Por
Francisco Razzo – Gazeta do Povo
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Ultimamente tenho me aventurado no universo das criptomoedas. Não, eu não fiquei milionário com investimentos em Bitcoin e deixo bem registrado que esta coluna não deva ser lida como dica de investimentos. Só estou interessado nessa relação entre tecnologia, economia e política. Trata-se, acima de tudo, de um interesse, vamos dizer, sociológico.
Para nos ajudar a entender um pouco mais a respeito desse universo que tem atiçado a curiosidade de leigos, de investidores e do Felipe Neto, eu convidei Felippe Hermes, que é colunista do InfoMoney e editor-chefe do BlockTrends – parte do grupo QR Capital. Felippe Hermes é gaúcho e torcedor do Colorado.
Enfim, será uma coluna totalmente diferente daquelas filosofadas que meus leitores estão acostumados.
Felipe, sei que você é um entusiasta do Colorado e da criptomoeda mais famosa do universo. Minha primeira pergunta é simples: Afinal, por que Bitcoin?
Resposta curta: porque o Bitcoin é único no que se propõe, transpor para um código matemático todo o processo histórico do conceito de “moeda”.
Ele começa pela reserva de valor, em que o Bitcoin incorpora conceitos do ouro, até atingir um estágio de maturidade em que ele possa servir como meio de troca e unidade de conta. É possível dizer que estamos chegando ao segundo ponto, uma vez que as inovações em cima da rede Bitcoin, como a Lightning Network, já elevam sua capacidade de transações. Já o terceiro ainda é algo futuro, quando os preços serão considerados em Bitcoin. Algo que acredito estar bem distante.
“O Bitcoin é único no que se propõe, transpor para um código matemático todo o processo histórico do conceito de ‘moeda’.”
Felippe Hermes
Nenhuma outra criptomoeda possui essa intenção. A maior parte delas se propõe a solucionar outros problemas. Ethereum, por exemplo, é uma ferramenta base para criar e desenvolver projetos envolvendo “smart contracts” (contratos inteligentes), sejam NFTs (Token não fungível) ou DeFi (finanças descentralizadas). Outras criptos querem evoluir a maneira como o sistema financeiro funciona. As DeFi utilizam blockchain para fazer transações e permitir empréstimos, seguro e operações financeiras de maneira mais ágil que um banco e sem barreiras internacionais.
Em suma, acredito que o Bitcoin e o Ethereum sejam as únicas criptos cuja tese de investimento já está fundamentada: reserva de valor e infraestrutura base. O ETH (moeda digital da rede Ethereum), porém, apresenta questões que considero ruim: é controlado por uma fundação e está implementando “proof of stake” (prova de participação), ou seja, manda na rede quem possui mais ETHs, e não quem agrega maior capacidade computacional, como é o Bitcoin.
Ainda assim, vendo o Ethereum como uma empresa, e as DeFi com potencial, eu não descartaria ambos. Apenas tenho mais confiança no BTC no longo prazo.
Qual foi a grande inovação do Bitcoin – as criptomoedas substituirão a economia tradicional?
Quando a gente olha para a história de tentativas de criar o Bitcoin, como o Ecash, o B-money e o Bit Gold, é possível ver que o processo todo foi fruto de uma evolução. Todos visavam criar um meio de transação que valorizasse a privacidade.
O Ecash, do fim dos anos 80, falhou por não incluir a descentralização. Ele permitia transações online em uma moeda virtual, mas usava um “banco” para fazer isso. Já o B-Money nunca foi lançado, mas existiu como proposta. Ele agregou a “prova de trabalho”, que remunera quem oferece poder computacional à rede, registros públicos de transações sem expor as pessoas detentoras da carteira. O Bit-Gold, de Nick Szabo (que acredito ser o nome real de Satoshi Nakamoto), falhou ao não conseguir tornar o ativo incopiável.
“O Bitcoin age como um ouro digital (ou o ouro é um bitcoin analógico), em uma época em que a criação de dinheiro do nada está em alta por parte de bancos centrais.”
Felippe Hermes
Em suma, houve uma evolução no processo que culminou com o Bitcoin: um ativo digital com política monetária pré-definida, sustentado por computadores descentralizados, remunerados pelos usuários da rede, e cujas transações retiram a necessidade de uma terceira parte para existir.
O Bitcoin age como um ouro digital (ou o ouro é um bitcoin analógico), em uma época em que a criação de dinheiro do nada está em alta por parte de bancos centrais. O Bitcoin não vai substituir a economia mundial, mas é provável que a faça mudar bastante.
Muitas vezes escuto de amigos a seguinte expressão: “Bitcoin não tem lastro e não é reserva de valor”. Essa crítica se sustenta?
A ideia de lastro é bastante tentadora. A maioria das pessoas é avessa ao risco, o que ironicamente explica o número de pessoas que caem em esquemas de pirâmide que prometem lucro garantido. O Bitcoin tem três coisas que lhe dão valor: a tecnologia, a confiança e a escassez.
