Esse vínculo do ‘mandão’ ou do ‘chefe’ com a regra é o fundamento das realezas, nas quais o rei era o centro absoluto do poder, que não tinha lugar sem a sua pessoa

Por Roberto DaMatta – Jornal Estadão

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Fui dos poucos (seguindo a trilha pioneiramente aberta por Antonio Candido) a estudar o malandro (por meio de Pedro Malasartes) e a tentar caracterizar sociologicamente a malandragem – esse estilo de navegação social guiado por uma ética dúplice, conforme sugeri em 1979, em Carnavais, Malandros e Heróis.

Não é tarefa simples realizar isso no Brasil porque herdamos hierarquias ao lado de uma relativa obediência a regras. O inferior obedece à lei e ao superior que a canibaliza, como decreta o nosso personalismo. Em outras palavras, quem administra, comanda, governa leis, regras e normas, com elas se confunde e possui o paradoxal direito de não as obedecer, precisamente porque elas fazem parte de sua pessoa.

BRASILIA DF NACIONAL CAMARA ARTHUR LIRA ARCABOUCO FISCAL 17-05-2023 A Camara dos deputados vota a urgvɬ™ncia do projeto lado Arcabouco Fiscal.  Na mesa o Presidente Arthur Lira Deputado Claudio Cajado (e) relator do projeto.  FOTO WILTON JUNIOR/ESTADAO
BRASILIA DF NACIONAL CAMARA ARTHUR LIRA ARCABOUCO FISCAL 17-05-2023 A Camara dos deputados vota a urgvɬ™ncia do projeto lado Arcabouco Fiscal. Na mesa o Presidente Arthur Lira Deputado Claudio Cajado (e) relator do projeto. FOTO WILTON JUNIOR/ESTADAO Foto: Wilton Junior/Estadão

Esse vínculo do “mandão” ou do “chefe” com a regra é o fundamento das realezas, nas quais o rei era o centro absoluto do poder, que não tinha lugar sem a sua pessoa. Pertenciam ao rei o direito e o poder de mandar. Sua palavra era lei e não podemos esquecer que o Brasil a recebeu – e foi desenhado por um rei e uma corte que saíram do seu local de origem (Portugal), realizando um movimento singular do centro para a periferia colonial, num gesto único na história europeia.

Conta a anedota que Napoleão teria dito que d. João VI (o fujão) teria sido o único monarca europeu que o enganou. De minha parte eu diria que dom João VI inventou a malandragem quando largou, mas não abandonou, o seu reino. Nesse extraordinário movimento, ele ficou “entre reinos”. Ou, para ser mais preciso, ele criou o que Victor Turner chamou de liminaridade e, com isso, instituiu uma ética dúplice, pois fez nascer num só reino duas nobrezas, elites, capitais e – é óbvio – muita ambiguidade. Nesse caso, a lealdade não poderia ser territorial e institucional, mas pessoal.

Seria leviano sugerir que dom João engendrou a malandragem e, com ela, o personalismo que administra a vida de todos nós. Pois quem é capaz de não nomear leais companheiros muito mais valiosos do que protocolos?

Uma das consequências dessa institucionalização de escolher sempre os dois – ou seja: a lei e o amigo, Lisboa e o Rio de Janeiro, a República e a aristocracia sem o império, tem como resultado viver debaixo da sombra de uma densa imprecisão. O formidável meio-termo da terceira margem do rio, como especulou Guimarães Rosa. Pressionados por uma ética dúplice, perseveramos sendo marxistas católicos, espíritas bíblicos, católicos umbandistas, socialistas capitalistas e fascistas anárquicos. Não temos culpa, mas se formos descobertos temos vergonha…

Terra sem regra e rei? De modo algum! Terra com muitas leis e muitos mandões. Tantos tribunais, legalidades e códigos que, querendo ou não, somos todos legais-ilegais – ou seja: formidáveis malandros.

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