De BBB a XVideos: CPI é uma coisa que sabemos como começa, não como termina Mentira envolvendo senador e atriz pornô é alerta para rever o tom e a profundidade da cobertura jornalística sobre a comissão.
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Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo
| Foto: divulgação
Em outro artigo, confessei que não estou acompanhando a CPI por dois motivos. O primeiro é já ter prestado 25 anos de longos serviços profissionais de acompanhamento de CPI como jornalista e assessora. O segundo é não ver nessa CPI da COVID o nível de baixaria e beligerância suficientes para prender minha atenção. Acho um clima meio fim de feira.
Ontem, no entanto, precisei abrir uma exceção e ver um trecho específico da CPI já que finalmente chegamos a um nível digno de atrair minha atenção. A ex-atriz pornô Mia Khalifa estava tuitando sobre e vários jornais estavam falando que ela foi citada na comissão, sendo que isso nunca aconteceu. Fui obrigada a ir atrás.
Esta CPI tem uma imensa interatividade entre políticos e perfis nas redes sociais que armazenaram e catalogaram documentos e vídeos ao longo da pandemia. A relação em si virou um tema para cobertura jornalística, mas é um universo de águas turvas. Saber exatamente qual perfil anônimo está postando um vídeo legítimo e qual está postando uma piada não é tão simples.
A internet trouxe para a arena pública algo que sempre foi uma realidade na nossa sociedade, a existência de nichos culturais e sociais com retórica e estética próprias cuja existência sequer é registrada no imaginário das elites culturais. Além disso, a possibilidade de hipercomunicação e os algoritmos que empurram para a formação de grupos uníssonos geram outras “bolhas”, que se consolidam e desenvolvem a própria subcultura.
Subcultura não é algo menor nem menos importante, é um nicho. O meio jornalístico também tem sua subcultura e, como enxerga o mundo através dela, acabou enfiando a Mia Khalifa na CPI à força. Não é mais possível pretender apurar fatos ou fazer política sem reconhecer as subculturas nativas da internet que estão neste palco e entender sua moral, retórica e estética.
Não é a primeira vez que o jornalismo brasileiro cai na pegadinha da Mia Khalifa, um clássico da subcultura de alguns grupos das redes. Em 2018, foi a vez do meu colega Ricardo Noblat. A piada consiste em juntar o desconhecimento sobre o universo pornô com o desconhecimento sobre funcionamento das redes mais a boa vontade de ajudar alguém que fez algo legal.
Explico. Usa-se a foto da ex-atriz pornô, idolatrada em vários nichos muito ativos nas redes, vestida como se fosse uma executiva ou médica. Então, conta-se a história de que ela é a primeira aluna de algo ou ganhou uma bolsa e receberá alguns centavos por cada curtida e republicação do post. O grupo que cria a história morre de rir quando vê alguém importante postar que uma atriz pornô famosíssima é a estudante de física do interior. É um clássico.
É uma piada antiga, que já passou seu auge e ganhou desdobramentos, como acontece com toda piada velha. No episódio do Ricardo Noblat, vou confessar que quase caí da cadeira de tanto rir. Depois, coitado, apagou o post e tentou se justificar todo sem graça principalmente por ter enfiado nisso a jornalista Andrea Sadi, que não tinha nada a ver com a história. Mas o caso de ontem foi diferente e grave.
É ruim para o jornalismo quando um de nós, ainda que em suas redes pessoais, cai numa pegadinha porque ignora a existência de uma subcultura. Mas passa a ser perigoso para a liberdade de informação quando veículos tradicionais publicam uma mentira sobre fato verificável pelo mesmo motivo. Não adianta levantar bandeira de checagem de fatos e combate a fake news sem fazer lição de casa.
O compromisso do jornalista é com o público, por isso sempre fui contrária a afirmar que somos isentos. Não somos, temos nossas ideologias e preconceitos. Precisamos estar conscientes de quais são eles para ter disciplina, senão eles interferem na avaliação objetiva dos fatos. Por exemplo, na CPI aparentemente Renan Calheiros e Katia Abreu estão sempre certos e Luiz Carlos Heinze sempre errado. Heróis contra vilões, é um jogo político tradicional.
Eu particularmente não gosto do senador Heinze, ex-prefeito de São Borja, por razões de outros carnavais. A mais recente é o envolvimento dele como investigado na Lava Jato, coisa que aposto jamais será esclarecida até o fim dado o andar da carruagem. Mas a outra é um lance do passado, sobre rotulagem de alimentos transgênicos. Na época, ele queria proibir a indicação no rótulo e mentiu na justificativa dizendo que o Brasil era o único país onde se fazia isso. Não se mente em justificativa de política pública.
