História de Bruno Carbinatto – Superinteressante

O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, ainda nem assumiu – a posse é só dia 20 de janeiro –, mas já vem protagonizando polêmicas com suas falas. Nas últimas semanas, o republicano cismou que quer aumentar o território americano, anexando pedaços de outros países ou mesmo países inteiros, incluindo de nações aliadas.

Trump brincou, por exemplo, que o Canadá pode se tornar o 51º estado americano. O país vizinho, com seus 40 milhões de habitantes, é um aliado de longa data dos EUA, e já deixou claro que não tem interesse nenhum em se unir à terra do tio Sam. Isso não impede Trump de ventilar seus planos mirabolantes, é claro.

O presidente eleito também quer anexar a Groenlândia, a gelada ilha com apenas 56 mil habitantes, um plano que ele já tinha anunciado em seu primeiro mandato. O local, um território semi autônomo que pertence à Dinamarca, já disse que não está à venda.

Por fim, Trump comprou briga com um terceiro país: o Panamá. Mais especificamente, ele quer tomar o controle do Canal do Panamá, um estreito canal que corta o país ao meio, ligando os oceanos Pacífico e Atlântico. A passagem é uma das mais importantes do mundo quando o assunto é comércio global, já que encurta, e muito, as distâncias de quem precisa passar de um lado para o outro.

Para justificar a medida, Trump alega que o país latino-americano de 4,4 milhões de habitantes cobra taxas “exorbitantes” de navios americanos que atravessam o canal (de fato, o imposto é caro: pode chegar a US$ 400 mil, dependendo do tamanho da embarcação). Além disso, relembrou que, de fato, a hidrovia foi construída pelos Estados Unidos, que mantiveram a posse do território por décadas.

O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, respondeu às falas de Trump de maneira enfática: “O Canal do Panamá pertence ao Panamá”, disse em um vídeo postado no X (ex-Twitter). “A soberania e independência do nosso país não são negociáveis.”

Trump, por sua vez, fez uma tréplica em tom ameaçador: “Veremos”.

Mas, afinal, por que o interesse repentino no canal? Qual a história da hidrovia, e Trump pode mesmo tomá-la para os EUA?

O que é o canal do Panamá

Imagine sair de Hong Kong, na China, num barco com destino a Nova York. Qual rota tomar? Dá para ir para leste, em direção às Américas, claro, mas, para chegar ao outro lado, é preciso dar a volta na América do Sul, descendo até a pontinha do Chile, onde fica o Cabo Horn, um local de difícil navegação

Outra opção é dar a volta ao mundo, indo para oeste, passando pelo Sudeste Asiático, cruzando o Canal de Suez no Egito, seguindo pela Europa e depois cruzando o Atlântico.

Também dá para viajar só até Los Angeles, na costa oeste dos EUA, e seguir o resto do caminho de carro ou trem.

Nenhuma opção é perfeita, claro, por causa das distâncias. Mas, até o século 20, eram as únicas existentes. Seria ótimo se desse para cortar caminho entre as Américas, certo? Mas não havia nenhuma passagem natural no imenso continente.

É aí que nasce o Canal do Panamá, uma das maiores inovações da engenharia moderna. A passagem conta com eclusas e lagos artificiais, uma estrutura bastante complexa. Veja no infográfico abaixo a comparação entre as rotas:

Com essa hidrovia, é possível ir do Oceano Atlântico para o pacífico (e vice e versa) em só 10 horas, viajando no caminho de cerca de 80 km na América Central. A alternativa – contornar a América do Sul – tem 11 mil quilômetros (e leva duas semanas).

A ideia de se construir uma passagem que cruze a América em algum istmo – o nome técnico de estreitas faixas de terra que ligam territórios maiores – é antiga. Foram consideradas obras do tipo em locais do México, na Nicarágua e em Darién, um território na fronteira entre o Panamá e a Colômbia.

Foi só no século 20 que a coisa foi para frente. Quem assumiu a obra foi justamente os EUA, em 1904; o canal foi inaugurado para uso dez anos depois. A construção custou mais de US$ 375 milhões – a obra de infraestrutura mais cara da história dos EUA até aquele momento –, e há registro de milhares de trabalhadores morrendo nas péssimas condições de trabalho, seja de acidentes ou de doenças tropicais como malária e febre amarela.

O governo americano não assumiu a bucha por caridade, é claro; a hidrovia beneficiou principalmente os EUA, encurtando as rotas marítimas de comércio do país que ascendia como uma potência global.

Nas décadas seguintes à sua construção, o canal foi posse dos americanos e administrado diretamente por Washington. No entanto, havia no Panamá muitos críticos a esse modelo, defendendo que, por se tratar de território panamenho, o controle do canal deveria ser feito pelo próprio país.

A tensão geopolítica aumentou ao longo dos anos, até que, em 1977, os dois países fizeram um acordo. O documento oficializava: a partir do dia 31 de dezembro de 1999, o controle do Canal do Panamá ficaria totalmente com o Panamá mesmo.

Desde então, a hidrovia tem sido controlada diretamente por uma agência estatal do Panamá. Em 2016, uma grande expansão do canal foi inaugurada, que permitiu que navios maiores cruzassem o caminho.

O país latino-americano lucra bastante (quase US$ 2 bilhões por ano) com o canal, claro, cobrando taxas de quem quer passar. Os preços variam muito, dependendo do tamanho da embarcação, sua função, acordos entre nações, etc. Em alguns casos, quem paga mais pode passar mais rápido; comprar com antecedência também ajuda a diminuir o preço.

Apesar de países do mundo todo utilizarem a hidrovia, dois terços de todos os navios que cruzam o canal têm os EUA como destino ou ponto de partida – por isso o enorme interesse americano no local.

Cerca de 13 mil a 14 mil navios cruzam a passagem todos os anos, segundo o Panamá. Explicamos como a obra funciona em detalhes neste infográfico.

Trump pode retomar o canal do Panamá?

Apesar do falatório, dificilmente o republicano levará o plano para frente.

Isso porque a transferência da administração do canal dos EUA para o Panamá foi legal e legítima, fruto de um acordo feito pelo então presidente americano Jimmy Carter e aprovado pelos senadores e deputados americanos. Não dá para simplesmente cancelar o documento.

O que o presidente pode tentar fazer, é claro, é um novo acordo com o governo panamenho, provavelmente oferecendo uma quantia generosa de grana para comprar de volta a administração do canal. Panamá, por sua vez, não parece disposto a esse tipo de negociação, pelo menos não por enquanto.

Há, claro, a última alternativa: tomar na marra o local, ou seja, guerra. Isso dificilmente acontecerá, claro: Panamá e EUA são nações aliadas e não há motivo para justificar uma ação tão extrema. Pelo menos essa é a conclusão sensata, claro – mas o presidente Trump nem sempre parece se contentar com o bom senso

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By valeon