A transformação digital começa fortalecendo o contato com o cliente e pode criar as etapas para a própria disrupção
Marina Mansur e Wagner Gramigna*, O Estado de S.Paulo
É raro ver empresas que morrem por mudarem rápido demais, mas é frequente vê-las morrerem por mudarem muito lentamente. Daquelas que ficaram para trás, atropeladas pelos novos normais que se sucedem um após o outro, existem inúmeros casos exemplares – quem lembra da história da Kodak, que produziu a primeira câmera digital em seu departamento de pesquisa em 1975, mas não quis interferir no mercado de filme fotossensível onde ela liderava e engavetou o projeto? Ou da Blockbuster, que no ano 2000 rejeitou uma proposta de parceria com uma empresa então endividada que oferecia seus DVDs via catálogo online e os enviava pelo correio, chamada Netflix?
Para as empresas que atualmente reinam soberanas, a única certeza que a História traz é: tudo muda. E, para não ser atropelado pela carruagem do tempo, hoje uma nave quântica pilotada por inteligência artificial, a única solução é mudar junto. A transformação digital está aí para viabilizar este processo. Existem múltiplas maneiras de mudar e continuar relevante via transformação digital. A estratégia para buscar crescimento pode proteger o âmago da operação de disrupções externas – que virão, certas e inexoráveis, mais cedo ou mais tarde – ou pode ir além e criar a própria disrupção.
Cada etapa da transformação é como um bloco que pode ser acrescentado aos poucos, fortalecendo a empresa contra as intempéries dos novos normais. Ambas as estratégias exigem empenho orquestrado das equipes e lideranças para serem viabilizadas e não vão acontecer sozinhas. Com referências de melhores práticas, é possível evitar muito dos percalços inerentes à jornada.PUBLICIDADE
Mudar para dentro: proteger-se
Para crescer e, ao mesmo tempo, proteger e dar novo fôlego às mais variadas operações que atendem ao consumidor, as empresas de varejo podem investir em um plano de transformação digital com uma abordagem interna 360° para destravar valor em todos os pontos de contato do consumidor; com os possíveis passos listados a seguir:
a. Transformar a jornada do cliente
Com ajuda de uma abordagem ágil e novas tecnologias, é possível repensar a jornada do cliente de ponta a ponta para torná-la a mais fluida e satisfatória possível. Para realizar esta transformação, as empresas devem ter diagnósticos e mapeamentos claros já no ponto de partida, entendendo a jornada completa e seus pontos de dor. Para desenhar a jornada futura, é preciso levar em conta primordialmente dois conceitos: a centralidade no cliente, criando espaços para interações constantes com o usuário final, e o teste rápido através de um MVP (do inglês minimum viable product). Esse produto mínimo viável possui apenas os recursos essenciais que permitem seu rápido lançamento no mercado. Com isso, é possível medir a aceitação do público e evitar desperdícios – se é para falhar, que seja rápido e com pouco investimento. Aos poucos, são feitos ajustes e acréscimos.
b. Transformar o serviço ao cliente
Clientes interagem com marcas e negócios por muitos canais. Cerca de 75% visitam mais de um canal para coletar informações; para 40% deles, os canais de coleta de informação e de compra são diferentes. Os canais digitais podem ser 60% mais baratos para vendas e 90% mais baratos para renovação de produtos, por exemplo. Neste contexto, investir em autoatendimento digital (eCare) é uma maneira rápida não só de aumentar vendas e renovações, mas também de reduzir custos de call center, além de gerar uma experiência mais eficiente e intuitiva para o consumidor. Para conseguir priorizar o que desenvolver primeiro, é preciso quantificar os potenciais ganhos e criar uma estratégia de incentivos, positivos ou negativos, para encorajar o uso dos novos canais.
c. Investir em advanced analytics
Informação é o novo petróleo e, nessa área, o potencial é gigantesco. O uso de advanced analytics (AA) e de modelos preditivos permite destravar valor em uma série de pontos críticos. Uma análise de dados externos não estruturados, por exemplo, como reações, texto e voz em redes sociais, pode fornecer insights que diminuem significativamente o custo de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos. Essas análises, que exigem uma enorme capacidade de processamento de dados, permitem, por exemplo, prever com maior antecedência o próximo produto a ser comprado; otimizar a arquitetura de preços, as decisões promocionais e o gerenciamento geral de margens, criando preços individualizados; automatizar a predição de estoque e simplificar outros processos da cadeia de suprimentos; entre outros muitos usos. Modelos de estatística não linear, analytics em tempo real, monetização de dados e outros recursos de machine learning estão explodindo as fronteiras do possível. Na área de análise de crédito e cobrança, por exemplo, o uso de AA em modelos de crédito pode gerar 5-20% de redução de custo de PDD.
