História por Notas & Informações • Jornal Estadão
A Constituição de 1988 foi certeira ao conferir ao município um poder político e administrativo compatível com a importância deste ente federativo para toda a população. Afinal, como dizia Franco Montoro, “ninguém vive na União ou no Estado, as pessoas vivem no município”. Entretanto, ao longo desses 35 anos de vigência da “Constituição Cidadã”, o espírito constitucional, eminentemente municipalista, foi distorcido pela criação serial de municípios Brasil afora que não apresentavam a menor condição de existir como entes autônomos, incapazes que são de gerar receitas que, no mínimo, empatem com suas despesas.
Uma pesquisa feita pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) sobre o estado das finanças das prefeituras, com foco na capacidade de pagamento do 13.º salário para os servidores, é o retrato mais recente desse descompasso entre o desejo original da sociedade de alçar o município à categoria de ente federativo e a realidade de muitas das 5.568 cidades brasileiras – 1.385 delas criadas pós-1988. De acordo com a pesquisa, 1.969 municípios (44,2% dos respondentes) admitiram que têm débitos em atraso com fornecedores; 26,2% informaram à CNM que fecharão 2023 com as contas no vermelho.
Muitas dessas prefeituras são incapazes não apenas de pagar o 13.º salário de seus servidores nos prazos legais, como constatou a CNM, mas até mesmo de custear a prestação de serviços básicos, como coleta de lixo.
O problema não está circunscrito às Regiões Norte e Nordeste. Em São Paulo, por exemplo, 213 das 582 prefeituras consultadas pela CNM (36,6%) disseram estar com dificuldade para quitar suas obrigações com fornecedores. Ainda que a maioria dos municípios paulistas (61,2%) tenha informado estar com as contas em dia, é preocupante constatar que mais de um terço das cidades do Estado mais rico da Federação não tenha suas finanças equilibradas, o que se reflete, invariavelmente, na qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos.
Há poucos dias, o Estadão publicou uma reportagem revelando que, entre abril de 2022 e abril de 2023, as cidades do interior paulista gastaram R$ 3,4 bilhões apenas para manter as 664 Câmaras Municipais sob fiscalização do Tribunal de Contas do Estado. Esse montante foi usado, exclusivamente, para pagar salários e bonificações de 6.908 vereadores e cerca de 25 mil servidores, além de contas de consumo, viagens, serviços de limpeza e acesso à internet. Em muitos casos, esses gastos foram sustentados, no todo ou em parte, por repasses estaduais, via arrecadação do ICMS, e federais, por meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Não se pode afirmar, é claro, que todos os municípios do País que passam por crises financeiras não deveriam existir como tais. Ainda que possa haver razões comuns para a baixa arrecadação das prefeituras em diferentes regiões do País, como o populismo de Jair Bolsonaro e a irresponsabilidade do Congresso ao chancelar a tentativa do ex-presidente de controlar o preço dos combustíveis em ano eleitoral por meio do corte forçado das alíquotas de ICMS, há muitas particularidades locais que não podem ser ignoradas, como má gestão, e que não têm ligação direta com a eventual incapacidade de geração de receitas. Ao mesmo tempo, é inegável que houve municípios criados sob a nova égide constitucional por razões estreitas, como resolução de disputas locais ou acomodação de interesses políticos. A Constituição teria sido respeitada se a criação desses entes federativos se prestasse a melhorar a vida das pessoas.
Agora, é muito difícil reverter essa perversão do municipalismo que inspirou os constituintes originários. A razão é simples: no Congresso Nacional, instituição autorizada a promulgar emendas à Constituição, são muitos os parlamentares que não têm qualquer interesse em abrir mão de municípios que podem até ser inviáveis financeiramente, mas são riquíssimos do ponto de vista político, servindo-lhes muito bem como currais eleitorais e destino de emendas ao Orçamento para lá de suspeitas.