História por Redação Itatiaia
O modelo atual de escolha de procuradores para a Procuradoria-Geral da República (PGR) e ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF), que determina que o poder de indicação é do presidente da República, é problemático na medida em que é contaminado por critérios personalistas dos chefes do Executivo, avalia o jurista Gustavo Sampaio, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“No nosso sistema constitucional, o procurador-geral da República é o promotor que acusa o presidente da República, deputados e senadores no STF, e é o STF quem os julga quando eles são acusados por crimes”, diz Sampaio. “Quando, no nosso sistema, o presidente da República indica essas figuras de poder, isso gera uma relação problemática porque, quando abre uma vaga na PGR, no Supremo, o presidente usa o cargo dele para ter uma figura atuando por interesses do governo”.
Ainda conforme o jurista, numa análise objetiva do texto constitucional, a independência dos órgãos e instituições está garantida, mas as normas são frequentemente contaminadas por interesses políticos alheios às regras previstas na Constituição.
“Nós ouvimos muito a comparação errônea de que nosso sistema é como o da Suprema Corte dos Estados Unidos, mas não é verdade. Na Suprema Corte norte-americana, a Suprema Corte não julga o presidente da República, os senadores, os deputados federais. Nosso sistema tem apenas ordenamentos estrangeiros, principalmente herdados dos norte-americanos, que já reclamam uma revisão ou mesmo um redimensionamento”, finaliza.
O debate da relação entre governo, PGR e STF vem à tona no momento em que o procurador-geral da República, Augusto Aras, encerra seu mandato em 26 de setembro e na iminência da indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de um nome ao cargo, que é ocupado por dois anos e prevê chance de recondução à função. Aras chegou à posição escolhido por Jair Bolsonaro (PL).
Entre os mais cotados par substituí-lo estão o vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, e o subprocurador-geral da República Antonio Carlos Bigonha.
Sobre indicações a cargos no STF e na PGR – Mg
A indicação de pessoas a integrarem a Suprema Corte do País e a chefiarem a Procuradoria-Geral da República não são questões exclusivamente afetas ao ramo do Direito Constitucional. Por ser um tema central às discussões de Ciências Criminais, não pode o IBCCRIM se omitir em momentos tão decisivos como os que se avizinham.
Com o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a adesão soberana do País a compromissos firmados em tratados internacionais de Direitos Humanos, cujas normas integram o bloco de constitucionalidade (CF, art. 5º, §§2º e 3º), com a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental (CF, art. 1º, III), não há como o IBCCRIM ficar silente no debate sobre o que se esperar das pessoas que passarão a integrar órgãos de cúpula na justiça criminal.
Há de se levar a sério as previsões sobre notório saber jurídico e reputação ilibada (CF, art. 101) no caso de pretendente a integrar o STF, e, com a matiz necessária, da representatividade dos objetivos e princípios institucionais (CF, art. 128, § 1º), em se tratando de liderança do Ministério Público da União.
Há de se evitar, por exemplo, nas indicações ao STF, qualquer favorecimento personalista por parte do Poder Executivo, inevitável enquanto se perpetuar o critério de relação de confiança entre pessoas – de difícil aferição jurídico-objetiva -, somado a sabatinas pelo controle legislativo como meras proformas.
Não é preciso exemplificar para se ver que o STF só se fará mais legitimado – enquanto cume do exercício contramajoritário na repartição de Poderes – se quem o integrar forem as melhores pessoas como premissa, e não como promessa. Os quadros a serem ocupados devem preencher os requisitos na raiz, e não como expectativas para disfarçar a indicação por aliança futura ou motivação pessoal.
A pessoa a integrar o STF deve ter trajetória pública conhecida, respeitabilidade adquirida ao longo de décadas de acúmulo e aprofundamento teórico. Enfim, visão jurídico-social madura que justifique o exercício da jurisdição como um poder-dever.
Sobre a indicação de pessoa a chefiar a PGR, com atuações umbilicalmente ligadas ao exercício da jurisdição constitucional do STF e timoneiro da atuação criminal do Ministério Público Federal, o leque de atuações é tão fundamental e determinante aos rumos da política criminal que tampouco se pode fechar os olhos para a exigência de seriedade e distanciamento do Poder Executivo e do Poder Legislativo.
Num e noutro órgão, não se pode imaginar que a pessoa possa se aproximar de um programa de governo, com ideia presa a uma razão eleitoral, como se pudesse ser vista como um garante ou pagador de promessa.
