História por Giovana Girardi • Agência Pública
Os erros e acertos do governo ante à escalada de fogo e fumaça na Amazônia© Fornecido por Agência Pública
Na semana passada comentei neste espaço sobre como a extrema direita estava se valendo das notícias de seca e queimadas na Amazônia para alimentar um discurso anti-Lula e anti-Marina Silva com um tanto de desinformação e muita leitura enviesada dos fatos.
Mas na tentativa de traçar a big picture dos acontecimentos na Amazônia nos últimos anos, traçando a cadeia de responsabilidades, talvez tenha me faltado retratar com mais precisão o cenário caótico que de fato se instalou na região neste último mês. E três fatores me alertaram para isso logo cedo nesta quarta-feira (1), o que me impeliu a voltar ao tema aqui.
O primeiro foi um vídeo postado pela jornalista Eliane Brum, que há muitos anos escolheu viver em Altamira (PA) e de lá reportar a partir do que ela chama de Centro do Mundo – sim, a Amazônia.
Com o semblante abatido e apavorado, ela começou: “Eu preciso dividir com vocês que eu não aguento mais acordar todo dia, todo dia, todo dia com cheiro de fumaça, testemunhando a floresta queimar, com o céu encoberto. Faz muito tempo que a gente não vê o azul do céu”. Na sequência, comparou o que está acontecendo com um holocausto. “Macacos, araras, cobras estão queimando em dor excruciante, morrendo pela mão de criminosos.”
Desde setembro temos visto o quadro de seca e estiagem se agravando na região. Começou com imagens de peixes e mais de uma centena de botos mortos pelo aumento da temperatura das águas. Na sequência os rios chegaram a seus níveis mais baixos, vimos populações isoladas, sem água para beber na maior bacia hidrográfica do mundo. Então começaram as queimadas.
Ao ver o vídeo de Brum, entrei na página do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) onde ficam concentrados os dados de monitoramento das queimadas no Brasil. Já era sabido, desde mais ou menos metade do mês, que outubro bateria recordes de focos no Amazonas. Hoje foi possível ver o balanço dos 31 dias. E de fato tivemos um cenário aterrador.
O bioma Amazônia como um todo registrou em outubro 22.061 focos de queimadas, o maior valor para o mês desde 2008 e 58% superior ao ocorrido no mesmo mês de 2022. No Amazonas, onde a estiagem começou, foi de longe o pior outubro dos registros do Inpe (iniciados em 1998), com o recorde de 3.858 focos – 60% acima do pior outubro até então, que era de 2009.
O problema já se estende por outros estados. O Pará teve o segundo pior outubro da série histórica, com 11.378 focos, só um pouco atrás do que foi registrado em outubro de 2008, com 11.568 focos.
No dia 13 de outubro, quando o cenário estava se revelando crítico, o governo reagiu e dobrou o número de brigadistas no Amazonas. Nesta terça-feira (31), o presidente Lula fez uma postagem citando essa ação.
“Na Amazônia, o governo federal reduziu o desmatamento em 49,5% em 2023, no comparativo com o mesmo período do ano passado, mudando a tendência depois de anos de descaso com o meio ambiente na gestão anterior. Durante as queimadas que deixaram o Norte sob a fumaça, os brigadistas do Ibama e do ICMBio tem reforçado o combate aos incêndios feitos pelos estados, reduzindo os focos em 78% na terceira semana de trabalho. O @mmeioambiente voltou a trabalhar em defesa do meio ambiente e da vida”, escreveu na conta oficial no X/Twitter.
Nada incorreto nos dados que ele destacou, mas a terceira coisa que me chamou atenção nesta quarta-feira foi um outro post reagindo a esse comentário de Lula. “A little too late [um pouco tarde demais], presidente. Ao mudar o nome do MMA pra incluir as mudanças do clima, as ações preventivas ao fogo deveriam ter tomado protagonismo imediato. Combater fogo é paliativo. Urge a criação de um grupo técnico-científico sobre os incêndios na Amazônia”, escreveu Érika Berenguer, ecóloga que já citei outras vezes por aqui.