Exatamente porque há mais de década eu discordo da atuação do senador Heinze, presto atenção em tudo o que vou falar dele para não ser injusta por birra. E não é porque eu sou boazinha ou por causa dele não, é meu dever com o público. Ontem, alguns perfis aleatórios começaram a postar que ele caiu na trollagem da Mia Khalifa médica. Confesso que eu ri. Se eu não fosse jornalista, arrisco dizer que mandaria adiante só pela piada. Ocorre que ele não fez isso e essa história pode esculhambar o clima da CPI.
Qual é a piada de algumas subculturas da internet? O senador, tratado como artista de um espetáculo acompanhado online como reality show, é o tiozão do zap. O mais clássico do tiozão do zap é cair na trollagem da Mia Khalifa intelectual, como ocorreu já com Ricardo Noblat. É a cara do senador Heinze. Juntou-se a fome com a vontade de comer.
Dias atrás, realmente alguém fez o tal meme da Mia Khalifa médica falando de Covid. Isso rolou nas redes, no whatsapp, foi piada. E o senador Heinze leu uma reportagem verídica sobre um estudo fraudado, que saiu nas principais revistas internacionais. Uma das envolvidas não era médica, segundo a revista Lancet era “modelo adulta”. A internet não perdoa, já disse que o senador caiu no meme da Mia Khalifa. É uma tragédia que isso chegue ao noticiário como verdade.
O nome Surgisphere deveria estar no repertório de quem se propõe a passar informações ao público sobre políticas de combate a COVID. O senador estava lendo uma reportagem do Guardian, de 3 de junho do ano passado, sobre um dos maiores escândalos de fraude em pesquisa da história. A OMS e vários governos realmente suspenderam inicialmente, em junho de 2020, os estudos sobre hidroxicloroquina com base em uma farsa quase cinematográfica.
Uma pequena empresa chamada Surgisphere conseguiu publicar estudos científicos nos prestigiosos jornais The Lancet e New England Journal of Medicine. Dizia que as conclusões tinham base em dados enviados por mais de mil hospitais na América Latina que haviam, no início da pandemia, administrado hidroxicloroquina aos pacientes. A OMS e vários governos interromperam os estudos de uso da droga com base nessa publicação. Descobriu-se depois que a empresa não tinha pesquisa nenhuma e que tinha em seus quadros uma modelo adulta e um escritor de ficção científica. Os estudos de uso da hidroxicloroquina foram retomados depois do escândalo.
Reportagem do jornal britânico The Guardian
Temos hoje em vários meios de comunicação um festival de desmentidos sobre publicações apressadas. Essas eu já acho até as melhores depois de ver outros tipos de publicação. Há quem tenha feito matérias só com a reação do senador, dizendo coisas como “senador negacionista diz que não citou atriz pornô”. Outros fazem artigos isolados apenas sobre as declarações de Mia Khalifa no Twitter sobre ter sido citada por um político no Brasil. É mais grave do que parece.
Quem não consegue discernir fato de boato na fala do senador Heinze é confiável para avaliar os depoimentos na CPI? Algumas das pessoas importantes que sentenciam depoentes como terraplanistas ou mentirosos agiram igual a eles num caso que viralizou. Em quem o público vai confiar? Para que grupos vejam o mundo de acordo com a sua subcultura, há duas vítimas: os fatos e o público.
Politizar o enfrentamento de uma pandemia é a maior maldição que um povo pode sofrer, já que um vírus não está nem aí para política. No início de tudo, eu fiz um artigo alertando para as consequências nefastas da torcida de remédio, algo que está devastando a saúde mental das pessoas. Autoridades públicas, médicos, cientistas e formadores de opinião têm a obrigação de acalmar as pessoas num tempo de tanto medo e incerteza como a pandemia. Não foi isso o que aconteceu, impera a vaidade.
Numa situação como vivemos, de um vírus implacável e desconhecido, é natural que as informações mudem. O que era bom ontem pode se descobrir amanhã que não é bem assim, novos dados trarão novas conclusões ou o vírus muta e nossa estratégia muda também. Aferrar-se a verdades absolutas como se fossem uma religião não ajuda a esclarecer o cidadão, ainda mais quando debocha de questionamentos sinceros e pertinentes.
Esperteza é bicho que come o dono. Muita gente que se acha esperta simplesmente debocha de quem pergunta como saber o que está certo ou não em publicações científicas renomadas. É um questionamento pertinente diante do último escândalo e de diversos outros ao longo da história. Ficou claro que muitos dos que se acham espertos desconhecem fatos e julgam o mundo por achismo. O evento de ontem é um sinal de alerta para toda a cobertura da pandemia: o compromisso tem de ser com o público.
