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Guilherme de Carvalho – Gazeta do Povo
Gustavo Assi, professor da Universidade de São Paulo que estará em um evento paralelo à COP-26.| Foto: Gabriel Penna
Estamos a poucos dias da COP-26, a conferência global do clima que ocorrerá de 31 de outubro a 12 de novembro, e os olhos do mundo estão voltados para Glasgow, no que foi descrito como uma “corrida contra a mudança climática”. As questões mais prementes são a manutenção da meta de limitar o aquecimento global a 1,5ºC até 2050, estabelecida pelo Acordo de Paris; o apoio político, técnico e financeiro aos países em desenvolvimento; o risco de retrocesso em relação ao Acordo de Paris; e o desafio das mudanças efetivamente transformadoras por parte de países e empresas.
Muito embora o governo Bolsonaro tenha sido até pouco tempo notoriamente omisso, tirando o país de seu histórico protagonismo ambiental, uma surpreendente reviravolta política parece estar em curso. Bolsonaro disse anteontem que não estará presente na cúpula, mencionando vagamente algo sobre “estratégia”, o que foi interpretado por muitos como sinal de descompromisso, mas tenho outro palpite: sua presença não teria mesmo grande potencial de transformar a percepção internacional sobre essa reviravolta política – o homem está queimado demais. Mas, se os olhares se voltarem para o ministro Joaquim Leite e ele tiver sucesso em projetar uma nova imagem de protagonismo ambiental brasileiro, e o Brasil realmente assinar o Forest Deal, o acordo sobre proteção de florestas, segundo anunciado pelo embaixador Carvalho Neto em entrevista à BBC, poderíamos dizer que a política ambiental brasileira voltou para os trilhos.
Se o Brasil tomar esse rumo, um ponto fortíssimo da equação ambiental brasileira poderá ganhar grande visibilidade: a capacidade estrutural e tecnológica para negativar as emissões de gases de efeito-estufa (GEE). Essa é a bandeira de Gustavo Assi e de um time de cientistas ligado à USP que já estão a caminho de Glasgow, para participar do International Technology Centres Summit & Research Study. Segundo o press release da iniciativa, “o evento paralelo à Conferência do Clima (COP-26) tem o objetivo de facilitar projetos científicos internacionais e auxiliar a comunidade científica e empresarial global a engajar cientistas e institutos de excelência”.
“Finalmente parece que temos boa tecnologia desenvolvida, e um futuro claro pela frente, capaz de mitigar o efeito da ação humana no clima.”
Gustavo Assi, professor da Escola Politécnica da USP
Na coluna de hoje entrevistamos Gustavo Assi para falar sobre a sua missão científica na COP-26 e sua perspectiva sobre o desafio ambiental brasileiro. Assi é professor associado do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, atua como diretor de Inovação e Transferência de Tecnologia do Research Centre for Greenhouse Gas Innovation (RCGI) e é também membro da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2).
Com um ano de adiamento, devido à pandemia, o relatório científico de ponta do IPCC, divulgado em agosto, e o ruído dos eventos climáticos extremos testemunhado nos últimos meses, a expectativa pela COP-26 subiu às alturas. Como você vê isso nos círculos acadêmicos brasileiros? Há mais desânimo ou algum entusiasmo?
Eu diria que há um pouco de cada. Certamente há entusiasmo para quem estuda esse assunto, especialmente para os que estão desenvolvendo tecnologia para ser empregada na transição energética e no combate à mudança climática. O relatório do IPCC veio cristalizar o que estávamos percebendo: não há mais dúvidas de que as mudanças climáticas se devem à ação humana no planeta. Mas o entusiasmo se deve ao nosso momento tecnológico. Finalmente parece que temos boa tecnologia desenvolvida, e um futuro claro pela frente, capaz de mitigar esse efeito. Por muito tempo ficamos procurando o que a humanidade poderia fazer. Agora temos uma boa perspectiva que deve nortear ações nos próximos anos. A tecnologia não está tão distante assim.