Especialista em fogo, ela está há semanas na região de Santarém, no Pará, sua área de estudo, sentindo na pele o que está acontecendo por lá. O desabafo era quase pessoal, assim como o de Brum. Berenguer me contou estar com febre, tossindo, “quase com pneumonia”, como ela descreveu.
Se no Amazonas o problema de fato se concentrou mais no começo do mês, com uma desaceleração da quantidade de focos na segunda metade, no Pará foi ao contrário. Em apenas quatro dias, entre 25 e 28 de outubro, o Inpe registrou 3.848 focos – 33% do que foi detectado no mês inteiro. É o que tanto a pesquisadora quanto a jornalista estavam testemunhando.
Já disse aqui outras vezes, mas não custa repetir. Há uma conjunção de fatores em curso na Amazônia que contribuem com esse quadro. Talvez o mais forte deles torne quase impossível de evitar todo o resto, que é a estiagem extrema resultante de um El Niño intenso combinado com as mudanças climáticas. A floresta está mais seca, logo mais suscetível a queimar. Mas ainda assim o fogo não é espontâneo. Depende de alguém riscar o fósforo.
E fogo, na Amazônia, costuma ocorrer por dois motivos principais: como etapa final do processo de desmatamento (para acabar de limpar o terreno) e para manejar pastagem. Nos dois casos, há o risco, quando o clima está muito seco, de as chamas se espalharem para a mata em pé. Aí se dá o incêndio florestal. A mortalidade de árvores em anos como este aumenta, o que degrada a floresta remanescente. Ou seja, mesmo o que não foi desmatado fica mais fraco, diminuindo a capacidade de prestar os serviços ecológicos, como chuva e a absorção de gás carbônico da atmosfera.
O governo Lula teve uma atuação realmente digna de nota neste ano ao derrubar as taxas de desmatamento. Em nove meses (de janeiro a setembro), os alertas de corte da floresta caíram quase à metade, na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo dados do sistema Deter, do Inpe.
Mas havia muita madeira ainda derrubada de anos anteriores esperando para ser queimada. Para sorte da Amazônia, como já disse Berenguer, nos anos anteriores, sob Jair Bolsonaro, o período de seca não foi intenso, pelo contrário. Havia uma La Niña em curso (o oposto do El Niño), e a Amazônia estava mais úmida.
Já se sabia que este ano seria diferente, que havia muita matéria orgânica acumulada. Evitar que mais tora estivesse no chão para ser queimada foi um ganho enorme. Mas pode ter faltado agir mais cedo para evitar o princípio das queimadas. Para considerar políticas que evitem a degradação também da floresta que resta.
O país tem um compromisso, junto ao Acordo de Paris, de reduzir suas emissões de gases de efeito estufa. Hoje e historicamente, o desmatamento da Amazônia foi a principal fonte de emissão do Brasil. Diante do aumento da perda da floresta nos anos Bolsonaro, ficamos mais longe das nossas metas até 2025.
Nesta semana, pesquisadores que fazem o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg), ligado ao Observatório do Clima, calcularam que o Brasil só vai conseguir cumprir sua meta se acelerar a redução do desmatamento aos mesmos níveis que ocorreram no Brasil entre 2008 e 2012 – o período de mais intenso controle já aplicado na Amazônia. Em 2012 a taxa de desmatamento chegou ao menor nível da história.
Só que as queimadas podem prejudicar todo esse esforço. Em um artigo publicado em meados deste mês na revista Nature Ecology and Evolution, 18 pesquisadores do Brasil e do exterior alertaram que a degradação da floresta provocada pelos incêndios que estão ocorrendo pode acelerar um processo, já em curso, em que a Amazônia passe a emitir mais gás carbônico do que absorve hoje.
Seria certamente o pior dos mundos, como alerta há alguns anos a pesquisadora Luciana Gatti. Lula e companhia vão precisar fazer bem mais para salvar a Amazônia e ajudar o planeta a se salvar do aquecimento global.