Covid-19
Por
Eli Vieira*, especial para a Gazeta do Povo
Caixa com ivermectina, um dos medicamentos usados no chamado “tratamento precoce” da Covid-19.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo
A mudança de tom sobre a plausibilidade de o SARS2, vírus causador da pandemia, ter se originado em laboratório foi uma das maiores reviravoltas na cobertura de opiniões de especialistas na imprensa nas últimas décadas. Ao ponto de a revista eletrônica Vox ter sido pega editando silenciosamente um artigo do ano passado para amenizar o tom de certeza que tinha dado para a origem natural do vírus — o jornal Washington Post fez a mesma coisa. O Facebook parou de censurar artigos que defendessem a origem laboratorial — mas continuará insistindo em não dar liberdade de expressão aos usuários, apesar do fiasco (de fato, mal escrevi as linhas acima, fui censurado lá por esse motivo). Até o governo Biden andou se movimentando para exigir uma investigação melhor das origens do vírus, já que a da OMS não serviu.
Assim como se revelaram apressadas a afirmações peremptórias contra a origem laboratorial do vírus, é bem possível que aconteça uma outra virada e uma outra reedição de afirmações contra todo e qualquer tratamento precoce da doença que ele causa, a Covid-19.
Não faltam exemplos, entre influenciadores da mídia tradicional e da nova mídia, de quem decretou que as soluções quase improvisadas dos médicos para tratamento precoce seriam indignas de confiança, talvez pseudocientíficas, certamente “negacionistas” — o adjetivo lamentável da moda que foi cunhado originalmente para malucos que duvidam do Holocausto dos judeus.
Há uma grande intersecção entre o grupo que descartou cedo demais a origem laboratorial e o grupo que ainda afirma a ineficácia de todo e qualquer tratamento precoce. Merecem uma segunda chance? É o que analisaremos aqui.
Primeiro, deixemos claro do que estamos falando: tratamentos precoces são intervenções pré-hospitalares (os italianos dizem “tratamento domiciliar”), com a intenção de que aliviar os sintomas da Covid-19, e, de preferência, impedir que esses sintomas se agravem e o paciente seja hospitalizado. Há um segundo significado relevante para “precoce”, aqui: que esses tratamentos devem ser aplicados assim que os sintomas começam, pois os efeitos podem ser sensíveis ao tempo.
O tratamento precoce não foi proposto como cura originalmente, mas como esperança. Havia um senso de urgência. Como disseram pesquisadores italianos numa revisão de tratamento domiciliar de meados de 2020, mencionando pedidos de conselho vindo de médicos da América Latina: “Você só pode contar com evidências muito escassas na literatura e com seu próprio conhecimento para administrar os sintomas dos seus pacientes, e com a experiência” dos autores.
Uma resposta definitiva na ciência demora muito, e, quando chega aos livros-textos, já é tarde demais para uma primeira resposta a uma nova doença. Não só a busca de alternativas é prerrogativa médica, é bem possível que seja uma obrigação médica nessas situações. Essa investigação clínica antecede a aplicação da pesquisa científica na medicina. A primeira pode ser tão bem feita quanto a última, a qual pode vir para confirmar o que foi originalmente descoberto na prática clínica.
Como julgar os estudos
A pesquisa médica, que consiste não só em ciência, mas também em investigação clínica, tem diferentes graus de rigor que vão do mais baixo (mas potencialmente útil) estudo de caso, em que se descreve o que ocorreu com um paciente, ao rigor médio dos estudos observacionais, seguidos pelo rigor mais alto de estudos clínicos randomizados e controlados (ECRs), depois estudos randomizados duplo-cego, que são casos especiais dos ECRs, até aos enormes estudos com coortes que duram anos.
Os ECRs são, portanto, uma base firme para que se possa afirmar algo a respeito da eficácia das drogas do tratamento precoce (a seguir nos referiremos aos ECRs simplesmente como “estudos”). Neles, os pacientes são divididos em dois grupos, nos quais são postos por sorteio: o grupo experimental, que toma a droga sendo investigada, e o grupo controle, que não a toma. Quanto maior for o número de pacientes incluídos num estudo, e maior a diferença encontrada nos desfechos entre os dois grupos, maior é o grau de certeza dos resultados.
Porém estudos com um número exorbitante de pacientes costumam ser feitos por farmacêuticas tentando estabelecer a eficácia de novas drogas, não reavaliar drogas baratas já disponíveis no mercado; ou então por governos, com suas burocracias lentas e sujeitas a pressões políticas e lobbies comerciais.