Moedas fiduciárias, porém, têm uma única garantia: a capacidade do governo de extorquir os pagadores de impostos para pagar os credores. Mas, dada a incerteza da política monetária tradicional, a gente pode ter mudanças bruscas.
Veja o caso do real: de um ano para o outro ele teve 40% a menos de poder de compra. Ao mesmo tempo os juros caíram e as pessoas que antes recebiam 1% ao ano de juros (6% de taxa de juros menos 5% de inflação), agora perdem 4% (juros de 6% e inflação em 10%). Em resumo, o real se tornou um mico. O tal lastro, a capacidade do governo de pagar os credores, continua lá, mas não é um impeditivo para a perda de poder de compra.
“O Bitcoin tem três coisas que lhe dão valor: a tecnologia, a confiança e a escassez. Moedas fiduciárias, porém, têm uma única garantia: a capacidade do governo de extorquir os pagadores de impostos para pagar os credores.”
Felippe Hermes
Já o dólar teve 30% de aumento na base monetária em um ano por conta da pandemia. Suponha que você tenha US$ 1 em uma economia que possui US$ 100 em circulação. Se no ano seguinte há US$ 130 em circulação e você continua com US$ 1, você perdeu dinheiro. Sua grana tem menos valor que antes, compra menos coisas que antes etc.
O Bitcoin, ao contrário, é previsível. Ele flutua, claro, e é instável, mas isso ocorre porque as pessoas que possuem bitcoin não estão dispostas a trocá-lo por dólares cada vez menos escassos. Nos últimos 90 dias, cerca de 85% dos bitcoins não se mexeram. Isso significa que a oferta atual, de 16 milhões de BTCs, é na realidade bem menor.
Há apenas entre 1 milhão e 2 milhões de bitcoins disponíveis. Se todos os milionários do mundo (existem 56 milhões de milionários) quiserem 1 BTC, não terão. É impossível. A escassez em um mundo onde o dinheiro é cada vez menos escasso é algo que tem valor. Por isso imóveis, ações de empresas de qualidade, terras e o BTC têm valor e estão subindo tanto.
Com relação a outras “altcoins” (criptomoedas alternativas ao Bitcoin), elas não poderiam tornar o Bitcoin obsoleto?
99% das altcoins resolvem problemas que não existem. A maior parte delas ainda precisa se provar, mas não vejo nenhuma ameaçando o Bitcoin em seu conceito fundamental: reserva de valor. O Ethereum é um grande competidor, e acredito que vá se sair até melhor no curto prazo (próximos dois a três anos), mas ele não vai tornar o Bitcoin obsoleto, ao contrário. O ETH pode apenas apressar a evolução do Bitcoin.
Em 2013, quando Vitalik, o fundador do Ethereum, propôs mudanças no Bitcoin, pra permitir “smart contracts”, a rede rejeitou. Ele fundou o ETH e quase seis anos depois o Bitcoin passou a ter “smart contracts”, mas que não são o foco.
“A escassez em um mundo onde o dinheiro é cada vez menos escasso é algo que tem valor. Por isso imóveis, ações de empresas de qualidade, terras e o BTC têm valor e estão subindo tanto.”
Agora, imagine que qualquer mudança proposta seja rapidamente aceita. O risco de o Bitcoin mudar radicalmente e se tornar instável é imenso. É positivo que a rede do BTC não seja tão apressada em fazer mudanças, pois o ativo vai ganhando escala e continua seguro. Nesse universo cripto o Bitcoin continuará sendo um padrão, um ouro, pois é o único verdadeiramente descentralizado.
Mas sim, é possível que em algumas características outras criptomoedas sejam melhores. Porém, são questões secundárias diante da necessidade de se ter uma reserva de valor global que não dependa de políticos.
Recentemente, El Salvador se tornou o primeiro país a adotar Bitcoin como moeda oficial, você acha essa tendência? Qual a vantagem?
Para El Salvador é uma vantagem imensa. Eles têm uma população de 7 milhões de pessoas e mais de 2,5 milhões de salvadorenhos nos EUA. Hoje, com a Lightning Network (a solução de pagamentos em cripto), é possível que um salvadorenho nos EUA envie US$ 10 pra um parente de maneira instantânea e custo próximo de zero.
Antes da adoção do Bitcoin eles dependiam da Western Union, que leva até uma semana e cobra quase 10% de taxas. O Bitcoin possui seu próprio Pix, internacional. Acredito que diversos países vão reconhecer o Bitcoin como um ativo, commodities provavelmente, mas tornar moeda não deve ser tendência. É útil pra El Salvador, pois se qualifica pra receber investimentos na indústria de blockchain, por exemplo, além de servir politicamente para o presidente, que tem interesse em projetar uma imagem jovem e antissistema.
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