História de BRUNO RIBEIRO – Folha de S. Paulo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Tribunal de Justiça de São Paulo tem irrigado os penduricalhos de magistrados com a utilização de juros de depósitos judiciais.
O Fundo Especial de Despesa do TJ-SP, usado para financiar benefícios como licenças-prêmio, auxílios e indenizações para magistrados paulistas, além de outros gastos, foi turbinado no ano passado com uma arrecadação extra de R$ 2,6 bilhões, obtida a partir de juros de depósitos em juízo sob controle da própria corte.
O dinheiro é resultado de um contrato que o Judiciário paulista mantém com o Banco do Brasil para a gestão das contas em que estão esses valores. Enquanto as decisões judiciais que podem liberar esses recursos não saem, o TJ-SP recebe juros sobre a quantia parada.
Embora essa forma de obter receitas extras não seja de agora, o contrato com o banco fez os valores do Fundo Especial de Despesa dispararem.
Em 2020, ano de assinatura do contrato, o fundo havia obtido uma receita com benefícios bancários de R$ 1 bilhão. Dois anos depois, com o contrato vigente, essa receita saltou para R$ 3 bilhões (aumento de 200%). No ano passado, depois da assinatura de um aditivo contratual, essa receita subiu para R$ 3,7 bilhões (os valores estão atualizados pela inflação).
A receita patrimonial é aquela obtida a partir de bens, como aluguéis e rendimentos de investimentos ou, no caso, juros sobre os depósitos judiciais.
“O uso de recursos de depósitos judiciais pelo Tribunal de Justiça como patrimônio próprio pode gerar conflito de interesses porque cria incentivos para postergar a liberação desses valores”, avalia Rafael Rodrigues Viegas, professor da FGV e pesquisador do INCT Qualigov e da Enap (Escola Nacional de Administração Pública). Outros advogados, ouvidos sob anonimato com medo de represálias, dizem o mesmo.
“O conflito de interesses e a falta de transparência no uso dos depósitos judiciais pelos tribunais podem ser comparados à gestão das emendas parlamentares, que têm sido objeto de tensão entre Legislativo, Executivo e o STF”, afirma Viegas.
“Assim como as emendas de relator criam um orçamento paralelo sem fiscalização adequada, o uso dos rendimentos dos depósitos judiciais sem controle externo permite que esses valores sejam alocados como um orçamento secreto, de forma pouco transparente e de modo a preservar uma lógica de privilégios na magistratura que é bastante duradoura no Estado brasileiro”, completa.
O contrato do tribunal com o Banco do Brasil estabeleceu uma tabela para calcular o pagamento com base na taxa básica de juros do país, a Selic. Inicialmente, o contrato limitava a remuneração do TJ-SP a 0,23% ao mês, considerando uma Selic de até 12% ao ano. No segundo semestre de 2022, com a expectativa de que a Selic ultrapassasse esse valor, uma nova tabela foi criada.
“Em decorrência da manutenção elevada da taxa Selic neste biênio [2022-2023], com redução gradual, atingindo 12,25% em novembro de 2023, e da implantação da tabela repactuada, o TJ-SP obteve significativa receita oriunda do referido contrato, relacionada à remuneração dos depósitos judiciais”, diz o último relatório de gestão do tribunal, de 2023, publicado no ano passado.
O relatório afirma que “do Fundo Especial de Despesa saem, majoritariamente, os recursos utilizados para pagamentos de indenizações de férias, licença-prêmio, auxílios (alimentação, creche, funeral, saúde e transporte)”, além de despesas com informática, manutenção predial e gerenciamento de arquivos do tribunal.
Nos últimos dois anos, o TJ-SP já faturou R$ 5,5 bilhões com o rendimento dos depósitos judiciais, de acordo com os balanços publicados pelo tribunal em sua página de transparência.
O excedente de caixa tem permitido que os magistrados da corte recebam uma remuneração mensal que, no ano passado, no caso dos desembargadores, superou a média de R$ 75 mil por mês, conforme a Folha mostrou, acima do teto constitucional (de R$ 44 mil).
O maior desconforto dos advogados ouvidos pela reportagem é com os precatórios, as dívidas de prefeituras ou do estado com contribuintes já reconhecidas pela Justiça. Esses débitos seguem uma lista de credores e podem levar anos para serem pagos pelos governos.
A queixa é que, após a liberação do dinheiro, o credor ainda espera meses para recebê-lo, já que o TJ-SP mantém um processo interno de autorização das transferências. Enquanto o processo não é concluído, o dinheiro fica depositado judicialmente, e o tribunal segue recebendo juros.
O Banco do Brasil informou, em nota, que “o contrato com o TJ-SP possui as características típicas dos contratos que tratam desse tema, sendo importante destacar que os instrumentos envolvendo órgãos do Poder Judiciário são regidos por normas específicas que garantem transparência, eficiência e conformidade legal”.
Fundo assegura recursos que ampliam acesso à Justiça, diz TJ
Por meio de nota à Folha, o TJ-SP destacou que o Fundo Especial de Despesa tem a finalidade de “assegurar recursos para expansão e aperfeiçoamento da atividade jurisdicional, visando ampliar o acesso à Justiça”, bem como pode ser usado para despesas decorrentes de decisões administrativas e auxílios alimentação, creche e funeral.
“Ao alocar recursos do FED, o TJ-SP observa rigorosamente tais finalidades, sempre com foco no compromisso inabalável da instituição com uma Justiça cada vez mais eficiente, acessível, moderna e célere”, diz a nota.
A nota não responde ao questionamento feito pela reportagem sobre o eventual conflito de interesses nem nega o emprego dos recursos para pagamento de vantagens fora do teto aos magistrados, mas elenca investimentos feitos pelo tribunal no período.
Entre 2021 e 2024, diz a nota, o TJ-SP adquiriu 40 mil computadores e notebooks e mais de 80 mil monitores, nomeou quase 8.000 novos servidores e 320 magistrados e instalou 61 novas varas judiciais e 48 unidades de processamento judicial.
“Em relação aos precatórios, foram adotadas inúmeras medidas de gestão para agilização dos pagamentos, com resultados notáveis”, diz o texto. Entre 2021 e 2024, o TJ-SP informa ter disponibilizado R$ 59 bilhões a beneficiários desse tipo de recurso.