História de Notas & Informações – Jornal Estadão
Há cerca de dez anos, aproveitando-se da fraqueza política da então presidente Dilma Rousseff, o Congresso começou a tomar para si, de forma desproporcional e opaca, a execução de uma parcela cada vez maior do Orçamento da União. Tudo começou com a promulgação da Emenda Constitucional 86, que, em 17 de março de 2015, tornou obrigatória a execução das emendas individuais dos parlamentares até o limite de 1,2% da receita corrente líquida. De lá para cá, o que se viu é história – e uma história bem feia de vilipêndio da Constituição e do próprio ideal republicano que culminaria no “orçamento secreto”, revelado por este jornal, e suas múltiplas variações.
Pela primeira vez em todo esse tempo, a sociedade tem uma chance real de se ver livre dessa degeneração institucional engendrada por seus representantes que, a um só tempo, abastarda a democracia representativa e interdita o bom debate em torno de uma agenda virtuosa para o Brasil. No dia 23 de dezembro, como se sabe, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino suspendeu o pagamento de todas as emendas parlamentares – tanto as previstas até o fim de 2024 como as orçadas para 2025 – até que os deputados e senadores, enfim, criem mecanismos honestos de aferição da regularidade da disposição de bilhões de reais em recursos públicos. Era o mínimo a fazer.
Mas Dino foi além e determinou que a Polícia Federal (PF) investigue a burla das decisões do STF pela cúpula do Congresso para a manutenção desse estado de flagrante permanente de desrespeito à Corte e, sobretudo, à Lei Maior. Como revelou a revista piauí, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), suspendeu o trabalho das comissões da Casa para se assenhorear pessoalmente do destino das emendas que ainda seriam pagas até o fim de 2024, valendo-se de uma suposta anuência do colégio de líderes para exercer esse poder sem qualquer transparência em benefício de seu reduto eleitoral.
Investigações da PF sobre casos de malversação de emendas parlamentares há aos montes. O “orçamento secreto” é uma usina de corrupção que hoje faz os “Anões do Orçamento” parecerem personagens de história infantil. Agora, contudo, a PF avançará sobre o núcleo responsável por tramar a distribuição dessas emendas ao abrigo do escrutínio público, sem vinculação com projetos claros e sem qualquer isonomia entre deputados e senadores. Vale dizer, o que está na mira da PF são os grupos políticos liderados por Lira e pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP), provável futuro presidente do Senado e considerado uma espécie de capo di tutti capi da distribuição de emendas na Casa.
Não há espaço para ingenuidade nesta página. De modo que é forçoso reconhecer que a decisão de Dino, seja pelo timing – exarada na primeira segunda-feira após o início do recesso parlamentar –, seja pelo serviço prestado ao presidente Lula da Silva – que viu seu tímido pacote fiscal ser aprovado no apagar das luzes do Congresso sob a promessa de liberação de emendas que, ao fim e ao cabo, não foram pagas –, permite a leitura de que houve um socorro político do STF ao Palácio do Planalto. O fato é que, à luz da Constituição, que é o que importa, a decisão de Dino, que ainda precisa ser referendada por seus pares, vai na direção correta, qual seja, a de exigir transparência na disposição de recursos públicos, dando fim a um “inaceitável quadro de inconstitucionalidades em série, demandando a perseverante atuação do Supremo Tribunal Federal”, como escreveu o ministro.
O fato de Lira ter suspendido o recesso e convocado uma reunião de emergência do colégio de líderes para o dia seguinte ao Natal diz muito sobre o potencial dessa investigação da PF contra as traças do Orçamento da União. O que está sob ameaça é o fluxo de bilhões de reais controlado por representantes eleitos que só estão interessados em conservar poder, quando não em enriquecer ilicitamente, e não em destinar emendas orçamentárias para projetos bem formulados em suas bases para fazer do País um lugar mais justo para todos os cidadãos, o que seria legítimo.
O fim desse grupo, ainda que por intervenção policial, pode ser o início de um novo Brasil.