Contudo, pelo outro lado, há certo grau de desânimo – e digo isto principalmente como um pesquisador brasileiro. Ao mesmo tempo que o Brasil tem grande potencial e histórico de contribuição nesse tema, temos sofrido com o abandono da pauta e experimentado um certo descaso com as ações que podem trazer algum proveito. A comunidade acadêmica tem uma inércia maior que os ciclos de governo. Portanto, seu papel de sentinela deve perdurar. Minha opinião é que esperamos tempos melhores nas políticas públicas. Portanto, devemos estar cientifica e tecnologicamente prontos para quando eles chegarem, ao mesmo tempo que devemos contribuir para antecipar seu retorno.
Há poucas semanas, quando conversamos a respeito, nosso assunto era a preocupação com o silêncio do Itamaraty sobre a participação brasileira; mas parece que o dever de casa vinha sendo feito, não? O governo criou o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima e Crescimento Verde e lançou na última segunda-feira, dia 25, o Programa Nacional de Crescimento Verde. Em cima da hora, mas saiu! O que pensa sobre essa proposta do governo?
Não tive tempo de analisar adequadamente esse programa. Estive muito atarefado com os preparativos para a viagem. De modo geral, é bom ver alguma mobilização do governo brasileiro no tema. Sei que há corpo técnico nos ministérios de Minas e Energia, da Ciência e Tecnologia e até no de Relações Exteriores que se preocupa seriamente com o assunto e com a atuação do Brasil nessa pauta. Mas ações neste tema dependem de uma articulação muito mais ampla e declarada, uma ação genuinamente de governo. Não bastam discussões e intenções técnicas, precisamos de políticas públicas sólidas que transpassem mandatos (mas este é o caso de tantas outras áreas no Brasil, não é? Sempre lamentamos dizendo que precisamos de mais políticas de Estado do que de governo…).
Uma coisa é certa, infelizmente: na nossa percepção, o Brasil deixou de lado a pauta climática e perdeu protagonismo no tema nos últimos anos. Esperamos que haja um retorno na forma de ações de governo diretamente focadas no combate ao aquecimento global, principalmente focando no controle de emissões de gases de efeito estufa (GEE). Mas, no momento, o que temos visto são ações secundárias e pontuais. Falta-nos integração e continuidade. Movimentos “em cima da hora”, às vésperas da principal reunião de cúpula do tema, têm pouco impacto e apenas revelam o abandono do tema.
Uma reclamação entre jornalistas – esse ponto foi até mencionado pelo Bernardo Esteves na Piauí – é que o projeto omitiu o compromisso de zerar o desmatamento da Amazônia até 2030 e de alcançar “neutralidade climática” até 2050 (“emissões líquidas” de gases de efeito estufa igual a zero). No seu julgamento, esses compromissos explícitos são essenciais ou os cursos de ação adotados importam mais?
O Brasil, assim como todas as nações, deve trabalhar com metas bastante específicas. Esta é a maneira técnica de se aferir o avanço das políticas e medidas práticas no tema; não podemos viver de “boas intenções” e “rumos gerais”. Quando empresas, governos e outros setores declaram que vão buscar neutralidade nas emissões num certo período, é importante explicitarem os métodos de obtenção e monitoramento dessas marcas. A equação climática brasileira é bastante interessante. Obviamente, reduzir e reverter o desmatamento faz parte dela. Quando analisamos os parâmetros brasileiros, percebemos que eliminar o desmatamento tem muito impacto, tomando posição prioritária entre as principais medidas para mitigação das emissões de GEE. Se o Brasil vai levar a sério suas metas de neutralidade nas emissões, eliminar o desmatamento tem preponderância urgente.
“O Brasil deixou de lado a pauta climática e perdeu protagonismo no tema nos últimos anos. Esperamos que haja um retorno na forma de ações de governo diretamente focadas no combate ao aquecimento global.”
Gustavo Assi
Você poderia resumir para nós o impacto dos gases de efeito estufa no planeta e por que as metas do Acordo de Paris são importantes?
