História por Notas & Informações • Jornal Estadão
“As ideias que moldaram o mundo globalizado de hoje foram uma resposta ao desastroso mundo desglobalizado da primeira metade do século 20. Vendo o quanto uma economia mundial dividida contribuiu para a depressão econômica, o conflito e, ao fim, para a 2.ª Guerra Mundial, os arquitetos do pós-guerra resolveram construir ao invés disso uma economia mundial aberta e integrada.” Assim a Organização Mundial do Comércio (OMC) resumiu em seu último relatório sobre o comércio global o espírito do sistema multilateral de comércio que ela supervisiona. “Um comércio mais livre entregaria crescimento e desenvolvimento compartilhados. A interdependência econômica daria aos países uma participação no sucesso um do outro. Regras e instituições internacionais promoveriam estabilidade, confiança e colaboração. O antídoto ao nacionalismo econômico de soma zero foi uma cooperação econômica global de soma positiva.”
Assim foi, especialmente após a Cortina de Ferro ser rasgada. Desde então, a extrema pobreza caiu de quase 40% da população global para 8,4%; as crianças que morrem antes dos 5 anos, de 9,3% para 3,7%; o analfabetismo, de 25,7% para 13,5%; a mortalidade materna caiu 55%; e a expectativa de vida cresceu de 64 para 73 anos. Em termos de bem-estar, foram as melhores décadas da história da humanidade.
O progresso não foi homogêneo. Há países que retrocederam. Mas a maioria melhorou e os casos de maior sucesso, em todos os continentes e culturas, têm um denominador comum: mais liberdade para inovar, criar, trabalhar, comprar e vender. Segundo o índice de Liberdade Econômica do Fraser Institute, o mais sistemático e abrangente do mundo, o PIB per capita do quartil de países mais livres do mundo é mais de 7 vezes maior que o do quartil dos menos livres, onde a miséria é 16 vezes maior. Países com mercados mais livres crescem mais rápido, têm melhores salários, menos corrupção e mais investimento, bem-estar subjetivo, democracia e respeito aos direitos humanos.
Mas a última década foi turbulenta: crise financeira, caos e terrorismo no Oriente Médio, crises migratórias, a pandemia, extremos climáticos, arrefecimento das democracias e recrudescimento das autocracias, tensões geopolíticas e uma guerra em larga escala que pode detonar uma 3.ª Guerra Mundial.
Contra todas as evidências socioeconômicas, a esquerda estatista requentou seus dogmas – ainda por esses dias o presidente Lula vociferou na ONU sobre a “massa de deserdados e excluídos” legada pelo “neoliberalismo” – e ganhou aliados nas direitas nacionalistas. Establishments assimilaram a retórica do big government, do protecionismo, da repatriação das cadeias de valor e da fragmentação em blocos geopolíticos, e populistas à direita e à esquerda, de fronts opostos, bombardeiam um mesmo inimigo: o livre-comércio. O caminho para um mundo mais seguro, inclusivo e sustentável seria a “desglobalização”.
Com efeito, a globalização trouxe danos colaterais: o crescimento dos países pobres intensificou as emissões de carbono; classes operárias nos países ricos perderam empregos; a capitalização de autocracias como a China ampliou seu potencial de agressão.
Mas a OMC traz fartas evidências e projeções demonstrando que mais fragmentação só agravaria esses problemas. O livre-comércio pode contribuir para mais segurança econômica e menos conflitos, diversificando riscos e facilitando resolução de disputas multilaterais; para menos desigualdade, incluindo economias pobres nas cadeias de valor e promovendo convergência econômica e redução da pobreza; e para mais sustentabilidade, ampliando a disponibilidade de bens e serviços ambientais e viabilizando uma governança coordenada.
A boa notícia é que a globalização continua a crescer. A má é que ela está se desacelerando. A retórica nacionalista ganha terreno e pode virar o jogo. Mas a realidade é que hoje, como sempre, o caminho para um mundo mais próspero, justo e limpo, está em mais abertura e integração, não menos. Antes que de um choque de desglobalização, o mundo precisa de uma onda de “reglobalização”.