Em agosto do ano passado, foi publicada a primeira obra com levantamentos empíricos multidisciplinares sobre desinformação. Chama-se “The Psychology of Fake News: Accepting, Sharing, and Correcting Misinformation”, A Psicologia das Fake News: Aceitando, Compartilhando e Corrigindo desinformação. O livro custa R$ 950, foi editado pela prestigiosa editora Routledge e está de graça na Amazon e no Kindle. Não foi produzido por jornalistas, mas deveria ser leitura obrigatória para jornalistas.
“Lidar com a desinformação é importante em muitas áreas da vida diária, incluindo política, mercado, comunicação em saúde, jornalismo, educação e ciência. Em um clima geral onde os fatos e a desinformação se confundem e são intencionalmente borrados, este livro pergunta o que determina se as pessoas aceitam e compartilham (des)informações e o que pode ser feito para combater a desinformação. Todos esses três aspectos precisam ser entendidos no contexto das redes sociais online, que mudaram fundamentalmente a forma como as informações são produzidas, consumidas e transmitidas. As contribuições neste volume resumem as descobertas empíricas mais atualizadas, teorias e aplicações e discutem ideias de ponta e direções futuras de intervenções para combater notícias falsas”, diz a apresentação.
Dezenas de cientistas do mundo todo apresentam seus estudos sobre desinformação, todos empíricos, sobre os mais diversos assuntos. A organização é de 4 cientistas. Dois deles são da área de Psicologia Social da Universidade de Basel, na Suíça, Rainer Greifeneder e Mariela E. Jaffé. Eryn J. Newman, da Australian National University, pesquisa como nosso cérebro passa a acreditar nas coisas e se lembra de algo como verdade. Norbert Schwarz é da área de Marketing e encabeça o Mind & Society Center da University of Southern California.
Cientistas internacionais de primeiro time consideraram pertinente fazer e publicar um estudo específico sobre o efeito de publicações mentirosas nas grandes revistas científicas. O cidadão comum, que ouve aqui e acolá uma história dessa, tem interesse no assunto. Como ele vai confiar em quem, por ignorar completamente a temática mas se achar o espertão, reage debochando em vez de esclarecer?
O capítulo 4 do livro chama-se “Retracted Articles – The Scientific Version of Fake News”, Artigos Retratados – A Versão Científica das Fake News. Foi publicado de forma póstuma. É o último estudo feito por uma das mulheres cientistas mais brilhantes da nossa era, a húngara Judith Bar-Ilan, uma lenda mundial da infometria e cientometria, pioneira e referência de estudos em todo o mundo.
Cientometria é o estudo e a mensuração do progresso da ciência e da qualidade desse progresso de acordo com critérios objetivos. Uma referência mundial no tema considera importante saber como publicações mentirosas em revistas científicas impactam o progresso da ciência. Ela estudou isso, mediu, concluiu, está publicado. Não há justificativa para mais de um ano depois da publicação um profissional que trabalha com comunicação ser considerado apto a fazer a cobertura sobre Covid sem conhecer essa realidade.
Há um fenômeno mundial de criação de realidades paralelas em grupos radicalizados. Políticos têm se aproveitado dessa situação. Big Techs estão cada vez mais poderosas. O jornalismo não vai combater a desinformação com desinformação oposta e esnobismo. Antes de amar o duelo com rivais, é preciso amar os fatos e o público, que tem o direito à informação.
No final das contas, após sair da fase BBB para a fase XVideos, a CPI está entrando na sua fase Sônia Abrão ou Cristina Rocha. Hoje, foram aprovados requerimentos para ouvir 4 especialistas a favor e 4 contra o uso da cloroquina. Por mim, já podia pegar o dinheiro público que vão gastar, transformar em confete e jogar pela janela que pelo menos dá uma alegria de ver. Não podia haver desserviço maior.
Primeiro que ali não tem método científico para decidir nada. Depois que é puro espetáculo porque, no objeto da CPI, tanto faz se a cloroquina funciona ou não. Em algumas epidemias virais se testa e usa remédio, em outras não. É uma tentativa de aliviar sofrimento e salvar vidas, mesmo sabendo que não é possível combater uma pandemia viral com remédio. A função do governo é combater a pandemia, o que se faz com medidas sanitárias e vacinas, era para investigar isso. Mas, enfim, a sessão de ontem deixou claro que a torcida de remédio dá muito mais ibope que essa chatice burocrática.
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