Gosto de falar disso como que falando aos meus alunos de graduação em Engenharia: O planeta passa por ciclos climáticos naturais. Conseguimos avaliar que, ao longo de muito tempo, muito antes de os humanos surgirem, a temperatura média na Terra oscilou entre períodos mais quentes e eras glaciais. Contudo, em nenhum desses períodos a temperatura média da Terra subiu tanto e tão rapidamente quanto na época em que a ação humana começou a ter impacto significativo. A Revolução Industrial é o nosso marco histórico. Desde essa época a população humana no planeta cresce exponencialmente, e todos queremos consumir produtos e energia em maior quantidade e menor preço. Esse efeito fez com que as emissões de gases de efeito estufa do século 19 para cá (sendo o dióxido de carbono o principal deles) amplificassem o efeito de acúmulo de calor na atmosfera terrestre.
Hoje entendemos, “sem dúvidas” (como diz o relatório do IPCC), que a atividade humana teve e tem efeito sobre o clima, aquecendo a temperatura média do planeta acima de qualquer registro do passado, por meio das emissões de GEE. O Acordo de Paris é uma tentativa de controlar esse aquecimento, mantendo a temperatura média da Terra poucos graus acima daquela estimada antes de esse efeito antropogênico ter impactado o planeta. Como o aquecimento está diretamente relacionado às emissões, o Acordo estabelece uma meta de temperatura que requer ações dos povos para conter ou reverter tais emissões danosas. Desculpe a expressão, mas, em resumo, o Acordo de Paris é um chamado nos dizendo que a vaca está indo pro brejo e requerendo ações concretas para reverter seu caminho.
Falando em gases de efeito estufa: esse assunto diz respeito diretamente à missão da qual você está participando, não é? O que é o RCGI e que evento paralelo é esse que ocorrerá em Glasgow?
Sim, esse assunto é a essência do que pesquisamos no Research Centre for Greenhouse Gas Innovation. Compomos um centro de pesquisas baseado na Universidade de São Paulo, com mais de 400 pesquisadores, que busca o conhecimento científico e o desenvolvimento de tecnologia para a mitigação das mudanças climáticas num contexto de transição energética. O centro conta com financiamento da Shell e da Fapesp, principalmente, dentre outras empresas que se juntaram posteriormente. No RCGI juntamos o melhor da ciência brasileira com a motivação da indústria de energia que opera no globo. Nossos projetos têm apresentado soluções interessantes que se aplicam não apenas ao cenário brasileiro, mas também no mundo. Por isso participaremos da COP-26, a Conferência do Clima da ONU, em Glasgow, nesta semana.
De modo geral, a COP-26 tem um evento central, a tal reunião de cúpula com os líderes das nações, que discutirá as metas e compromissos dos povos. Essa parte deve receber forte cobertura da mídia; vale a pena ficar atento aos movimentos nas próximas semanas. Quem leva o assunto com seriedade estará lá. Mas também há os eventos e reuniões técnicas que acontecem em paralelo. Participaremos desses outros eventos, que reúnem a comunidade técnica, científica e acadêmica. Normalmente, as discussões técnicas desenvolvidas numa conferência alimentarão as discussões políticas da conferência seguinte. Nossa missão nestes encontros é apresentar e discutir sobre o potencial e a capacidade brasileira no tema.
Segundo o press release do RCGI, a missão brasileira pretende apresentar algo não apenas inovador, mas bastante ousado: não apenas zerar, mas negativar as emissões de carbono brasileiras. Entendo que o ponto não seja tanto político, mas tecnológico: o Brasil teria a capacidade para fazer isso. Você pode nos dizer algo sobre essa capacidade técnica?
