História de IGOR GIELOW – Folha de S. Paulo
RIAD, ARÁBIA SAUDITA, E DUBAI, EMIRÁDOS ÁRABES (FOLHAPRESS) – “Acredite, é bem mais difícil fazer um bom gim-tônica sem álcool”, afirma Mohammed, bartender do badalado restaurante francês LPM, no centro de Riad. Marroquino, ele costumava trabalhar em hotéis de Dubai com a bebida de fato, mas no ano passado resolveu arriscar a sorte no reino do xará Mohammed bin Salman.
MbS, como o príncipe herdeiro e real chefe do país desde 2017 é conhecido, vive dilema semelhante ao lançar a Arábia Saudita em mergulho modernizante tentando evitar uma ruptura com o conservadorismo muçulmano e sob desconfiança internacional.
“Estamos nos abrindo, mas não vamos vender nossa alma. Queremos que vocês apreciem a nossa cultura”, afirmou na semana passada Abdelrahman al-Anbar, do programa Qualidade de Vida do governo saudita, a uma plateia de empresários brasileiros levados para prospectar negócios no reino pelo Grupo Lide.
Como tudo sob MbS, a marca fantasia Visão 2030 cobre as 12 iniciativas de Al-Anbar. Projeto de US$ 3,2 trilhões (R$ 15,8 trilhões), ou 1,5 vez o PIB brasileiro, ele abarca de tudo, de infraestrutura básica à realização da Expo 2030 e da Copa-2034, passando pela troca da matriz petrolífera pela energia limpa.
Este é um dos dois pilares principais da crítica a MbS. Os planos sauditas de transição verde querem reduzir à metade sua pegada de carbono até 2030, mas às expensas de mais exportação de petróleo e consequente aumento das emissões de outros países, manipulando no processo o mercado para manter preços favoráveis do barril.
A contradição vem acompanhada pela realidade: a Arábia Saudita é uma monarquia absolutista com restrições a direitos civis, particularmente de mulheres. É acusada de violações aos direitos humanos, simbolizadas pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018, e por seu envolvimento na brutal guerra civil no vizinho Iêmen. MbS é premiê desde 2022.
A importação de jogadores como Cristiano Ronaldo e Neymar para o inexpressivo futebol local é, para os críticos, mera lavagem de imagem por meio do esporte, o “sportswashing”. Para entidades como a Fifa, o pragmatismo se impõe: são países sem controles democráticos de gastos e práticas, além de riquíssimos e seguros.
Na Visão, o exemplo que vem à mente é Dubai, a joia reluzente dos sete Emirados Árabes Unidos, ainda que o poder político esteja na mais austera Abu Dhabi. Os domínios da família Al-Maktoun nunca foram ricos em petróleos como os vizinhos, apostando a partir dos anos 1970 em serviços e turismo para criar o polo ultratecnológico atual.
Por óbvio, o modelo saudita parte de outra premissa, já que o reino tem a segunda maior reserva petrolífera do mundo. Mas há a questão cultural: “Vamos construir casas tradicionais com facilidades modernas”, afirma o consultor da presidência do projeto Diriyah, Abdullah Alghanim.
Obra de R$ 265 bilhões em torno do sítio arqueológico que é o marco zero do reino, o bairro não terá as torres espelhadas gigantes que floresceram a partir dos 2000 em Dubai. Os megaprédios sauditas estão por ora ao longo do eixo norte-sul de Riad, com destaque aos 300 metros da Torre do Centro do Reino, um edifício que lembra um abridor de garrafas gigante.
Nada perto dos 828 metros do maior prédio do mundo, o Burj Khalifa de Dubai. Mas MbS costuma jogar com as duas pernas: se terá casinhas cor de terra em Diriyah, pretende gastar até R$ 25 bilhões com um mastodonte de 2 km de altura em sua capital.
As ruas desafiam um pouco os estereótipos. Sim, é um país pio: não há Constituição no reino, e o Corão e os ditos atribuídos ao profeta Maomé no século 7º são a lei. O Estado é pervasivo, mas discreto à parte dos pôsteres do rei e seu herdeiro: não há policiamento ostensivo, e a taxa de homicídio está pouco abaixo de 1 por 100 mil habitantes ao ano, 21 vezes menos do que no Brasil.
O Estado executou 170 pessoas em 2023, e um aplicativo permite que cidadãos denunciem outros em caso de comportamento que seja visto como inadequado.
Mulheres cobertas com o manto abaya e usando o véu niqab, que só permite a visão dos olhos, são onipresentes apesar da liberalização desde que MbS chegou ao poder. “O véu ainda nos protege, mas não é tão obrigatório quanto parece”, disse Nor, consultora de uma empresa de recursos humanos que pediu, assim como o barman Mohammed, para não ter o sobrenome divulgado.
