1. Cultura 

Para Clarice Lispector, um napolitano disse que aquele era o tipo de mulher para repovoar a Itália

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

O que seria uma “cantada”? Tecnicamente, é aquele conjunto de estratégias (corporais e discursivas) que visam seduzir uma pessoa para que mantenha boas trocas com o agente da “cantada”. Assim, dito de forma pouco poética, equivale ao cerco e ataque a uma cidade murada. O muro, antes, era feito de pedras sólidas de pudor e de recato. Essa era a alvenaria a ser fendida. Hoje, um certo desdém não é fruto da timidez honrada, todavia de outro conjunto de táticas de mercado para aumentar o interesse do candidato. 

Mudamos muito. A “cantada” não é mais, apenas, uma iniciativa esperada de um homem protagonista. As mulheres assumiram a metamorfose de papéis defensivos para se tornarem, também elas, elaboradoras de procedimentos. Vamos ao jogo e suas regras.

A gíria “cantada” substituiu a palavra mais séria: flerte ou corte. Os homens do século 19 cortejavam as damas. Também é clássica (e algo arcaica) a palavra galanteio. Gosto do brasileiríssimo chamego. Há uma expressão com muita poesia: “Embeiçamento”, o processo de ficar enamorado e, por consequência, de “beiço caído” pelo seu “xodó”. Paquera é mais recente, porém parece coisa da “juventude transviada”, de Roberto Carlos descendo a Rua Augusta (acarpetada na calçada) a 120 km por hora em um Karmann-Ghia vermelho. As cocotinhas piravam! 

A “cantada” sofreu um duro golpe com a objetividade dos aplicativos de busca de companhia erótica. Os programas são menos românticos do que os clássicos “correios elegantes”. Desaparece a subjetividade e a insinuação, explodem as fotos diretas e os “nudes”. Saímos do boulevard ao entardecer com violinos e entramos direto no açougue. Decaem os Rubaiyat de Omar Khayyam e desponta o Kama-Sutra prático do celular. Sexo é vital e prazer é algo desejável. Apenas queria indicar mais o empanado no qual o recheio está oculto por uma camada de massa dourada em detrimento do bife exposto na bandeja. Amo sutilezas, mesmo que saiba que fast-food mata a fome. 

Regra inicial da “cantada” para todos, todas e todes (aqui, o neologismo neutro é fundamental): sendo uma “cantada”, equivale a um canto, a uma melodia. Deve ser agradável ao ouvido. Isso não quer dizer formalidade. A música pode ser forte ou fraca, sempre deve ser bonita. Uma boa “cantada” pode ser muito sexual, jamais será vulgar em um primeiro contato. O tropel de cavalos logo no começo pode assustar e é pouco eficaz. 

Pedestre anda na Washington Street no Brooklyn, com a Manhattan Bridge ao fundo, em Nova York. Foto tirada em 23 de maio de 2020
Pedestre anda na Washington Street no Brooklyn, com a Manhattan Bridge ao fundo, em Nova York. Foto tirada em 23 de maio de 2020 Foto: Jeenah Moon/Reuters

A “cantada” deve ser sutil, bonita e agradável. O primeiro enfoque deveria ser indireto: olhar fugidio sempre funciona. Nada de encarar, fica parecendo psicopata. Atribui-se ao primeiro rei Bourbon a frase: “Atraem-se mais moscas com uma colher de mel do que com 20 barris de vinagre”. O mel fluindo do olhar (lembrando: sem encarar no começo) é uma boa estratégia. 

Sorriso sutil, nunca gargalhada inicial. Ela/ele não precisa ver suas amígdalas, apenas os dentes mais frontais. Bom humor é fundamental. O olhar surgiu e encontrou guarida? Perfeito: o cavaleiro do castelo ou a dama da torre sabe que você acampou na parte externa do muro. Sutileza extrema no começo. Nada de mandar beijinhos ou acenos. Basta estar ali, sem selfies. 

O passo seguinte pode ser mais direto. O olhar que encontrou acolhida pode ficar um pouco mais de tempo em linha direta. Um pouco. Aqui, separamos profissionais de amadores: o primeiro contato real. Aproxime-se. Leia os sinais. São variados e muito amplos. Variam no tempo e no espaço: cantar uma mulher de 50 anos é diferente de cantar uma de 21, em geral. Um homem em Nova York tem, grosso modo, um comportamento distinto de um homem em Votuporanga (SP). Entenda um pouco das gramáticas etárias, de lugar e de classe social. Saiba algo sobre o terreno onde a tática está sendo realizada. 

Ovídio escreveu no clássico A Arte de Amar que devemos perceber o ambiente. Vamos atualizá-lo. Você encontrou seu “crush” (outro neologismo) na Sala São Paulo durante uma Sinfonia de Mahler? Aquele homem ou mulher ali tem um campo de interesse distinto, provavelmente, do que se tivesse sido realizada a aproximação ao lado da esteira de academia dela ou dele. Há ocasiões em que a inteligência é afrodisíaca. Existem pessoas sapiossexuais, apaixonadas pela inteligência. Isso não é universal. O conhecimento e a rapidez mental também assustam. 

Você é um guerreiro e começou o cerco com uma lança, um arco e um escudo? Não precisa mostrar todas as armas ao mesmo tempo. Você é uma guerreira focada? Não exiba todas as suas habilidades. Isso é fundamental: “Sou advogado em um grande escritório, tenho dois carros importados e já viajei pelo mundo todo”… A frase é erro de amador. Revele-se aos poucos e de forma indireta. Você faz academia todos os dias e investe pesado em suplementos e dietas? Se isso não está aparecendo, é inútil ter de falar. Você tem dinheiro? Isso grita antes do primeiro olhar. Nunca precisa ser dito. 

Em um mundo de fotos tratadas com filtros e discursos treinados para agradar, a autenticidade pode ser uma vantagem. Usar de sinceridade deve ser semelhante ao emprego da noz-moscada na comida: uma dose certa e pequena faz diferença, o excesso estraga tudo. Em resumo, se você não for a sua melhor arma, fica difícil pensar em estratégia. Vai lá. Fala com ela, chegue até ele. Sorria e diga uma frase natural. O resto pertence ao randômico do mundo. Quer uma pista de uma mulher genial para encerrar? Clarice Lispector disse que a melhor que ela ouviu foi de um napolitano, após a Segunda Guerra. Ele disse que aquele era o tipo de mulher para repovoar a Itália. Funcionaria hoje? Tenha esperança ou seja mais criativo/a!

*Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros

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