A resposta deve variar de acordo com a realidade de quem responder à pergunta

Por Leandro Karnal – Jornal Estadão

Como será o lugar da felicidade perfeita? Você já imaginou seu Paraíso, querida leitora e estimado leitor? A resposta deve variar de acordo com a realidade de quem responder à pergunta. Um espaço de vinhos únicos, sexo constante, séries incríveis em telas eternas e sem cansaço? Talvez. Jorge Luís Borges (1899-1986) era escritor e amante da leitura. Supôs o gozo eterno em uma… biblioteca.

Quando éramos crianças (e os professores desejavam punir alunos inquietos), enviavam-nos à biblioteca. Interessante: para mestres que deveriam estimular o gosto pela leitura como tarefa primordial, o calabouço da dor era o lugar dos livros. Na faculdade, a gente reforçava: “Esta é a carga de leituras do semestre”. Carga? Significa peso! Todo aluno se acostumou: livros finos são menos penosos do que os grossos. O paraíso de Borges era o inferno discente. Imagino uma ficção bonita: um professor argentino, no início do século 20, envia o pequeno aluno Jorge Luís para a biblioteca, a fim de que a criança se ilumine em um sorriso. Condenado às delícias eternas!

Quadro 'The Book Worm', de Carl Spitzweg
Quadro ‘The Book Worm’, de Carl Spitzweg Foto: Museu Grohmann

É excepcional uma criança ou jovem amarem lugares silenciosos, com conversas interiores apenas. São meteoros raros. O anseio de silêncio cresce com o tempo. Afogada nos barulhos urbanos, na invasão de sons e de assédios de toda forma, a pessoa adulta passa o dia em uma rave permanente nas ruas e no trabalho. Isso ajuda a querer isolamento ao fim do expediente, refúgio no lar, em si e em um livro. O silêncio tornou-se um item fundamental do chamado pós-luxo: a noção atual do verdadeiro conforto. Nada mais de salas com dourados e veludos. Não! Apenas o afago do silêncio com um livro. O desejo de Borges pode parecer estranho para alguns. Para mim, o verdadeiramente exótico é alguém querer uma dose maior de barulho e de sociabilidade, após ter sido tragado, o dia todo, no redemoinho. Parece um náufrago que, saindo de uma quase morte, chega com esforço à margem e pede água!

Há remédios contra o excesso de telas e de Zap, até na educação. Michel Desmurget, doutor em neurociências, lançou um livro forte e uma indicação: A Fábrica de Cretinos Digitais (editora Vestígio). Ele alertava, em 2019, contra o dano do excesso de telas na mente infantil. Chegamos a 2023. Passamos pela experiência pandêmica. O mundo virtual expandiu-se. A escola presencial minguou, e o problema é grave. O novo livro do autor chama-se Faça-os Ler! Para Não Criar Cretinos Digitais (Vestígio). Com dados muito objetivos, ele desenvolve análises sobre os benefícios insubstituíveis derivados da leitura sistemática de textos bons. Para tudo o que Desmurget afirma sobre crianças, eu amplio as conclusões, incluindo adultos e minha pessoa.

Dados inquietantes da recente obra do neurocientista: “Essa tendência de abandono progressivo da leitura também é observada nos Estados Unidos. Entre 1976 e 2016, a porcentagem de alunos do ensino médio que não leram nenhum livro ‘por prazer’ no ano anterior aumentou de 11% para 34%. Ao mesmo tempo, a proporção de leitores diários (livros ou revistas) caiu de 60% para 16%”.

No Brasil? Uma pesquisa acrescenta o dado do valor de capa, como impeditivo da leitura. Além de todos os dramas de avanço das mídias sociais e das telas, temos ainda um desafio social e econômico. Apenas 16% da população brasileira é consumidora de livros, de acordo com uma nova pesquisa da Câmara Brasileira do Livro, realizada pela Nielsen BookData. Nos EUA e na França, os jovens não querem mais ler. Aqui, aparentemente, não querem e, mesmo se quisessem, não poderiam.

Talvez a biblioteca física não seja mais um Paraíso. Lendo autores como Desmurget, parece que ela se torna um espaço de salvação, uma zona de refúgio, uma área que nos preserva da maré que ameaça invadir tudo. Ademais, não vivíamos, há 40 anos, num éden de leitores entusiasmados que disputavam a tapa obras em grandes armários de livros. Eram escassos antes e continuam agora. A diferença está na estrutura da própria educação, que vê nos computadores um gancho de interesse para pescar jovens dispersos. Se é assim, erramos feio. A Finlândia e outros países começaram o grande passo, no campo de celulares e telas em sala de aula. A Holanda deu mostras de seguir o mesmo caminho, separando celulares e sala de aula.

Por isso, temos de trabalhar. A conversa com outras pessoas torna-se obrigatória. O celular deixa-a onipresente e eterna, todavia pouco densa. A lucidez precisa de pausas de leitura e de silêncio. Não ler em paz, recolhido, é estimular uma vida de zumbi que vaga sem sentido, atrás de uma tela (des)esperançosa.

Você leu esta crônica, minha cara leitora e meu estimado leitor? Celebre, pois somos, talvez, os últimos de uma longa tradição que se extingue. Pessoas que amam livros, adoram bibliotecas, veneram o silêncio e a reflexão: constaremos como sobreviventes exóticos de uma era passada? O Paraíso de Borges se esvazia por inanição.

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