia aproveitar a lição do destino de Sergio Moro. Nesse caso, não é preciso consultar o adivinho Tirésias para “perceber a cena e antever o resto”.
Moro viveu dias de Moraes na Lava Jato. E Moraes, viverá dias de Moro? Se a Justiça é indissociável da gravitas, o sentimento de honra e dever, ela também o é da pietas, essa virtude cívica que Spinoza ligara em sua Ética à civilidade.
Pode-se pôr a força do peso de um cargo na balança com que se julga os réus, mas não se pode obter Justiça. Assim como se pode empalmar o poder sem a piedade, mas não a glória. A força e o destempero continuam a fustigar os mortos e os inelegíveis. E a construir apenas um futuro sem palavras elegantes.