História por Luiz Guilherme Gerbelli  • Jornal Estadão

O economista Marcos Lisboa avalia que a economia colheu boas notícias em 2023, mas pondera que a área fiscal tem uma “série de desafios” que deixaram de ser um problema de médio prazo e estão se transformando numa questão de curto prazo

“A conta está chegando”, diz Lisboa, ex-secretário de Política Econômica e ex-presidente do Insper. “A preocupação era a médio prazo, mas agora está virando curto prazo. Houve um impulso fiscal muito forte em 2023 e isso está deixando desafios grandes daqui para frente.”

Uma das grandes preocupações apontadas por ele é que o espaço aberto pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição foi preenchido por gastos que se tornaram permanentes, como aumentos de salários.

“Invariavelmente no Brasil, quando se tem uma folga fiscal, por alguma razão, isso acaba virando despesa permanente com salários e aposentadorias. É um traço brasileiro”, afirma. “Os números que estão saindo começam a preocupar bastante. Qual vai ser o tamanho do crescimento do gasto em 2024 e como é que vai se fazer esse ajuste?”, questiona.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Foto:© Fornecido por Estadão

Qual é a avaliação sobre o desempenho da economia em 2023?

Houve boas notícias. Houve um cenário internacional que não foi ruim como se esperava. O mundo tem conseguido reduzir a inflação com muito menos custo do que no passado. E tem índicos – eu vou usar a palavra indícios com muita precisão – de que várias reformas feitas nos últimos anos tiveram bons resultados, como a trabalhista, as mudanças no mercado de capitais, o fim da TJLP (Taxa de Juros de Longo prazo, substituída pela TLP), a reforma da Previdência. Houve uma série de mudanças importantes. Teve todo o saneamento das estatais no governo Temer. Eu acho que o governo Temer deixou um legado que está gerando resultado.

Por que são apenas indícios?

Eu uso o termo indícios porque a gente ainda não tem dados suficientes para testar o peso relativo de cada uma dessas hipóteses. Mas os indícios são de que essas reformas tiveram impacto positivo no mercado de trabalho e na economia. E esse é um aspecto que, às vezes, é pouco enfatizadoO que acontece na economia num determinado ano, em geral, é resultado de muitos anos anteriores. Da mesma maneira que o primeiro governo Lula colheu muito dos frutos que foi feito no governo Fernando Henrique e muitos dos problemas do governo Dilma – não todos -, mas uma parte importante deles, foram construídos no segundo governo Lula. A gente está colhendo muita coisa dos últimos anos. De novo, eu preciso de mais dados para poder testar exatamente o peso de cada um.

E o que preocupa?

A preocupação era a médio prazo, mas agora está virando curto prazo. A preocupação é que houve um impulso fiscal muito forte em 2023 e isso está deixando desafios grandes daqui para frente. De novo, tem um uma defasagem entre a decisão tomada e o seu impacto mais estrutural. A política fiscal tem uma série de desafios grandes, porque, ao romper com o teto de gastos, você reintroduziu uma série de indexações nas despesas. Já deu problema este ano. Só adiaram. O Judiciário brasileiro falou assim: ‘vamos deixar a Constituição para valer a partir de 2024. Não precisa fazer o ajuste em 2023.’ Mas o problema está aí. Despesas que estão indexadas a receitas correntes voltaram. Isso traz desafios para o crescimento da despesa em 2024. E há um aspecto da política fiscal no Brasil que é muito preocupante. Invariavelmente no Brasil, quando se tem uma folga fiscal, por alguma razão, isso acaba virando despesa permanente com salários e aposentadorias. É um traço brasileiro. E depois, não consegue fazer o ajuste, porque não pode cortar essas despesas.

Isso ocorreu novamente?