De fato, trataremos desse assunto. Mas o ponto é mais político do que possa parecer. O Acordo de Paris apresentou metas para a redução das emissões de GEE para alcançarmos a redução da temperatura num período. Isso foi há alguns anos. De lá para cá, a humanidade não cumpriu com o que prometeu. O último relatório do IPCC nos indica que estamos atrasados. Antes, falávamos de redução das emissões, depois passamos a falar de neutralizá-las… agora, falamos da real necessidade de torná-las negativas. A percepção atual é que precisamos não apenas nos tornarmos neutros, mas sim rapidamente negativos nas emissões de gases GEE se ainda tivermos algum compromisso com o Acordo de Paris.
O interessante é que descobrimos que há soluções técnicas possíveis e viáveis: existem maneiras de capturar carbono da atmosfera, armazenando-o de forma segura e permanente. A solução técnica é desafiadora, sem dúvidas, mas é factível. Contudo, a implementação dessas tecnologias é fortemente dependente de ações políticas de grande escala. Começando pela escala regional, mas alcançando, necessariamente, a escala continental. Lembre-se, mitigação de GEE nunca é um problema local, de uma ou outra empresa ou de um único país, mas é um problema global que deve ser encarado em escala global. A vantagem brasileira é que nosso país pode ser um grande ator “na escala global” dado o tamanho do nosso território, população, indústria, etc.
A neutralidade das emissões de GEE, quiçá o alcance das emissões negativas, passa necessariamente pela integração de diversos setores industriais no Brasil. Além de tecnologia, isso requer regulamentação e políticas públicas consistentes, abrangentes e duradouras. Tecnicamente, o Brasil tem vantagens que outros países na vanguarda nem sonham em ter: a qualidade de nossa matriz energética, setores industriais, fontes de novas energias, capacidade de armazenamento de carbono, posição geográfica, tamanho da costa, recursos naturais… tudo coopera para que nossa “equação climática” seja bem mais favorável que a de outros países já comprometidos com ações positivas. Posso dizer que a solução técnica está avançando. É necessário que a solução política avance no mesmo passo visando uma implementação bem-sucedida no futuro próximo.
“Precisamos não apenas nos tornarmos neutros, mas sim rapidamente negativos nas emissões de gases GEE se ainda tivermos algum compromisso com o Acordo de Paris.”
Gustavo Assi
A captura de carbono já disperso na atmosfera é certamente muito mais difícil do que capturar na fonte, mas isso exige compromisso econômico e político do agronegócio e da indústria de base, não é? E como vocês pretendem articular isso politicamente? Há uma estrutura de advocacy e articulação política para isso?
Correto, a captura do carbono já disperso na atmosfera é mais difícil que capturá-lo na fonte dos processos industriais emissores. De modo geral, podemos pensar em processos naturais de captura, como a fotossíntese nas plantas, por exemplo, e processos artificiais, como sistemas de captura instalados nas plantas industriais. O Brasil deve reconhecer a necessidade de melhorar sua captura natural. Nossa agropecuária é gigante, a silvicultura também é; aumentando-se a eficiência das lavouras e pastagens, e eliminando-se o desmatamento, obviamente podemos alcançar índices de captura muito favoráveis no Brasil. Do outro lado, também devemos lembrar que temos grandes setores industriais de impacto. Se conseguirmos capturar carbono das indústrias de etanol, celulose, cimento, aço, mineração, fertilizantes, produtos químicos, transportes etc., teremos mais um ponto a nosso favor.
Mas o que faremos com todo este carbono capturado? Considerando que temos a capacidade de armazenar grande quantidade de carbono em reservatórios geológicos (tanto em terra quando no pré-sal oceânico), podemos nos tornar um sorvedouro de CO2 para o mundo (produzindo créditos de carbono). Some tudo isto à nossa matriz energética que é bastante limpa, além do grande potencial de exploração de novas fontes de energia renovável em terra e no oceano. Pronto, a equação brasileira é de dar inveja em muitas nações que se preocupam com o assunto há mais décadas que nós. Perceba como a equação climática passa por vários parâmetros e setores industriais e energéticos. O mais interessante é que o Brasil é abençoado em todos estes aspectos! Por isso o RCGI tem um forte programa de advocacy. Além dos cinco programas que buscam soluções técnicas para o problema, entendemos a importância de articular em nível nacional as políticas necessárias para nossa equação climática sair do papel.
