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Francisco Razzo – Gazeta do Povo

Fotomontagem: Bolsonaro e Lula aparecem nas primeiras posições em pesquisa para eleições 2022.| Foto: Arquivo Gazeta do Povo

Politicamente considero a expressão “terceira via” sofrível. Se funciona retoricamente, já são outros quinhentos. Afinal, o termo “terceira via” pretende apresentar alternativas entre Bolsonaro e Lula, entre reacionários e revolucionários.

Prefiro pensar em termos de duas vias: a via do populismo — seja de esquerda ou de direita — e a afirmação democrática, que significa basicamente a ousadia de se sentar à mesa e negociar com adversários sem passar pelo constrangimento de reduzi-los a inimigos mortais.

Assumir uma terceira via significa creditar a Lula e Bolsonaro duas alternativas e o resto. E possível inverter essa fórmula: existe a via democrática e o resto é demagogia. Por “resto” entendo duas concepções de mundo que se retroalimentam: bolsonarismo e lulismo são faces de um mesmo imaginário político: pensamento mítico, salvadores da pátria, demagogia…

Em 2014, bem antes de Bolsonaro sonhar em ser presidente da República, escrevi aqui mesmo pra Gazeta o seguinte:

Abro aspas: De intelectuais catedráticos a meninos na puberdade, muitos fazem questão de ser identificados como de esquerda ou direita. Leem autores considerados de esquerda ou direita, descrevem com nostalgia como a vida em países de esquerda ou direita é magnífica, escolhem políticos, escolas, roupas e, no extremo, até namoradas e namorados. Isso para não falar do risco de se ter uma sogra de esquerda ou direita.

Até ontem, pegava muito mal estar associado à direita; hoje, virou motivo de orgulho. Por outro lado, os desacreditados intelectuais de esquerda precisam reafirmar que a esquerda não teme dizer seu nome. Como o futebol está em baixa no país do futebol, trata-se de uma questão de identidade. Prova de que o desejo de autoafirmação política ultrapassa os limites dos rótulos.

Nesse sentido, torna-se inevitável o uso desses termos — pelo menos no que diz respeito à tentativa de identificar alguém que tem orgulho em ser chamado assim. Para evitar a paixão desmiolada dos adjetivos ideológicos, é preciso mapear os lugares-comuns de ambos os grupos. Não é difícil fazer um inventário dos termos elementares mais usados por eles.

Sempre e invariavelmente, quem se orgulha da esquerda chamará de ‘fascista’ todos aqueles que não são ou desprezam a esquerda. Não interessa se o seu oponente for um liberal defensor da economia de mercado, um entusiasta do Estado mínimo, um católico distributivista ou um anarquista convicto. Para quem é de esquerda, não ser de esquerda é ser fascista. O que significa: ser simpatizante de ditador nacionalista, elite branca e torturador xenofóbico.

Já os de direita adotam o termo ‘comunista’ para os seus desafetos. Comunismo tem nesse contexto o mesmo peso constrangedor de chamar alguém de nazista. Não interessam as radicais diferenças históricas entre os dois regimes totalitários, não interessa a variedade histórica dos “comunismos”. Só interessa uma coisa: a associação ao imaginário de morte e terror. Ser comunista é ser genocida e totalitário. E é isso o que seu amigo de direita pretende dizer quando chama você de comunista.

A esquerda odeia a ‘classe média’ mais que tudo. Ódio explícito: a classe média é a razão para toda desgraça do país. Da enchente à falta d’água, do trânsito nas metrópoles à violência relacionada ao tráfico de drogas, do caso de suspeita de ebola à cracolândia. Não interessa: a classe média é o bode expiatório da esquerda. Se você, da classe média, for roubado, sequestrado ou queimado por bandidos, lembre-se sempre: para o seu amigo de esquerda, a culpa será sempre e inevitavelmente sua.

Já a direita tem uma tendência menos explícita para identificar culpados. Por isso, está sempre à procura de “agentes ocultos” e tem preferência por explicações de teor conspiratório. A culpa não é totalmente sua, você é só mais um idiota útil servindo à Nova Ordem Mundial, ao Foro de São Paulo ou ao marxismo cultural, cujos agentes estão infiltrados na Igreja Católica, no MEC, na Maçonaria, na festa junina. Enfim, a sua única responsabilidade é a de ser um idiota. Fecho aspas.

Não mudei uma vírgula do que escrevi em 2014. Hoje, apenas substituiria os genéricos termos “esquerda” e “direita” por “Lula” e “Bolsonaro”.

Para bolsonaristas ou você é Bolsonaro ou comunista; enquanto defensores de Lula consideram fascista tudo o que não é espelho. Ao contrário do que eles mesmos propagam, um não supera o outro, pois se complementam: Reacionários bolsonaristas invertem a imagem de mundo dos progressistas petistas; sendo assim, não superam o que visam combater, mas impulsionam e legitimam o adversário — e, claro, devemos considerar o fato de que o contrário também é verdadeiro. Detalhe é que a violência política se torna o subproduto dessa relação amorosa.

Isso não é política, mas politicídio. Para inverter uma conhecida fórmula de Marx, aqui no Brasil parece que a história se repete, só que a primeira vez como farsa e a segunda como tragédia.


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