A gente está vendo toda a dificuldade que vários Estados e municípios estão tendo agora. É uma encrenca contratada. Na hora que você teve folga fiscal, não virou investimento, não virou melhora relevante em saneamento, em indicadores de escolaridade, em estradas. Virou, em grande medida, nos governos locais, aumento de salários e aposentadorias. Agora, a conta está chegando. E aí os municípios viram para o governo e dizem que não podem pagar essa conta. É um desafio forte para 2024. As projeções de variação da dívida são preocupantes. O Brasil está destoando de outros países, inclusive, dos da América Latina. Esse é um segundo aspecto.

Tem uma visão de que tem um governo do PT, mas um Congresso mais conservador e isso acaba criando um equilíbrio. Qual é a avaliação do sr.?

Eu discordo. Eu acho que tem tanto um governo quanto um Congresso com uma agenda de despesas, em muitos casos, com demandas paroquiais, e uma disputa para onde vai o recurso. Não é que tem um contraponto. Estamos vendo todo o problema das emendas parlamentares e uma série de gastos que estão sendo feitos e que vão ficando permanentes. Essa agenda é preocupante. Isso sinaliza um cenário mais difícil para a macroeconomia em 2024. O Brasil não é um país de juros reais altos à toa. Tem um desafio aí. Um outro ponto que me preocupa é que começou a ter, nos últimos anos, uma volta dessa agenda de distorções microeconômicas. Uma série de medidas foram aprovadas nos dois últimos anos do governo anterior e agora elas vão criando distorções no ambiente de negócio. Isso prejudica a produtividade e o crescimento. Houve a boa nova que foi, finalmente, a aprovação da reforma tributária depois de tantos anos de atraso.

Foto:© Fornecido por Estadão

E qual é a avaliação da reforma tributária?

Ela não saiu tão boa quanto poderia. Está também repleta de distorções. Ainda tem um longo périplo de regulamentação por lei complementar. Mas foi um bom avanço. É uma coisa curiosa. Nos momentos difíceis, a gente faz boas reformas. Vimos isso várias vezes na história brasileira nos últimos 30 anos. Nos momentos difíceis, a gente faz avanços importantes, como a Previdência e, agora, a tributária, assim como as primeiras reformas fiscais na época do Fernando Henrique. E nos momentos em que há uma folga fiscal, essa captura do Estado volta, tanto direcionando os gastos para essas despesas obrigatórias ou transferências para grupos privados quanto ampliando as distorções. Parece que a gente continua nessa coisa meio ciclotímica. Nos momentos difíceis, há avanços, como aconteceu no governo Temer e, nos momentos em que as coisas saem melhor do que o esperado, volta a captura.

E como vê a pressão da ala política do governo por mais gastos? O governo vai ser pragmático em 2024, num ano que deve começar com a economia desacelerando e uma eleição pela frente?

Eu acho que teve uma agenda da equipe econômica de tentar limitar o crescimento do gasto. Tem uma dúvida em que medida ela será bem sucedida. Os números que estão saindo começam a preocupar bastante. Qual vai ser o tamanho do crescimento do gasto em 2024 e como é que vai se fazer esse ajuste? O que eu vi foi um Congresso que, junto com a equipe econômica, quis aprovar algumas medidas emblemáticas no espírito de que ‘pediram e a gente está fazendo’, mas, por outro lado, em troca das emendas e de um comprometimento dos gastos. Os problemas renascem com uma facilidade muito grande. Você dá uma ajuda e o problema aumenta. Eu acho que teve um alinhamento de interesses que permitiu avançar com algumas agendas positivas, mas os temas de preocupação também avançaram.

Tem risco de alguma piora no curto prazo, então?

Essa é a dúvida. Como é que vai se reagir em se confirmando a estagnação que os dados sugerem? A reação vai ser pragmática, para usar o seu termo, e a gente vai enfrentar uma agenda mais responsável e transitória? Ou a gente vai cair num velho hábito e falar que aqui é diferente e a gente não aceita a dificuldade? Vamos deixar a dificuldade para frente? Não deu muito certo no passado. Nesses momentos em que você tem recursos e tem uma dificuldade vindo, a nossa tendência, muitas vezes, é tentar dobrar a aposta. Mas essa é uma dúvida e isso cabe aos formuladores da política pública sobre como isso vai ser conduzido. Essa é a dúvida.

