História por CdB • Correio do Brasil
Um panorama complexo que envolve interesses diversos, da remuneração dos autores à garantia do acesso cultural, demandando reflexão e debate amplo. Os direitos autorais não podem ser reduzidos a um único aspecto, ao contrário, devem ser encarados sob diferentes perspectivas: da sociedade, da cultura do país.
Por Carlos Seabra – de Brasília
O “direito do autor” nasceu há cerca de 300 anos, em vários lugares do mundo assumindo características diferentes e mudando ao longo desse período inúmeras vezes e em diversos aspectos. A discussão de sua atualização em tempos de inteligências artificiais e também considerando os impeditivos da circulação de obras, assim como a justa remuneração dos autores propriamente ditos (com raras exceções algo quase insignificante, inclusive devido a tiragens irrelevantes) é de grande importância para todos os envolvidos, dos autores a seus leitores, passando pelos intermediários na cadeia de edição e distribuição, também importantes partícipes nesta questão.
O “direito do autor” nasceu há cerca de 300 anos, em vários lugares do mundo© Fornecido por Correio do Brasil
Os direitos autorais não podem ser reduzidos a um único aspecto, ao contrário, devem ser encarados sob diferentes perspectivas: da sociedade, da cultura do país, dos leitores, dos autores, da área editorial, da educação, levando em conta que cada uma dessas perspectivas, já per si, carrega muitas vezes contradições com outros lados do problema. Assim, uma das primeiras coisas a fazer é mapear claramente as variáveis envolvidas, os entraves percebidos na atual legislação, as novas propostas, as contradições entre os diversos interesses. Somente um levantamento e equacionamento das questões relacionadas permitirá engajar os setores envolvidos, bem como a sociedade em geral, num debate frutífero, permitindo juntar as concordâncias de um lado, listar as dúvidas de outro, e ter clareza das divergências e seus motivos.
Vejamos alguns desses aspectos. À sociedade como um todo interessa o acesso às obras literárias, e para que esse acesso ocorra, as obras esgotadas devem ser reimpressas, novas obras devem ser editadas, a distribuição deve chegar a todos os locais, livrarias, bibliotecas, com preços acessíveis e tiragens significativas. A atual estrutura produtiva, envolvendo edição, distribuição e venda, necessita do arcabouço assegurado pelo copyright, e os autores necessitam ser lidos e serem remunerados, ou pelo menos uma das duas coisas.
Existem diferentes tipos de autores e várias necessidades de direitos. O autor que vende muito e vive disso, inclusive os da área de didáticos e paradidáticos, tem um tipo de interesse diferente do autor que não possui mercado mas deseja ser lido. Para este, uma flexibilização dos direitos de reprodução pode até abrir novas perspectivas. Outra situação ainda é a de obras cujo autor já faleceu e cuja busca dos detentores dos direitos configura uma tarefa árdua e custosa. Ou obras cujas editoras não têm interesse de reedição e tampouco cedem seus direitos a quem as deseje publicar.
Assim, a questão da flexibilização de direitos tem diferentes aspectos a analisar, dependendo da situação e da natureza da obra e de seu status. Se, por um lado, temos obras com valor específico de mercado, com características próprias de exploração (tais como os didáticos), outras possuem pouco valor de mercado, mas culturalmente significativas (obras esgotadas que não encontram interesse em seu relançamento, pequenas tiragens de autor etc.).
Há ainda outros fatores a levar em conta, tal como o interesse da cultura nacional, que envolve políticas públicas contemplando as necessidades maiores da sociedade, pois há que se considerar também nesta questão os “direitos do público”. Nascida na área do audiovisual, por iniciativa da Federação Internacional de Cineclubes, a Carta de Tabor levantou este aspecto em 1987, num documento mais atual e relevante do que nunca. Sua abrangência de conceitos pode e deve ser trazida para a área da literatura, dentre outras.
Aplicação das leis
Outro fator a levar em conta é o poder econômico, que pode gerar distorções na aplicação das leis e isto frequentemente paralisa atividades culturais e educativas. Aqui, o uso justo (fair use) é algo a ser discutido, pois é um conceito usado em outros países e que não possui respaldo jurídico no Brasil. O atual formato da lei dá muito poder aos intermediários e empresas da indústria cultural, em detrimento dos próprios autores, em sua imensa maioria não beneficiados com o produto econômico de suas obras.
Nisto, também entra a discussão de formatos alternativos ao copyright, tal como o Creative Commons – que não significa liberação total de todos os direitos de toda a obra e sim a reserva de alguns direitos (que o licenciante define quais são, se trechos podem ser usados para obras derivadas, se pode ou não haver uso comercial, e uma série de outros atributos definidos pelo autor). Assim, ele pode permitir que se copie, distribua ou crie obras derivadas sem necessidade de consulta prévia, bastando que se dê os créditos ao autor, ou que não se utilize o conteúdo com fins comerciais. Esta modalidade tem ocorrido geralmente em publicações na Internet, em sites ou blogs de autores, em portais de conteúdo colaborativo, e mesmo na publicação editorial em suporte digital, para download, trazendo muitas vezes novas possibilidades de distribuição, permitindo o acesso à leitura de obras que estariam fadadas à não circulação.
O tempo de validade da exploração dos direitos autorais, após a morte do autor, deve ser também motivo de debate, pois ao longo do tempo vem sendo ampliado (o chamado efeito “Disney”: sempre que o rato Mickey estava prestes a cair em domínio público, prorrogava-se a vigência dos direitos sobre a obra) e muitas vezes torna impeditiva a reedição da obra, cujos direitos estão reservados, mas não se encontra quem os detenha para negociar.
É fundamental garantir os direitos autorais ao escritor (inclusive àqueles que escrevem sob contrato de trabalho em órgãos de comunicação), considerando também o interesse da cultura nacional e os direitos do público, levando em conta a cadeia produtiva editorial mas buscando-se impedir a privatização de nossa cultura por parte das grandes empresas, hoje usando novas formas de acúmulo de riqueza a partir de acervos informacionais usados, inclusive, para a geração de novos textos artificiais baseados na produção digitalizada, com uma apropriação de novo tipo que não remunera os “insumos” utilizados, sejam textos, ilustrações ou músicas.
Carlos Seabra, é diretor da Oficina Digital, criador de jogos de tabuleiro e digitais, autor de livros de literatura infantil e juvenil. Editor de publicações e produtor de conteúdos culturais e educacionais de multimídia e internet, palestrante, consultor e coordenador de projetos culturais e de tecnologia educacional.