De traços libaneses, Nor tem 34 anos, é casada e tem dois filhos. Elogia MbS: “Antes eu não podia dirigir, agora saio sozinha para jantar com minhas amigas”. Um dos locais favoritos é o Mefic, centro de restaurantes e lojas frequentado por grupos mistos, algo impensável há alguns anos. Mas ainda há desconforto entre homens mais velhos, diz ela, com a presença feminina.
Em shoppings de luxo como o Al-Faisliah, senhoras envelopadas de preto ou algumas cores mais discretas compram lingerie na Victoria’s Secret. Já o fosso salarial não difere muito daquele no resto do mundo: em 2023, o trabalhador do setor privado saudita ganhava em média R$ 14 mil mensais; mulheres, pouco mais da metade disso.
Isso dito, ainda há uma distância oceânica entre a ideia ocidental de liberdade feminina e o que se vê no país, particularmente entre os mais pobres. A ONU calculou em 2023 em 13,6% os que moram na pobreza no reino, a maioria entre os imigrantes (14 milhões dos 34 milhões de moradores, 3 milhões deles ilegais).
Na capital, em quatro dias foi possível vê-los em bairros na área sul da cidade, além de uma solitária vendedora de flores com suas duas filhas pequenas numa noite. Já a riqueza mais evidente está nas ruas: os muitos carros “normais” sul-coreanos e japoneses disputam espaço com nem tantos modelos esportivos e de ultraluxo –numa loja de usados, um SUV Rolls Royce Cullinan de 2018 saía por R$ 2,7 milhões.
Dificilmente acessível a quem não fosse um dos 2 milhões de muçulmanos que fazem a peregrinação a Meca anualmente, o país se abriu em 2019, com vistos online de um ano a cerca de R$ 500.
Mas os grandes eventos colocarão à prova mais que as belas apresentações virtuais e maquetes de megaprojetos, como a megalomaníaca cidade futurista Neom, de R$ 2,5 trilhões. Bala, há: só o fundo soberano saudita, o maior do mundo, gerencia R$ 3,4 trilhões.
Um diplomata ocidental em Riad pondera que MbS não pode se dar ao luxo de excluir a liderança conservadora, lembrando o que aconteceu quando a Al Qaeda do saudita Osama bin Laden (1957-2011) lançou uma guerra contra a monarquia e o Ocidente pelo que chamava de desvirtuamento do Islã.
Um foco nevrálgico é o álcool, central na estratégia de ocasiões como a Copa, que é banido no país. Se você tentar entrar com uma garrafa de vinho na mala e for pego, está sujeito a prisão e até açoite. Como se viu no vizinho Qatar em 2022, a Fifa terá de achar um caminho intermediário.
Isso não significa que as pessoas não bebam álcool na Arábia, ao contrário. Assim como no Paquistão, outra terra de purismo islâmico, a elite o consome de forma escondida, como nos condomínios fechados das estrelas do futebol. Se no país do sul da Ásia a fonte são os cristãos com licença para venda, na Arábia as embaixadas e as porosas fronteiras fornecem o produto.
Segundo dois empresários locais apreciadores de uísque, uma garrafa do escocês The Macallan 12 anos sai pelo equivalente a R$ 2.500, preço brasileiro. Uma de vodca russa Beluga, R$ 2.000.
A resposta que o governo achou foi dupla. Em 31 de janeiro, abriu no Distrito Diplomático a primeira loja oficial de bebidas para representantes estrangeiros não muçulmanos no reino. Só entra lá quem tiver autorização, e há cotas visando limitar e legalizar o consumo.
Na outra mão, há uma moda que é incentivada na mídia local, a maioria privada e toda governista: os bares de mocktails, os “coquetéis falsos”, no caso, sem álcool. Locais como o do LPM cobram R$ 80 pelo tal gim-tônica, produzido com uma beberagem inglesa cujo etanol foi desnaturado.
O barman Mohammed está certo: é mais difícil fazer uma receita tão tradicional de forma potável sem o produto principal. O gosto, ainda que lembre o original, ao fim não passa daquele de uma água aromatizada algo vulgar. Cerveja sem álcool custa R$ 50 a lata, em hotéis e bares.
A quase 900 km de lá, no Time Out Market de Dubai, outro barman chamado Mohammed, esse tunisiano e também com 25 anos, servia na noite de quarta (6) uma cerveja normal também a R$ 50. A Arábia Saudita será a nova Dubai? “Eles estão tentando, e muitos amigos meus estão indo trabalhar lá”, diz.