A coisa passa pelo fim do desmatamento, também. Esse me parece um dos pontos cegos mais incrivelmente cegos da atual administração, rendendo inclusive choques do governo com especialistas em meio ambiente. Mas, aparentemente, os maus resultados do marketing governamental nesse campo estão levando a uma moderação. Como está hoje o diálogo entre a academia e o governo na questão ambiental?
Tenho pouco a contribuir aqui. Sei que a academia tem cumprido seu papel de mostrar que o fim do desmatamento é fundamental para nossa equação de emissões. Na verdade, nossas pesquisas mostram que reduzir o desmatamento é a maneira mais rápida e barata de impactar positivamente o balanço de GEE do Brasil. Algumas vezes essa afirmação foi negligenciada, considerada alarmista ou entendida como contrária ao desenvolvimento. Mas minha percepção é de que isto está mudando. Já estamos entendendo que há maneiras mais eficientes de desenvolver a agropecuária, por exemplo, sem aumentar o desmatamento. O desmatamento ilegal que dá lugar às atividades pouco eficientes deve ser rigidamente combatido. Mas o desenvolvimento econômico e social fruto da agropecuária equilibrada deve ser incentivado. Requeremos outro paradigma para equacionar exploração com desenvolvimento.
“Já estamos entendendo que há maneiras mais eficientes de desenvolver a agropecuária sem aumentar o desmatamento. O desmatamento ilegal que dá lugar às atividades pouco eficientes deve ser rigidamente combatido. Mas o desenvolvimento econômico e social fruto da agropecuária equilibrada deve ser incentivado.”
Gustavo Assi
Foi uma surpresa para mim, particularmente, ler as palavras “Mudança de Clima” no título do novo comitê governamental. O relatório do IPCC está pesando na consciência do governo ou é só conversa para inglês ver? Você vê indícios de mudança substancial nesse campo?
Espero que o relatório do IPCC esteja pesando na consciência de todos nós. Até que isto tenha impacto nas ações de governos, normalmente, leva mais tempo. Se o trem desacelerou, leva um tempo até que ele retome a velocidade. Portanto, acho que é cedo para fazer essa avaliação. Mas, sinceramente, espero que o Brasil reconheça logo seu papel como ator global nesse tema, assuma seu protagonismo, pelo menos em escala regional, e descubra o potencial que tem para contribuir na pauta climática. Não sei se a consciência do governo está mudando, mas a ausência do termo na boca do governo por tanto tempo nos fez grande falta.
Energias renováveis são outra área quente, e do seu interesse pessoal, se não estou enganado. Você concorda com cientistas que vêm retomando o caminho da energia nuclear como alternativa limpa ou pensa que o Brasil teria alternativas melhores?
De fato, energias renováveis são parte importante da equação climática. Percebeu que uso demais esse termo “equação”? Deve ser vício de professor de Cálculo. Mas acho que ele representa bem a ideia de um balanço necessário entre muitas variáveis. Como disse, nossa matriz energética é bastante limpa. Tanto a energia hidrelétrica quanto o etanol têm participação para que a geração de energia brasileira seja das mais limpas do mundo. Todavia, nossos recursos hídricos já foram explorados ao limite e não suprirão o crescimento da demanda. Nossas fontes convencionais também trazem problemas. Ainda que venhamos a usar o gás do pré-sal para alimentar nossas termelétricas, sua queima contribuirá negativamente para as emissões. Portanto, a busca por outras fontes de energia limpa é uma necessidade para o Brasil – de fato, para o mundo –, se quisermos manter essa variável da equação com baixos índices de emissão. Com o avanço da tecnologia, as energias fotovoltaica e eólica despontam promissoras, especialmente num país com grande extensão territorial e uma das maiores taxas de insolação do mundo.