d. investir na transformação ágil da empresa
Uma transformação ágil de fôlego, envolvendo toda a estrutura e cultura de uma empresa, cria times multidisciplinares e ciclos de trabalho iterativos, permitindo melhorias rápidas que podem reduzir em até 40% o time-to-market. Isso representa uma mudança de paradigma histórica. O modelo organizacional anterior, que vigorava desde a época do fordismo, priorizava hierarquia e especialização. A transformação ágil pensa nas empresas como uma rede de equipes diversas e capacitadas, que podem se modificar rapidamente, trabalhando para atingir um objetivo comum. As lideranças agem como facilitadores, ajudando as equipes a cumprirem suas missões. E o impacto positivo vai além do cliente – funcionários também relatam se sentirem mais satisfeitos e comprometidos com seus trabalhos, e todo o desempenho operacional melhora. Tantos benefícios que se reforçam mutuamente produzem um quarto resultado – melhor desempenho financeiro: empresas que passaram por transformações ágeis altamente bem-sucedidas normalmente obtêm cerca de 30% de ganhos em eficiência e tornam-se de cinco a dez vezes mais rápidas que seus concorrentes.
É importante considerar que as alavancas mencionadas acima dependem de bases anteriores para serem viabilizadas, tais como tecnologia modernizada, talentos capacitados e uma cultura que nutra e estimule esses movimentos.
Mudar para fora: reinventar-se
Empresas que já estão avançadas em suas transformações digitais podem ir além e criar a própria disrupção, reinventando-se em três níveis:
a. Mudar o jeito de servir: mantém-se o mesmo produto e público-alvo, mas com um novo modelo de negócio.
Essa é uma possibilidade quando a tecnologia abre novas vias inexploradas – foi exatamente a jogada da Netflix, mencionada no início. A empresa começou em 1997 com um modelo de entrega de DVDs em domicílio e, em 2007, mudou radicalmente seu modelo de negócio para uma plataforma de streaming. Os filmes e clientes foram mantidos, trocando-se o DVD físico pelo streaming online.
Este caminho é adequado quando a franquia principal quer inovar, sem perder dois ativos principais: conhecimento do setor e base de clientes.
b. Expandir a franquia
Quando o relacionamento com clientes é robusto, criam-se oportunidades de expansão, o que permite oferecer um novo produto em um novo modelo de negócio para a mesma base de clientes. É o que fez a Disney ao lançar o canal Disney +, por exemplo, ou o iTunes da Apple, que de biblioteca virou loja de música. Este modelo também é adequado quando o potencial de crescimento de lucro no negócio principal é limitado, ou quando existem oportunidades claras em verticais próximas.
c. Expandir as fronteiras
Quando um ativo ou posição única no mercado gera uma vantagem competitiva muito grande, ou quando há capacidade e apetite para financiar investimentos de caixa plurianuais, empresas mais bem posicionadas podem dar um salto ainda maior e criar um novo modelo de negócio, com um novo produto e um novo segmento de clientes. Um dos maiores exemplos desse salto é a AWS da Amazon, a maior plataforma de computação em nuvem da atualidade, que oferece mais de 200 serviços tecnológicos diferentes. Nesta manobra, a Amazon saiu do mundo B2C e expandiu sua atuação para o universo B2B.
Para dentro ou para fora?
Muitos CEOs debatem sobre essa encruzilhada, perguntando se devem apenas digitalizar ou reinventar totalmente seus negócios. Não existe uma resposta pronta e única, pois tudo depende do grau de maturidade e dos objetivos da empresa. Muitas vezes, a solução não é nem uma nem outra, mas sim as duas, em sequência – primeiro transformar o âmago da operação, ganhar eficiência e capital para, então, ter fluxo de caixa suficiente para se reinventar. Para saber o tamanho do próximo passo, é necessário conhecer bem a própria perna. E não há dúvidas: se querem vencer a corrida contra a carruagem do tempo, as empresas precisam cultivar o músculo da inovação. Para ouvir relatos de executivos que passaram por essa experiência, participe do Fórum McKinsey a ser realizado em 19 de novembro. Informações neste endereço.
*Sócia associada e sócio na McKinsey & Company