História por Amanda Pupo e Mariana Carneiro • Jornal Estadão
O governo Lula prepara uma reforma no sistema de apoio oficial às exportações, que ficou praticamente paralisado após os calotes de Venezuela, Moçambique e Cuba. A previsão é que haja uma redistribuição de tarefas de órgãos estatais com o objetivo de dar garantia a empresas que desejam vender no exterior e, ao mesmo tempo, retirar o peso de eventuais indenizações do Tesouro Nacional. A ideia também é diversificar as instituições que financiam as operações comerciais de longo prazo, atividade hoje centrada no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
A mais complicada iniciativa é a capitalização de um novo Fundo de Garantia à Exportação (FGE) em cerca de US$ 1,2 bilhão (cerca de R$ 5,5 bilhões). O fundo já existe contabilmente, mas não tem os recursos para arcar com indenizações. Quando há um calote, o desembolso recai sobre os cofres da União. Este foi o caso dos defaults de Cuba e Venezuela, cujas indenizações ainda estão pagas pelo Tesouro ao BNDES, banco que emprestou dinheiro às empresas brasileiras exportadoras de serviços de engenharia a esses países.
A secretária executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Marcela Carvalho, afirma que uma vez feito o aporte pela União, o fundo passaria a operar de maneira independente, desvinculando-se do Orçamento federal.
“A partir do momento que as operações começaram a dar sinistro, nos vimos numa situação de, de fato, ter que honrar com as indenizações. E para honrar com as indenizações é preciso colocar orçamento. Alguns anos atrás tivemos que correr no meio do ano para suplementar. Isso nos causa muitos problemas, inclusive de confiabilidade no sistema”, disse Carvalho.
A reforma teve seus princípios definidos em reunião da Câmara de Comércio Exterior (Camex), que reúne integrantes de dez ministérios, no mês passado. O objetivo do governo é incentivar exportações de produtos de maior valor agregado, como máquinas e equipamentos, aeronaves e equipamentos de geração de energia. Sem esse tipo de suporte, usado por grandes países exportadores, como China, Alemanha e EUA, as empresas brasileiras perdem capacidade de competir.
A tentativa de robustecer o sistema vem após anos de incerteza no seguro à exportação. Braço do sistema, a Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias (ABGF) chegou a ser incluída no programa de desestatização sob Jair Bolsonaro, que acreditava que o setor privado poderia assumir toda a operação, o que é contestado pela atual administração.
“É o exemplo prático do que é uma falha de mercado (termo técnico para distinguir a falta de interesse do investidor privado). Por isso a política pública é necessária. É um tipo de seguro que nenhuma seguradora privada faz, o Brasil não quer fazer diferente do que os demais países já fazem”, disse Carvalho.
O atual governo quer remodelar a ABGF. Além da análise do risco dessas operações, a ideia é que a estatal também faça a confecção das apólices e opere a concessão do seguro de crédito à exportação. Hoje, o sistema é intrincado. Condições dos empréstimos e do seguro são discutidas no âmbito do Cofig (Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações), que é vinculado ao MDIC, e a palavra final é da Camex.
Segundo Carvalho, as novas atribuições farão com que a Camex seja o órgão que dá as diretrizes estratégicas, deixando a supervisão para o Cofig e a operação para a ABGF. O conselho e a diretoria da ABGF, no entanto, deverão passar por uma reconfiguração de governança, com regras para a indicação de seus ocupantes.Sob o guarda-chuva do Ministério da Fazenda, a ABGF ainda tem como presidente Octávio Luiz Bromatti, indicado em 2020 no governo Bolsonaro.
“Nós, na gestão pública, atuaríamos em nível mais estratégico, na discussão de melhorias na avaliação de desempenho, estabelecimento de metas e diretrizes”, diz Carvalho.
Com um modelo mais robusto de garantias, a expectativa é de que mais instituições financeiras, inclusive privadas, tenham apetite para operar os contratos de financiamento à exportação de longo prazo (acima de dois anos). “Para que a gente não use sempre o BNDES. Primeiro, porque é recurso público. Segundo, que é muito benéfico haver uma concorrência nesse financiamento”, afirma ela.
Além do calote, este tipo de seguro protege as empresas exportadoras (e seus financiadores) de um não pagamento em caso de risco político, como uma guerra, por exemplo.
Desde que esta política enfrentou uma crise de reputação, em 2016, em razão das operações de financiamento à exportação a empreiteiras investigadas na Lava Jato, o governo brasileiro passou a adotar procedimentos distintos, como forma de atender a recomendações feitas pelo TCU (Tribunal de Contas da União). As taxas de juros hoje são ditadas pelos bancos financiadores e não mais pelo Cofig, como no passado.
Com a reforma, a ideia é que também os limites prudenciais e de exposição a países sejam ditados por projeto de lei, com tramitação no Congresso.
A reforma, junto da discussão de criação de um fundo financeiro, deve ficar para o próximo ano, justamente por envolver um custo para a União e mudanças legais.
O subsecretário de Crédito à Exportação, Lázaro Coelho de Deus Lima, explica que o valor de US$ 1,2 bilhão estimado para o novo FGE reflete uma estimativa histórica, que partiu do cenário atual e do pipeline de solicitações atuais de cobertura.
“Fizemos exclusivamente uma estimativa histórica. Pegamos a nossa maior fatia de carteira, que hoje é aviação civil, e tentamos pegar também um pipeline de solicitações presentes”, disse Lima. Segundo ele, o portfólio atualmente conta com US$ 6,3 bilhões em operações cobertas.
Lima afirma que o aporte poderia ser fracionado no tempo, pela capacidade de alavancagem do fundo, que seria gerido de forma privada.
“E ele vai se robustecendo ao longo do tempo, como é com todos os outros fundos. E isso pode chegar a tal ponto que os prêmios efetivamente ganhos, somados às aplicações, podem gerar recurso suficiente para integralmente cobrir a exposição deste fundo”, afirmou Lima.
Para Carvalho, apesar de, historicamente, a mudança de caráter do fundo ter sido considerada como “cara”, o conceito revelaria uma falta de “visão de futuro de médio prazo”. “Se tivéssemos feito essa mudança em 2000, a questão estaria sanada há bastante tempo”, defendeu.
O seguro de crédito à exportação pode ser usado por empresas brasileiras em operações financeiras que envolvem riscos comerciais ou políticos e extraordinários, com período superior a dois anos.
Sem entrar no mérito das denúncias, Carvalho reclamou da confusão feita em torno das exportações garantidas pela União que foram alvo da Lava Jato. “Disseram ‘o Brasil está financiando obras no exterior enquanto aqui não temos nem porto’. Além de uma falácia é uma incorreção. Nós financiamos o exportador brasileiro. O mundo todo faz esse tipo de operação”, diz a secretária, segundo quem mais de cem países contam com um sistema de apoio oficial “robusto”.
Partido que o governo Lula crê ter em sua base de apoio, o União Brasil chegou a articular no início deste ano uma proposta de emenda à Constituição que, na prática, limitaria o papel do BNDES no crédito à exportação. A proposta sugere que os empréstimos de bancos públicos controlados pela União precisariam da autorização do Congresso sempre que o objeto da operação for executado fora do País. O autor da PEC é o deputado Mendonça Filho (União-PE) e está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara desde o fim de março.