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Um choque de energia, entre a pandemia e a COP26, era tudo de que o mundo não precisava

Lourival Sant’Anna*, O Estado de S.Paulo

Uma crise energética bate à porta do mundo, com impacto ainda impossível de medir sobre a retomada da atividade econômica e a reorganização das cadeias de valor e da logística pós-pandemia, o descompasso já existente entre demanda e oferta em um grande número de setores, com as decorrentes pressões inflacionárias, e a transição de combustíveis fósseis para fontes renováveis de energia. A Ásia e a Europa são as regiões mais atingidas, mas o efeito dominó já atinge os EUA e a economia global.

O último inverno na Europa e nos EUA foi mais rigoroso do que de costume. A primavera europeia também foi mais fria e o verão asiático, mais quente. Tudo isso causou aumento na demanda de gás natural, usado no aquecimento das casas e escritórios e na geração de energia elétrica consumida pelos aparelhos de ar condicionado. Neste momento, a demanda é impulsionada pela formação de estoque para mais um inverno no Hemisfério Norte.

Europa e China estão reduzindo o uso do carvão na geração de energia, para cumprir suas metas de emissão de gás carbônico. Na conferência virtual da ONU sobre mudança climática, em dezembro do ano passado, o presidente Xi Jinping anunciou até 2030 o corte de mais de 65% das emissões por unidade de PIB, em relação ao nível de 2005. A China é o maior emissor de gases do efeito estufa do mundo. PUBLICIDADE

A decisão abrupta está relacionada com a disputa por projeção internacional com os EUA, que passariam no mês seguinte a ser governados por Joe Biden, com a questão ambiental no topo da agenda. Quatro meses depois, na Cúpula do Clima promovida pelo presidente americano, Xi se colocaria na posição confortável de ter anunciado sua ambiciosa meta antes das gestões de seu novo adversário.

A Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, que supervisiona o setor, anunciou que das 30 províncias e regiões chinesas, 20 não alcançaram suas metas de redução de energia no primeiro semestre. Em meados de setembro, a agência anunciou punições mais duras para as regiões que não cumprissem suas metas, incluindo as autoridades locais. 

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Um choque de energia, entre a pandemia e a COP26, era tudo de que o mundo não precisava Foto: Romeo Ranoco/REUTERS

Foi a senha para elas reduzirem o uso do carvão, resultando em racionamentos e blecautes. Fábricas interromperam suas produções, incluindo fornecedoras de empresas como Apple e Tesla. Em decorrência, o PIB chinês pode crescer 1 ponto porcentual a menos neste trimestre. 

A China e a Europa investem há anos na energia eólica e solar, que sofreram notável barateamento. Mas uma decisão abrupta como a de Xi desmonta qualquer planejamento. Na Europa, os ventos no segundo trimestre foram os mais fracos nos últimos 20 anos, prejudicando a geração de energia eólica. 

O aumento da demanda por gás natural na Europa para fazer frente a todas essas pressões coincidiu com a conclusão do gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha. Mais de 60% do gás consumido na União Europeia é importado. A Rússia é o maior fornecedor, com 40% dessa fatia. 

A Gazprom suspendeu o fornecimento do gás por meio de seus gasodutos na Ucrânia – adversária da Rússia – como forma de pressionar a Bundesnetzagentur, a agência reguladora alemã, a apressar a autorização do Nord Stream 2, que pode levar meses.

O preço do gás subiu 250% este ano na Europa e 180% nos últimos 12 meses nos EUA. Em média, nesse período, a relação oferta-demanda continuou estável no mercado interno americano. Foram as exportações, para atender aos mercados da Europa e da Ásia, que subiram 65 este ano. O Federal Reserve reconheceu que a pressão inflacionária resultante pode abreviar sua política de estímulo à liquidez.

A energia é a base de toda a atividade econômica. Sua escassez afeta a produção e o transporte de alimentos, matérias primas, componentes e produtos acabados. Um choque de energia, entre a pandemia e a COP26 (conferência da ONU sobre o clima, daqui a um mês em Glasgow), era tudo de que o mundo não precisava.

* É COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS

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