História de Notas & Informações – Jornal Estadão
Atribui-se a Capistrano de Abreu um projeto de Constituição com apenas um artigo: “Artigo 1.º: Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Parágrafo único: revogam-se as disposições em contrário”. A boutade era uma crítica, sobretudo, à presunção de que bastava enunciar leis para resolver os problemas do País – no caso, a falta de vergonha na cara. Foi esse pensamento mágico, aliás, que gerou a quilométrica Constituição de 1988, verdadeira obra aberta que pretende regular toda a vida nacional. Como parece óbvio, nada disso foi capaz, por si só, de melhorar o País, mas não desistimos: agora, governadores do Sul e do Sudeste acham que a criminalidade será combatida com o endurecimento da legislação.
Liderado pelos governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e Minas Gerais, Romeu Zema, o grupo acredita que, para o “enfrentamento mais qualificado do crime”, ajustes precisam ser feitos no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal – leiam-se penas mais duras, novas tipificações penais, maior estímulo ao encarceramento e regras que, na prática, dão maior protagonismo à polícia. É a safra nova de lideranças com um enredo antigo: contra o crime, novas leis; por mais segurança, respostas de fácil apelo junto a uma população que se sente assustada e insegura; para uma maior eficiência das polícias e do Poder Judiciário, leis mais duras e mais prisões.
Os governadores propuseram, por exemplo, a possibilidade de prisão preventiva mesmo sem condenação com trânsito em julgado de pessoas que reiteradamente praticam atos ilícitos – ou seja, na prática, querem que o passado do criminoso o condene antecipadamente. O pacote inclui a definição como homicídio qualificado aquele que é feito a mando de uma facção criminosa (hoje, como homicídio simples, a pessoa pode ser solta ou ter liberdade provisória ao cumprir 1/6 da pena). Outra medida propõe alteração na lei para que se permita a prisão em casos de abordagens policiais que não tenham sido feitas com base em elementos objetivos. Isto é, se acolhida, a abordagem policial poderá ser conduzida ancorada em mero comportamento suspeito, definido a critério “subjetivo” do policial.
Ainda que parte das ideias dos governadores possa inspirar uma necessária revisão no tratamento de crimes cometidos por grandes facções criminosas, as propostas não escondem o DNA de quem enxerga a criminalidade no País como consequência de uma suposta legislação branda, que precisaria ser urgentemente enrijecida. Basta lembrar que a Lei de Crimes Hediondos, de 1990, foi alterada inúmeras vezes para abrigar mais e mais tipos penais, sem que isso resultasse na redução da criminalidade. A Câmara dos Deputados já chegou a ter inacreditáveis 1.550 projetos protocolados para alteração do Código Penal. O número beira o absurdo, mas é resultado da convicção entre muitos de que essa é uma perfumaria que dá voto. O medo, como se sabe, é arma poderosa e sedutora, sobretudo perante uma população que se sente desprotegida.
Uma política criminal séria não pode ser pautada por bravatas de apelo eleitoral. Se ouvida a voz das ruas para tal fim, seria provável a introdução de penas extremas. Enquanto isso, com o tamanho da população carcerária que tem e o estado de calamidade de seu sistema penitenciário – que o Supremo Tribunal Federal reconheceu como um “estado de coisas inconstitucional” –, fica óbvio dizer que o Brasil prende muito e mal, sem produzir efeitos significativos na proteção da sociedade. Não se resolverá esse duplo e complexo problema, contudo, com populismo penal. Em vez disso, é necessário arregaçar as mangas, reformar as polícias, aperfeiçoar a capacidade de solucionar crimes, desbaratar o poder do crime organizado nas penitenciárias e colocar na cadeia só quem deveria estar lá. Não é fácil, mas, para começar, basta seguir a Constituição de Capistrano.