Por José Renato Nalini – Jornal Estadão
Aprendi que a avaliação humana é falível e oscilante. Ao estudar a prova penal, convenci-me do acerto de quem rotula o testemunho como “a prostituta das provas”. Um depoimento depende de inúmeros fatores. As pessoas têm distintos graus de apreensão, de memorizar, de reproduzir com palavras a cena presenciada. Somos nós e nossas circunstâncias, na reiterada visão de Ortega Y Gasset. Prendemo-nos a detalhes que podem subverter o que poderia ser chamado “verdade”.
O certo é confiar desconfiando. Assim como não se poderia permanecer com o testemunho de um só dos cinco cegos que descrevem um elefante ao qual tiveram acesso por palpadelas.
Mas por que tudo isso?
Li o livro “Justiça”, escrito por José Carlos de Macedo Soares, em sua defesa quando do processo que a União Federal lhe moveu, diante de sua participação no episódio sangrento ocorrido em São Paulo entre 5 e 28 de julho de 1924.
Acreditei na veracidade da narrativa. Para mim, Macedo Soares, o arcebispo Dom Duarte Leopoldo e Silva e alguns mais foram heróis, enquanto o Presidente do Estado e um outro grupo, muito superior em número ao dos heróis, falharam ao permitir que a capital fosse bombardeada, metralhada, retalhada e sua população tivesse de fugir para o interior e para o litoral.
Interessei-me por ler outros livros sobre 1924. Moacir Amâncio é um especialista nisso e com ele ainda manterei contato pessoal para saber mais sobre o que precisaremos celebrar no ano que vem. Mas, dentre outros, li “Revolução de 1924″, de Euclydes Castro Carvalho, “Sob a metralha”, de Cyro Costa e Eurico de Goes e “Dias de Pavor”, de Aureliano Leite.
O mineiro de Ouro Fino foi advogado, político e escritor. Aureliano Leite (1886-1976) integrou a Academia Paulista de Letras, assim como José Carlos de Macedo Soares. Enquanto este chegou a elogiar o responsável pela Revolução de 1924, o General Isidoro Dias Lopes, que se mostrou mais sensível e humano do que o Ministro da Guerra, General Setembrino de Carvalho e o Presidente da República Arthur Bernardes, Aureliano Leite o detona. Logo nas primeiras páginas de seu livro, fala sobre os “despretensiosos escritos quotidianos, episódios de oportuno interesse, nascidos dos vinte e três dias de tirania, a que nos arrastou a espada covarde do mais indigno dos generais, que a geração hodierna há de registrar: Isidoro Dias Lopes”.
E prossegue nesse tom: “Delinquente de todos os crimes do código, não militando a seu favor uma única atenuante da lei penal e tendo contra si a totalidade de suas agravantes, Isidoro há de passar à história como um dos mais tristes vilões que enlutaram a humanidade”.
De imediato, ressalve-se o exagero: “todos os crimes do código”, ausência de qualquer atenuante e presença da totalidade das agravantes, é algo impensável. Evidencia animosidade incompatível com a reta observação dos fatos.
Exatamente as figuras que nos demais livros deixam a desejar em termos de reação adequada aos bombardeios ordenados pelo governo federal, são as que Aureliano Leite reverencia: “queremos começar por destacar…duas figuras notáveis da revolta, além das outras, como Arthur Bernardes, Carlos de Campos, Setembrino, Pedro Dias, Sócrates, Potiguara, Bento Bueno e tantas mais, que penas fulgentes, molhadas em tinta de ouro, hão de imortalizar: Firmiano Pinto e Alberto Americano”.
Firmiano Pinto era o Prefeito da capital e, honra seja feita, não fugiu como o então governador – que à época se chamava presidente -, deixando os Campos Elíseos à sanha de saqueadores. Alberto Americano era um adolescente, filho de Luís Americano, que lutara na Guerra do Paraguai, cuja façanha foi acompanhar Aureliano Leite até à sede da Polícia Central, mal estourado o levante. Também teria feito Miguel Costa, o comandante da Força Pública sublevada, pensar que ele aderia aos revoltosos, quando era legalista e estava ao lado de Arthur Bernardes.
Aureliano Leite ainda ridiculariza Isidoro Dias Lopes, quando este comparece a uma reunião convocada por Macedo Soares: depois de descrevê-lo como “minguado velhinho, risonho, galhofeiro mesmo”, completa: “Seria crível que em tão pequena e jovial pessoa coubesse tanta malvadeza e tamanha audácia?”.
Enfim, hoje só nos é dado rememorar a Revolução de 1924 mediante a leitura de quem se propôs a escrever sobre ela. Façamos a nossa leitura e o nosso juízo. Com quem estará a verdade?