Uma avaliação da eficácia das drogas do tratamento precoce, portanto, dependerá quase que exclusivamente de estudos menores. Ainda que devido ao seu tamanho isoladamente cada um destes estudos possa ter pouca robustez estatística, o grau de certeza aumenta muito quando todos eles são analisados conjuntamente em estudos chamados de metanálises. Há, portanto, um elemento de pragmatismo adicional a ser considerado, sem perder o elemento do rigor.
HCQ: onde a evidência é mais frágil, mas ainda existente
A primeira droga de tratamento precoce a se tornar notória foi a hidroxicloroquina (HCQ), por causa dos resultados de sua aplicação junto ao antibiótico azitromicina pelo médico Didier Raoult. Agora sabemos que os resultados de Raoult eram bons demais para serem verdade. Mais do que isso, os estudos de HCQ conduzidos em pacientes graves o suficiente para serem hospitalizados — os que entraram na chamada “fase inflamatória” — indicam que a droga não é eficaz numa etapa mais adiantada. Mas isso não significa que a eficácia da HCQ no contexto precoce foi totalmente descartada.
O que aconteceu com a HCQ foi que os estudos repetidamente chegaram perto do limiar estatístico convencionalmente aceito para afirmar a eficácia, sem ultrapassá-lo. O fato de os estudos terem se aproximado do limiar repetidamente é sugestivo: pode ser que haja um efeito, porém não muito forte, ou que é mascarado por variáveis como estágio da doença ou pelo tamanho insuficiente da amostra.
Esse limiar é definido através do “valor p”, uma medida estatística que corresponde grosseiramente à probabilidade de o resultado ter sido atingido por “pura sorte”, sem haver realmente eficácia. A convenção metodológica nas últimas décadas, especialmente nessa área, tem sido que não se tolera que esse valor p ultrapasse 5%.
Porém, ao se afirmar a ineficácia da HCQ com base no valor p acima de 5% — às vezes apenas ligeiramente acima — está havendo uma amnésia coletiva dos comentaristas científicos: há poucos anos, em 2019, muitos cientistas propuseram o abandono dessa convenção, ou ao menos de uma interpretação comum dela que é a que vemos em quem afirma ineficácia total da HCQ com base nela. Valentin Amrhein e mais de 800 signatários disseram à Nature que a interpretação dicotômica do valor p deve ser abandonada. De fato, os estatísticos profissionais sempre souberam que, se o p for maior que 5%, isso não significa que a hipótese da eficácia foi descartada, ou que a hipótese da ineficácia deve ser aceita.
Entre as drogas propostas para o tratamento precoce, é verdade que a HCQ não é a estrela, embora haja no conjunto agregado dos estudos do seu uso precoce uma redução de cerca de 25% na taxa de hospitalização, comparando o grupo experimental com o grupo consolidado de placebo. As estrelas são outras.
As estrelas do tratamento precoce: ivermectina, budesonida e fluvoxamina
A ivermectina é um dos poucos medicamentos, se não o único, que pode ser chamado de “antiparasitário de amplo espectro”, ou seja, algo que funciona para parasitas tão diferentes quanto vermes e vírus. Além disso, a ivermectina parece ter uma série de efeitos antiinflamatórios. Para a ivermectina há, no momento, cerca de 18 estudos com diferentes dosagens a diferentes estágios da evolução do quadro da Covid-19. Também temos algumas metanálises publicadas. Os resultados são promissores.
Duas metanálises (esta e esta, a primeira aceita numa revista científica revisada por pares e a segunda já publicada) apontam que a ivermectina reduz o risco de hospitalização em pacientes com casos leves a moderados em cerca de 70%. A Cidade do México obteve o mesmo resultado num teste maciço do uso da droga. Entre outros países que estão aplicando a droga estão Eslováquia, África do Sul e estados da Índia. A eficácia foi observada em roedores em laboratório, e foi proposto um mecanismo de ação da ivermectina: que ela se liga à proteína que o vírus usa como “chave” para entrar nas células, e também à “fechadura” das células, dificultando o encaixe.
Outras duas metanálises da ivermectina merecem ser comentadas. Uma da OMS estima a redução da mortalidade em 80%, mas declara que a qualidade da evidência é baixa. Outra metanálise do Peru conseguiu cometer o erro crasso de trocar os números do grupo experimental pelo grupo controle; uma vez corrigido o erro, ela estima (com p-valor de cerca de 7%) uma redução de cerca de 60% na mortalidade. Portanto, as metanálises de qualidade melhor apoiam a eficácia da ivermectina para o tratamento precoce. Diante desses resultados, o NIH (National Institutes of Health, Institutos Nacionais de Saúde), que financia pesquisas com verbas americanas, decidiu finalmente lançar um estudo grande sobre a droga, com 15 mil participantes, aos 47 minutos do segundo tempo.