Há engenharia constitucional a ser discutida, por certo, como a duração dos mandatos num e noutro cargo. Mas isso não interdita a atenção ao procedimento. E foi por isso, por exemplo, que o IBCCRIM, em iniciativa inédita na sociedade civil, reuniu, em 1º de junho de 2023, figuras de peso do cenário brasileiro e latino-americano para discutirem a sucessão da PGR. Nomes como Alberto Binder, Claudia Paz y Paz e outros, além do presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), advogados e outros membros do MPF, dispuseram-se a tratar do cenário de sucessão na cúpula do Ministério Público da União.
Foi um passo essencial rumo a uma maior legitimidade em termos de atuação da pessoa a chefiar a instituição, tornada autônoma pela Constituição de 1988 em relação ao Poder Executivo e ao Judiciário, mas nem por isso galgada a um Quarto Poder. Além do debate sobre a lista tríplice e a vinculação do nome como aquele a ser indicado para chefiar a carreira, a sociedade tem o direito de conhecer previamente os rumos que a PGR entende adequados à política criminal brasileira. O passo dado significou, inclusive, a abertura a um debate que não se confunde com o corporativismo, pois não é de uma política de classe que se trata, mas da respeitabilidade de uma instituição central para o País, como Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil.
Em um caso e noutro, é fundamental que a pessoa mostre o entendimento sobre temas caros ao IBCCRIM. Assim, por exemplo, a política de guerra às drogas (RE 635.659), o racismo institucional (HC 208.240), o juiz de garantias (ADIns 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305), a inamovibilidade dos Magistrados (ADIn 5.070), a permissão à interrupção da gravidez desburocratizada (ADPF 989), a política de respeito à liberdade autoinformacional e a validade de mecanismos genéricos de colheita de informações em persecuções penais (RE 1.301.250), o encarceramento de pessoas em manicômios (ADIn 7.389), entre outros.
Há temas que se imbricam diretamente com as atividades dos atores do processo penal e do modelo acusatório perseguido pelo constituinte, como se vê da ADIn 3.450 e das ADPFs 847 e 881, com os contornos de regulação de colaborações premiadas (ADPF 919), e a eficácia temporal de acordos de não-persecução penal (HC 185.913).
O IBCCRIM não observa passivamente o procedimento para só depois criticar ou aplaudir a escolha sacramentada. Na democracia participativa, formulam-se sugestões ao longo do procedimento da tomada de decisões, particularmente as vindouras. E a Suprema Corte, assim como a PGR, deve espelhar a conformação da sociedade brasileira em sua composição.
Oxalá a atenção à representatividade de gênero e raça desperte sensibilidade e razão, já que, em nosso País, o contingente de pessoas presas, sobretudo cautelarmente, é composto majoritariamente por cidadãos racializados. É um truísmo e um constrangimento reiterar que a desigualdade social anda de mãos dadas com a seletividade penal e o racismo institucional. Por outro lado, a representatividade de homens e mulheres pretos e pretas não se vê nos órgãos da Justiça. Decide-se sobre a vida de homens e mulheres pretas, alijando-os, contudo, de tomarem parte desse processo.
O ciclo histórico de desigualdade de gênero e de racismo só será mitigado se as estruturas que permitem que ele se perpetue forem quebradas. Enquanto isso não ocorrer, o procedimento que privilegia a indicação de homens, majoritariamente brancos, seguirá visto como normal, como se isso refletisse a melhor legitimidade nos quadros de cúpula dos dois órgãos do sistema de justiça.
O IBCCRIM espera que as indicações de pessoas a integrarem o STF e a PGR observem a realidade brasileira e, por isso mesmo, que as vagas sejam preenchidas por mulheres, preferencialmente negras e historicamente comprometidas com o combate ao racismo e à misoginia, ao encarceramento em massa da juventude pobre, preta e periférica, o que tem sido a tônica da política criminal nacional.
Ou temos quadros que justifiquem essa inflexão e, portanto, é urgente levarmos a sério a pluralidade da sociedade brasileira, democratizando os dois órgãos; ou, se não os temos – no que realmente não se pode acreditar -, o problema é muitíssimo mais profundo do que qualquer sugestão e convida a reflexões mais dolorosas quanto à sociedade brasileira.
Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/portal/ibccrim/editorial/392219/sobre-indicacoes-a-cargos-no-stf-e-na-pgr