Mas a solução energética não se resume a uma única fonte; a integração de diversas fontes renováveis é fundamental para equilibrar a sazonalidade e capacidade dos sistemas geradores. A biomassa, bastante associada à agricultura, também tem papel preponderante. Mas não podemos nos esquecer do oceano: energia renovável eólica offshore, de correntezas marinhas e de ondas também tem seu papel complementar. Pessoalmente, como engenheiro naval e oceânico, tenho trabalhado na exploração de energia renovável do oceano.
“Nossos recursos hídricos já foram explorados ao limite e não suprirão o crescimento da demanda. Com o avanço da tecnologia, as energias fotovoltaica e eólica despontam promissoras, especialmente num país com grande extensão territorial e uma das maiores taxas de insolação do mundo.”
Gustavo Assi
Mas entendo que a transição energética para uma matriz limpa e sustentável requererá diversas fontes em cooperação. Neste cenário, não podemos simplesmente descartar a energia nuclear (por sinal, a Escola Politécnica da USP acaba de abrir um curso de graduação em Engenharia Nuclear). Seja como energia de transição ou permanente, ela tem um papel importante, especialmente quando o país tem recursos naturais e detém a tecnologia necessária. O cenário tecnológico atual é bem diferente daquele que nos assustou com os acidentes de décadas atrás. As caraterísticas geológicas do Brasil também são bem mais seguras que aquelas do Japão. Havendo rigoroso controle do rejeito nuclear, pode, sim, ser uma fonte de energia interessante durante um processo de transição energética.
Por fim, entendo que há boas alternativas definitivas no horizonte. Ainda exploraremos óleo e gás (de maneira cada vez mais limpa), etanol, urânio… até que tenhamos tecnologia para uma matriz energética totalmente limpa. Até lá, precisamos implementar soluções mais eficientes e menos emitentes para as fontes de energia que temos disponíveis. Isto, somado à captura, armazenamento e utilização de carbono (CCUS), dará ao Brasil uma posição estratégica no processo de transição energética.
Mudando nosso papo para um tema mais explicitamente ideológico: como muitos na área, imagino que você se incomode bastante com os discursos que negam que a atual mudança climática tenha causa humana, ou antropogênica, e até mesmo que ela esteja realmente acontecendo. Esse tipo de discurso tornou-se popular em círculos conservadores. Você tem alguma pista sobre como confrontar essas ideias negacionistas?
Infelizmente temos visto muita informação sem fundamento científico neste tema. O trabalho de limpeza parece que não acaba nunca; ouvimos muita bobagem sobre o assunto. Em se tratando de mudanças climáticas, devemos ouvir a opinião da comunidade cientifica especializada. Novamente, a equação tem muitas variáveis, a maioria desconhecida do público em geral. Às vezes ouvimos alguém dizer que “não está sentindo nenhuma diferença na temperatura, como pode haver mudança climática?”. Outros dizem que “o ser humano se acha muito importante pensando que pode mudar a dinâmica do planeta”, ou mesmo afirmam que “esse é mais um ciclo da Terra”. Essas opiniões infundadas fazem muito mal quando contaminam as próximas gerações.
Mas entendo que, muitas vezes, a opinião “negacionista” não se deve a uma má compreensão da ciência, mas à necessidade de justificar uma agenda pessoal. Nestes casos, não será mais informação científica que fará a diferença e provocará convencimento. É preciso, de alguma forma, trabalhar no cerne no problema: o convencimento de que a ciência nos informa adequadamente do funcionamento do mundo natural (ou, pelo menos, é o melhor caminho). Creio que devamos investir na formação dos nossos alunos de graduação, jovens e adolescentes para que entendam o poder e os limites das descobertas científicas. Trata-se de uma questão epistemológica. Erramos ao querer tratar dela com mais informação científica, por mais qualificada que seja, sem fazer uso de uma boa instrução filosófica. Talvez os círculos mais conservadores tenham mais dificuldade de reconhecer que o conhecimento científico tem a capacidade de nos revelar verdades maravilhosas do mundo natural. De certo modo, devem se render à ciência quando ela tiver genuinamente autoridade para falar.