Há um estudo duplo-cego publicado no respeitado JAMA (Journal of American Medical Association) em que os autores concluíram que não há eficácia no tratamento precoce com ivermectina. Mas há dois problemas dignos de nota nele. O primeiro é que, apesar da dose de ivermectina ter sido bastante alta, não houve diferença nos efeitos colaterais entre o grupo controle e o grupo experimental. Apesar de o medicamento ser muito seguro, isso é muito estranho: os pacientes do grupo experimental deveriam ter exibido mais efeitos colaterais. O outro problema é o mesmo do caso da HCQ: o estudo mostra que o grupo experimental se saiu melhor que o controle, porém os autores abraçaram a hipótese nula (a não eficácia) só por causa do valor p não ser menor que 5%, embora seja pequeno. Quão melhor o grupo experimental se saiu em comparação ao controle? 43% de redução no risco de piora dos sintomas. Portanto, esse estudo não conta como evidência contrária ao tratamento com ivermectina: conta como uma evidência favorável, porém fraca, por causa do número de envolvidos e o valor p. Está em conformidade, portanto, com o caso geral dos outros estudos que, em conjunto, mostraram-se favoráveis à eficácia de acordo com as metanálises.
A budesonida, medicamento para asma, foi autorizada (“off label”) como tratamento precoce pelo NHS, o serviço de saúde estatal dos britânicos, notório pelo rigor, para ser inalada por pacientes a partir de 65 anos ou a partir de 50 anos com comorbidades. Um estudo menor publicado no periódico médico Lancet foi um de dois que motivaram a decisão do NHS, pois sugere redução de 80% na hospitalização ou atendimento de emergência. Esse número deve mudar conforme mais dados são analisados. O estudo maior indica redução de 20% em hospitalização e morte. A Índia seguiu a confiança dos britânicos e também adotou a budesonida. Esses fatos foram praticamente ignorados pela imprensa brasileira.
Já a fluvoxamina, que é um antidepressivo, parece ter encontrado outra forma de combater a tristeza: como outro tratamento precoce para a Covid-19. A droga dispõe de um estudo duplo-cego publicado no JAMA, uma das principais revistas científicas médicas do mundo, a favor dessa prescrição nova, e mais um estudo com resultados similares. O famoso programa jornalístico americano 60 Minutes cobriu esses resultados porém, mais uma vez, a imprensa brasileira não deu atenção ao assunto. Assim como a ivermectina, tem mecanismo de ação proposto: interfere de diversas formas com o maquinário molecular do vírus e atenua a “tempestade de citocinas”, que é a famosa reação potencialmente letal do sistema imune à infecção.
Por que tanta resistência contra todo tratamento precoce?
Política. O que acontece com propostas que são politizadas é que, para sinalizar membresia à tribo política associada a elas, algumas pessoas se engajam no autoengano propagandista de prometer o que não foi prometido originalmente. E, reativamente, tribos políticas rivais passam a exagerar para o outro lado, declarando-se detentoras de provas definitivas de que essas propostas não funcionam e até que são imorais. A verdade não está necessariamente no meio, assim como a razão não costuma ser a média entre duas loucuras. Mas a verdade é alcançável pela mente paciente e menos atada por compromissos tribais, e os estudos são um auxílio para escapar dessa arapuca, embora alguns possam ser influenciados por ela. Um ingrediente constante da politização é a hipérbole: um lado acusa o outro de homicídio por propor solução ineficiente, e o outro devolve a acusação dizendo que ignorar soluções possíveis é aumentar o número dos que sofrem hospitalizados e mortos.
Falsa dicotomia entre tratamento precoce e vacinas. Quem contrai Covid-19 entre uma dose e outra da vacina, ou antes de ter a oportunidade de ser vacinado, poderia ser beneficiado com o alívio dos sintomas e o efeito protetivo do tratamento precoce. E quem se tratou precocemente com sucesso adquiriu uma imunidade que pode desafogar a fila da vacina, sendo posto na baixa prioridade.
Má interpretação estatística dos estudos. Este motivo mais técnico explica a resistência de alguns especialistas. É preciso lembrar que a maioria dos pesquisadores não é especializada em estatística, e a usa como uma ferramenta, às vezes em programas de computador cujo funcionamento não entendem completamente. Aderem a interpretações míopes do valor p sem perícia estatística.