Há sempre essa discussão de curto prazo sobre as contas públicas, mas qual é a agenda de consolidação fiscal necessária para o País?

Isso, infelizmente, é parte do nosso atraso. Na hora que tem uma folga fiscal, ela é capturada para transferências, para grupos organizados ou de benefícios tributários – como a gente viu na reforma – ou de subsídios ou de aumento de salários. Aí o País tem dificuldade no front fiscal, precisa, de alguma maneira, aumentar receita e você vai atrás da criatividade para aumentar. É esse um processo disfuncional, porque não se aumenta a receita de uma maneira organizada, clara e sustentável. E o resultado disso é um País que tem essa ciclotimia. Se pegar os 40 anos, entre 1980 e 2019, a gente teve 26 anos de crescimento da renda por habitante. Cresceu, na média, 2,8% de renda por habitante. Então, houve anos bons. Foram espetaculares, não. Mas o problema, nessa ciclotimia, é que temos muitos anos ruins. Nesses 40 anos, tivemos 14 anos de queda da renda por habitante.

Isso é muito…

Quando se compara com outros países ricos, na média, foram três, alguns tiveram quatro, cinco, seis anos de queda da renda por habitante. Com os demais emergentes, é a mesma coisa. Em 40 anos, é muita coisa ter 14 anos de queda da renda. É uma queda de país pobre. E as quedas no Brasil tendem a ser relevantes. Isso dá essa ciclotimia, de um País de que uma hora estar otimista, de que agora vai, mudou o voo e, de repente, quando vem o problema, fala assim: ‘não tem jeito’. A gente não consegue criar uma agenda estrutural de longo prazo. Qual é a agenda econômica? A pergunta é essa. Cadê a agenda do País? Como a gente vai lidar com os problemas de educação, de infraestrutura? E até acho que na infraestrutura tem alguns sinais positivos nesse governo, mas vamos ver se se concretizam.

O que o sr. enxerga de positivo na infraestrutura?

O ministro Renan Filho (dos Transportes) tem feito alguns anúncios numa tentativa de organizar investimento em infraestrutura. O Brasil está muito atrasado. Vamos ver se a coisa decola. A gente tem todo esse embate se vai ou não vai em saneamento. O Brasil tem dificuldades em temas muito básicos da infraestrutura e não consegue avançar. Toda a parte da política pública é ausente no debate, como é que a gente melhora os indicadores de aprendizado dos alunos e das alunas? Como é que o governo federal pode colaborar com os governos locais para melhorar o aprendizado das crianças? O Brasil tem um potencial imenso de investimento em infraestrutura em várias áreas. A gente tem muita deficiência. Isso atrapalha o crescimento econômico, dificulta a vida dos negócios e aumentar a renda.

Por que ainda falta preocupação com a qualidade de política pública?

Esse é um tema que envolve governança. É uma palavra um pouco desgastada, mas é um tema muito relevante. É naturalmente difícil para um gestor avaliar criticamente a política que ele ou ela implementou. Você precisa ter uma governança muito bem desenvolvida para que tenha avaliação independente de resultados. E uma das dificuldades é que esse processo de avaliação não é independente do Executivo. Eu acho que deveria ser. Defendi isso há 20 anos. Deveria ter um órgão independente com mandato como tem outros países. Na Austrália, por exemplo , a comissão de produtividade avalia de forma independente as políticas públicas e pública os resultados. Isso ajuda a criar pressão pela melhora da política pública. Mas no Brasil, os recursos são muito facilmente capturados por esses interesses do velho patrimonialismo.

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By valeon