História por Notas & Informações  • Jornal Estadão

Em evento sobre os aspectos jurídicos do agronegócio, realizado no dia 6 de novembro na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a ministra aposentada do Supremo Tribunal Federal (STF) Ellen Gracie analisou o atual entendimento sobre o art. 231 da Constituição, que trata dos povos indígenas e da demarcação de suas terras. Diz esse texto constitucional que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Como se sabe, no final de setembro, o STF alterou a jurisprudência sobre o tema, rejeitando a tese do marco temporal, definida em 2009 no caso Raposa Serra do Sol. Por maioria, o plenário da Corte decidiu agora que não cabe utilizar a data da promulgação da Constituição Federal – 5/10/1988 – como prazo-limite para a definição de ocupação tradicional da terra por povos indígenas.

Dias depois da decisão do Supremo, o Congresso aprovou a Lei 14.701/2023, permitindo a demarcação de novos territórios indígenas apenas nos casos em que essa ocupação seja anterior a outubro de 1988. Essa restrição foi vetada, juntamente com outros pontos, pelo presidente Lula da Silva. O Legislativo ainda não analisou os vetos do Executivo.

Diante desse cenário de acirrada controvérsia, no qual muitos veem a decisão do STF como o fim da segurança jurídica no campo, Ellen Gracie alertou para um aspecto importante do tema, que muitas vezes tem sido ignorado. Mais do que a questão de uma data-limite para a definição de ocupação tradicional da terra por povos indígenas, o decisivo para um efetivo respeito à propriedade privada é assegurar que o processo de demarcação dessas terras seja corretamente realizado.

O processo é regulado pela Lei 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e pelo Decreto 1.775/1996. A lei diz que “as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”. O órgão responsável é a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Segundo o Decreto 1.775/1996, a demarcação “será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará (…) estudo antropológico de identificação”. No entanto, como as quase três décadas de vigência do decreto mostram, esses estudos antropológicos são muitas vezes falhos, sem o necessário rigor técnico.

A agravar a imprevisibilidade e a insegurança, o procedimento de aprovação do relatório pela Funai não prevê a convocação das pessoas que poderão ser afetadas pela demarcação. O Decreto 1.775/1996 diz apenas que o estudo antropológico, depois de aprovado, deve ser publicado na sede da prefeitura na qual está localizado o imóvel e que eventuais interessados poderão se manifestar no prazo de 90 dias “para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório”.

Na prática, é um procedimento administrativo sem contraditório, o que estimula a judicialização dos casos, com as disputas pela terra prolongando-se indefinidamente no tempo. É justamente o cenário que o legislador constituinte quis evitar, estabelecendo que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição” (art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

A controvérsia em torno do marco temporal deve ser estímulo para aprimorar o processo administrativo de demarcação das terras indígenas, processo esse que frequentemente afeta direitos constitucionalmente protegidos de terceiros. Não é questão de dificultar o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, mas precisamente assegurar sua efetividade. A situação atual, com disputas judiciais perpassando décadas e gerando diversas instabilidades, também viola a Constituição. Afinal, ela não veio promover a contenda, mas a paz.

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By valeon