Judiciário
Por
Renan Ramalho – Gazeta do Povo
Brasília
O presidente do STF, Luiz Fux, suspendeu o juiz de garantias e marcou o julgamento que pode implantá-lo na Justiça.| Foto: Nelson Jr./STF
Magistrados de todo o país e associações da classe são contrários e temem os efeitos da implantação do chamado “juiz de garantias” – embora uma parte menor deles seja a favor. A criação desse novo tipo de juiz foi aprovada em 2019 pelo Congresso como uma espécie de resposta à suposta parcialidade de Sergio Moro na condução dos processos da Lava Jato; e teria o objetivo de garantir a isenção da Justiça. Mas a lei foi suspensa liminarmente, no início de 2020, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que nesta semana realizou uma audiência pública para debater o assunto, antes de decidir o que fazer no julgamento final do assunto, marcado para 25 de novembro. Foi nessa audiência que os magistrados se manifestaram.
O juiz de garantias é um modelo, comum em outros países, no qual o Poder Judiciário designa um magistrado apenas para supervisionar a investigação criminal e impede que ele profira a sentença final do processo, pela condenação ou absolvição de um réu. Esse papel caberia a outro juiz, que não atuou no início do caso.
Atualmente, apenas um juiz cuida de todas as principais fases da persecução penal: inquérito (na supervisão da investigação, autorizando a coleta de provas); recebimento da denúncia (verificação se a acusação apresentada pelo Ministério Público tem indícios mínimos de autoria e materialidade de um crime, o que leva à abertura de uma ação penal e torna o investigado réu); instrução do processo (tomada de depoimentos de testemunhas, juntada de novas provas por defesa e acusação); e julgamento final do caso, com a sentença.
Pela nova lei o juiz de garantias seria responsável pelas duas primeiras fases e o juiz de instrução pelas duas últimas.
Essa divisão de tarefas entre os juízes foi inserida por parlamentares no chamado “pacote anticrime”, proposta enviada ao Congresso pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, para endurecer o combate à corrupção e ao crime organizado. A figura do juiz de garantias não estava no texto original do projeto, mas foi incorporada por deputados de viés “garantista”, que tendem a favorecer e reforçar os direitos de defesa de investigados e réus. Os defensores do juiz de garantias dizem que, com ele, haveria maior imparcialidade no processo penal, uma vez que ele, como supervisor de uma investigação, não poderá dar a sentença final no caso.
Na época da aprovação e sanção da nova lei, entidades representativas da magistratura pediram ao STF a suspensão da legislação. As associações de magistrados apontaram tempo curto para sua implementação (30 dias), em razão das dificuldades operacionais e restrições orçamentárias para a reorganização de varas e tribunais para a nova divisão das tarefas. Fux concedeu a liminar e suspendeu a novidade.
Nesta semana, Fux chamou dezenas de especialistas – dentre representantes do Ministério Público (MP), da advocacia e da magistratura – para discutir o assunto no STF. A audiência foi convocada porque, no próximo dia 25 de novembro, as ações contra o juiz de garantias serão julgadas no plenário do Supremo, formado por todos os 11 ministros. Em razão da complexidade do tema, há a possibilidade, porém, que o julgamento fique para o ano que vem.
Os argumentos dos magistrados contrários ao juiz de garantias
Em dois dias de audiência, a maioria dos representantes dos juízes criticou a proposta e defendeu sua inconstitucionalidade. Apontaram obstáculos de ordem prática (como a necessidade de grande reorganização na Justiça); objeções jurídicas (o fato de a lei ter partido do Executivo, sendo que deveria partir do Judiciário, uma vez que implica em sua reestruturação da Justiça); e também consequências ruins para o próprio combate ao crime (pois essa nova divisão poderia trazer tumulto e atraso na tramitação dos processos).
Um dos primeiros a se manifestar contra o juiz de garantias foi o juiz Mário Guerreiro, integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em sua exposição, disse que a Constituição diz que cabe somente aos próprios tribunais definirem sua organização interna. “Não pode vir uma lei federal e estabelecer qual juiz julgará o quê. Uma vez estabelecida a competência de um determinado tribunal, é o tribunal que vai definir quais de seus juízes vão julgar a matéria que lhe é cabível. Há aqui uma invasão.”