Captura de órgãos regulatórios e de aconselhamento médico pelas razões acima, e adesão acrítica a eles. Esses órgãos, como a OMS, a FDA e o NIH, podem ser presa fácil das más interpretações de estatística. Os bons observadores viram, especialmente no começo da pandemia, o quanto esses órgãos podem ser falhos. A OMS chegou a desencorajar as máscaras.
Conflito de interesses. A Merck, fabricante da ivermectina, lançou uma nota alegando que a droga não tem eficácia para a Covid-19. A ivermectina é barata e dá pouco lucro, especialmente depois de a Merck ter distribuído bilhões de doses em 49 países antes da pandemia. É mais interessante economicamente para a Merck promover uma nova droga (como Monulpiravir) que está lançando contra a doença. Aqui, não se deve ver necessariamente esse conflito como consistindo em malícia e planejamento vilanesco. As pessoas são perfeitamente capazes de defender seus interesses inconscientemente, com o autoengano. Não que farmacêuticas sejam famosas por errar por boas intenções… especialmente considerando que a Merck já foi acusada de fazer campanha de assassinato de reputação contra médicos.
Alegações de riscos das drogas. Aqui, recomenda-se olhar avaliações de riscos das drogas que antecedem a politização do tratamento precoce para a Covid-19. A ivermectina é usada há décadas sem grandes pânicos, e nos estudos de Covid-19 não foram observadas grandes complicações. Não é difícil exagerar riscos para qualquer droga: até o paracetamol pode matar em doses altas. Além disso, as bulas de remédios não são documentos científicos, mas documentos que conscientemente erram do lado da cautela: incluem todo tipo de complicação que os pacientes passam na fase de testes, mesmo sem evidências de que essas complicações vieram do medicamento. É por isso que as bulas são tão medonhas.
Conclusão
Seria de se esperar que pessoas interessadas em ajudar os pobres teriam como uma das primeiras reações a uma pandemia a procura por algum tratamento já disponível, barato e seguro. Não às cegas, pois existem milhares de tratamentos e drogas e o tempo é premente, mas com base em plausibilidade bioquímica e espectro de ação. Infelizmente, essa expectativa encontrou os empecilhos acima.
A medicina está cheia de acidentes faustos em que uma droga que havia sido pesquisada para um propósito se revela útil para outro. O sedativo brometo de potássio foi proposto no século 19 como uma droga antimasturbatória. O carbolítio (carbonato de lítio) foi proposto para bipolares porque há semelhanças de alterações de humor deles com quem sofre de gota, que advém de muito ácido úrico no sangue, que o carbolítio cortaria. Mas bipolaridade nada tem a ver com ácido úrico: outras formas de cortar o ácido úrico no sangue dos bipolares não surtiam efeito. O carbolítio de fato modula o humor, mas o mecanismo de ação proposto (a “comprovação”) era falso. O primeiro ansiolítico era um aditivo conservante para a penicilina. O famosíssimo Diazepam era só uma tintura para observar amostras de tecido biológico em microscópio. E, outro caso famoso, o Viagra foi estudado inicialmente como tratamento para hipertensão e angina. Não seria uma surpresa muito grande, nem um caso singular, se alguma droga já aprovada para outras doenças pudesse ter algum efeito para tratar Covid-19.
Portanto, a busca de tratamento precoce via reutilização de remédios deveria ser um dos primeiros passos no curso de ação rápida quando uma nova doença aparece. As “evidências anedóticas” dos médicos na prática clínica podem ter valor, e muitos medicamentos eficazes hoje vieram exatamente delas, sem falar em medicamentos que começaram como chás populares.
Os médicos são mais capazes de fazer essas decisões quando estão em dia com o conhecimento científico relevante. Porém não deve ser exigido deles que apliquem o rigor máximo científico onde ele não é nem necessário nem há tempo hábil para ele. Existe rigor clínico, rigor da experiência, que merecem respeito assim como o conhecimento científico, e seu valor foi provado em milênios de prática médica. O que os médicos observam leva a análises mais rigorosas que podem confirmar as suas conclusões, como discutido aqui.
De acordo com as evidências atuais, é possível afirmar que houve um tabu midiático e de profissionais, instituições e empresas com conflito de interesses para suprimir, impedir e silenciar o uso de tratamento precoce para Covid-19, assim como houve a respeito da hipótese de o vírus ter vazado de um laboratório na China. O custo em bem-estar e até em vidas é incalculável. Uma segunda revisão de posturas públicas está por vir.
*Eli Vieira é biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, Reino Unido.
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