História por Notas & Informações • Jornal Estadão
O presidente da Argentina, Javier Milei, topou com o primeiro obstáculo institucional ao seu plano de desregulamentar totalmente a economia por meio de decreto. Coube à Justiça do Trabalho expressar com todas as letras que, na democracia argentina, qualquer alteração em leis vigentes exige o debate e a anuência do Parlamento. Embora restrita ao capítulo laboral do texto baixado em dezembro pela Casa Rosada, a decisão do colegiado pôs em xeque a adequação da revolução ultraliberal de Milei aos trilhos do Estado Democrático de Direito. Nas entrelinhas, ditou que a Justiça não aceita um atalho autoritário.
Ao suspender as mudanças nas regras trabalhistas incluídas no Decreto Nacional de Urgência (DNU) de Milei, o colegiado da Câmara Nacional de Apelações do Trabalho não se ateve ao mérito. Em avaliação bem ampla, centrou seu julgamento no fato de a via do decreto presidencial não cumprir os ritos democráticos. Baseando-se em decisões anteriores da Suprema Corte, a maioria dos juízes concluiu que as considerações genéricas do texto “são incapazes de justificar a edição de medidas legislativas pelo Poder Executivo Nacional”.
Aguarda-se agora a decisão da Suprema Corte sobre o assunto, e presume-se que a decisão da Justiça do Trabalho seja levada em conta no processo. No outro campo institucional, o Congresso tem se mostrado resistente à aprovação do DNU em bloco até 31 de janeiro – o prazo determinado por Milei. Mais provável será a rejeição de todo o conteúdo por falta de apoio até mesmo de setores da minguada base parlamentar do governo.
O fato evidente é que a Justiça do Trabalho colocou o guizo no gato. Antes da palavra final da Suprema Corte sobre o decreto, outras cortes podem vir a se manifestar sobre os demais capítulos do decreto nessa mesma linha. E tudo isso porque o método escolhido por Milei para fazer o país engolir suas drásticas mudanças sem qualquer debate é evidentemente antidemocrático. Por mais consistentes, necessárias e urgentes que sejam as medidas de desregulamentação de uma economia engessada pela visão brutalmente estatista de sucessivos governos peronistas, a Casa Rosada sob comando de “El Loco” tropeçou em seu próprio impulso autoritário de baixar a revolução liberal por decreto.
A incerteza jurídica em torno do decreto e de suas consequências para a economia turva ainda mais o horizonte argentino, justamente no momento em que o país precisa de apoio de organismos multilaterais e de investimentos estrangeiros, em especial do Fundo Monetário Internacional (FMI). Várias das medidas anunciadas no terceiro dia do governo Milei – consideradas “bem-vindas” pela diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva – constam do texto agora posto em xeque pela Justiça. Outras constam de um truculento projeto de lei que atribui a Milei poderes excepcionais de legislar e travar o Judiciário ao longo dos quatro anos de seu mandato, o que obviamente deverá ser questionado no Congresso.
A primeira missão do FMI na gestão Milei já estava presente na capital argentina quando a Justiça do Trabalho julgou o decreto. Desta vez, os técnicos do Fundo não se limitarão a revisar as metas flagrantemente descumpridas pelo país no trimestre passado. Eles deverão negociar uma tábua de salvação para que a Argentina atravesse os primeiros meses do ano sem o risco de declarar-se falida. Trata-se de um waiver de pelo menos US$ 3,3 bilhões até abril e um desembolso adicional. Se nos cafés de Buenos Aires há quem acredite que a revolução de Milei poderá ter efeitos positivos no curto prazo, os técnicos do Fundo certamente não têm dúvidas de que o presidente argentino terá de rever seus métodos.
É certo que, antes de completar um mês à frente do governo, Milei cumpriu boa parte de suas promessas eleitorais, mas desprezou os ritos democráticos de um país que, a duras penas, reconstruiu o Estado Democrático de Direito há 30 anos. Os argentinos precisam do apoio de suas instituições e dos organismos internacionais para sair do abismo econômico ao qual foram empurrados por décadas de irresponsabilidade e paternalismo. Por isso, o autoritarismo de Milei não é um bom caminho.