“Se os humanos têm a responsabilidade de zelar pelo ambiente em que vivem pelo menos por respeito às próximas gerações da sua espécie, o cristão tem responsabilidade dobrada diante dos homens e do Criador.”
Gustavo Assi
E quanto à fé? Além de cientista, você também é cristão. O que os cristãos podem fazer diante das grandes questões ambientais do momento?
Sim, sou um cristão evangélico reformado. Permita-me dizer que, como um cristão que atua no campo científico, entendo que este empreendimento humano de se conhecer o funcionamento do mundo natural (ao qual chamamos “ciência”) seja uma dádiva de Deus para a humanidade. O cristão reconhece que, quando a ciência nos revela as entranhas do funcionamento do mundo, está nos revelando verdades do próprio Criador.
Agora, sobre mudanças climáticas… Entendo existirem razões de sobra para qualquer pessoa, cristã ou não, reconhecer a necessidade de ações contra o aquecimento global. Essas razoes vêm do campo científico e nos informam adequadamente sobre quando e o que devemos fazer. Mas, além dessas razões científicas, entendo que o cristão tem uma razão de ordem moral para zelar pelo cosmos. O cristão entende que tudo o que existe é criação de Deus. Como se não bastasse o compromisso com a humanidade, o cristão tem um compromisso com o próprio Criador. Quando a ciência nos revela que estamos estragando o mundo que Deus nos deu para “cultivar e guardar”, o cristão deve ouvir e agir.
Em poucas palavras: se os humanos têm a responsabilidade de zelar pelo ambiente em que vivem pelo menos por respeito às próximas gerações da sua espécie, o cristão tem responsabilidade dobrada diante dos homens e do Criador. Entendo que os cristãos devam participar ativamente dessa agenda de mudanças climáticas porque devem contas ao Criador.
”Todos fomos impactados pela pandemia da Covid-19; tivemos nossas vidas radicalmente mudadas. Podemos usar a mesma analogia para pensar como as próximas gerações serão impactadas por uma ‘pandemia climática’. Só que esta segunda não durará dois anos nem terá vacina.”
Gustavo Assi
Uma pergunta sobre o futuro: equacionando desejos e realismo, o que você espera da COP-26?
Vamos equacionar mais uma vez… Por um lado, lamento que o Brasil pareça não estar assumindo seu papel nestas discussões e ações. Com tanto potencial e protagonismo histórico, esperávamos ações mais visíveis e significativas do nosso país nas reuniões de cúpula. É verdade que haverá alguma representação brasileira nas reuniões das Partes. Sabemos de uma ou outra representação técnica dos ministérios. Por exemplo, na minha percepção, o governo paulista tem assumido uma postura mais ousada e significativa que o governo federal. Mas a ausência de governantes na principal reunião de cúpula sobre o principal problema da nossa geração é um sinal trágico.
Por outro lado, sinceramente espero que a COP-26 venha esclarecer algumas questões técnicas “sem deixar dúvidas”, auxiliando a articulação internacional de ações no combate ao aquecimento global. É impressionante como nosso conhecimento científico do assunto evoluiu desde a Rio-92, a primeira Conferência do Clima. Cada vez mais, pontos cruciais são esclarecidos, norteando políticas dos países realmente comprometidos.
Acho que o momento de pandemia colabora para nossa percepção dos resultados desta conferência. De certo modo, estamos todos mais sensíveis à vulnerabilidade da espécie humana e do nosso habitáculo. Se temos dificuldades para enxergar a perda de habitat de outras espécies que já sofreram e sofrem com o aquecimento global, acho que a pandemia escancarou a nossa fragilidade. Todos fomos impactados pela pandemia da Covid-19; tivemos nossas vidas radicalmente mudadas. Podemos usar a mesma analogia para pensar como as próximas gerações serão impactadas por uma “pandemia climática”. Só que esta segunda não durará dois anos nem terá vacina. Portanto, espero que a COP-26 venha jogar mais luz sobre o assunto e promover ações concretas. Neste espelho veremos a imagem do Brasil.
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