Representando o Conselho da Justiça Federal (CFJ), o desembargador Nino Toldo apontou a dificuldade para implementar o juiz de garantias de maneira uniforme em todo o país. “Na Justiça Federal, as seções se diferenciam muito. Não se pode partir de um modelo único que sirva para todos, porque isso não é possível. É necessário que cada tribunal no exercício de sua autonomia, verifique a melhor forma”, afirmou.
O juiz Felipe Mateo, de São Paulo, afirmou que o juiz de garantias custaria R$ 330 milhões por ano, pela necessidade de dobrar o número de magistrados no estado, fora R$ 15 milhões para novas instalações físicas. “Não há muita margem para manobra na gestão orçamentária do tribunal. É um custo inviável”, disse. Caso magistrados fizessem rodízio para atuar como juízes de garantias em outras varas, isso implicaria pagamento adicional de diárias ou gratificações por acúmulo de serviço.
O juiz André Vorraber Costa, do Rio Grande do Sul, falou sobre as dificuldades de implementação no interior. Ele disse que, em boa parte do estado, apenas um juiz atende várias municípios. Quando ele tira férias ou se ausenta, o juiz de uma comarca vizinha o substitui. Se o juiz da comarca vizinha passar a atuar como juiz de garantias em todos os casos criminais do primeiro, ele não poderá julgar esses mesmos casos quando o substituir nas férias. Isso criará a necessidade de trazer juízes de regiões mais distantes para sentenciar no processo. “Implica despesas, pagamento de diárias, e até dificuldade na prestação jurisdicional. Hoje já temos déficit de 4,4 mil juízes. E a implantação do juiz de garantias também é agregar mais servidores”, disse Costa.
A juíza de direito Larissa Pinho de Alencar Lima, do Fórum Nacional dos Juízes Criminais, disse que a proposta não foi debatida a fundo com a categoria durante a rápida tramitação no Congresso. Argumentou que as complicações processuais e logísticas para dividir um caso entre dois juízes levará à prescrição e impunidade. “O processo ficaria ainda mais lento, aumentando o risco de prescrição, reduzindo de modo significativo a resposta à sociedade, às vítimas e ao próprio acusado, que deseja que seu processo termine o mais rápido possível”, disse.
A juíza de Minas Bárbara Livio, do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar, argumentou que o juiz de garantias prejudica mulheres que sofrem abusos em casa. Isso porque, para elas, é melhor contar com apenas um juiz para cuidar de todo o caso, e não dois. “Aos juízes de violência doméstica e familiar, é necessário que eles estejam perto do local em que atuam para articular a rede de enfrentamento. O magistrado conhece o litígio, defere a medida protetiva de urgência, julga o processo e encaminha a mulher para a assistência jurídica, psicológica, à saúde, à assistência social e assim quebra o ciclo da violência”, afirmou.
Argumentos dos magistrados a favor do novo modelo
Na audiência, uma parte menor dos magistrados defendeu a criação do juiz de garantias. Aliaram-se a argumentos de advogados e defensores, que também discutiram o tema no STF, segundo os quais essa figura traria mais imparcialidade ao processo. A ideia é que, hoje, o juiz tende a condenar o réu baseado nas impressões que teve durante a investigação. Conferir o julgamento a um magistrado diferente daquele que atuou no inquérito acabaria com o viés de confirmação, isto é, a tendência de corroborar a hipótese inicial da apuração.
“O mesmo juiz que julga não poderá ser o mesmo juiz que colhe as provas como também não pode ser o juiz que decreta as medidas de urgência. Porque, naturalmente, conforme as pesquisas modernas de psicologia comportamental mostram, haverá impacto na sua dimensão psicológica”, afirmou o juiz federal Marcelo Luzio Marques Araújo, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2).
Também nessa linha falou a desembargadora federal Simone Schreiber, da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “No Brasil, a investigação criminal é conduzida pelos órgãos de persecução penal; o juiz atua tão somente como garantidor de direitos fundamentais das pessoas investigadas. Não obstante, sempre que é chamado a decidir a respeito de uma medida que implique restrição dos direitos fundamentais dos investigados, ele é instado a formar juízos, ainda que provisórios, sobre a ocorrência dos fatos criminosos. Então, para deferir as medidas solicitadas, tem que afirmar que os elementos informativos corroboram as hipóteses da autoridade policial, do Ministério Público, de envolvimento daquela pessoa na prática dos crimes. Isso faz com que crie vieses que prejudicam sua atuação isenta no processo criminal”, afirmou.
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