Editorial
Por
Gazeta do Povo

Reprodução de foto utilizada por entidades antirracistas e feministas em ação contra empresas por “racismo”, “machismo” e “preconceito”.| Foto: Reprodução

O proverbial estrangeiro – ou alienígena – que desembarcasse no Brasil de 2021 e presenciasse um processo surreal que se desenrola no Rio Grande do Sul certamente pensaria que, no país, a lei penal foi abolida e substituída pelas sensibilidades identitárias. Foi assim que uma simples foto de um grupo de funcionários de uma empresa deu margem a uma ação civil pública que segue seu caminho no Judiciário trabalhista gaúcho sem que haja o menor indício de que alguma lei tenha sido desrespeitada.

A Ável Investimentos, empresa credenciada da XP Investimentos em Porto Alegre, publicara em seus perfis nas mídias sociais uma fotografia de cerca de uma centena de seus funcionários, feita no terraço da sede da corretora. A patrulha identitária logo se inflamou contra as duas empresas, já que a maioria dos fotografados era de homens, brancos e jovens. Em uma demonstração da insanidade dos tempos atuais, em que desagradar tais patrulhas é considerado ofensa gravíssima, Ável e XP desculparam-se publicamente por algo que não pedia desculpa alguma, e esta nova manifestação das corretoras apenas serviu para que algumas ONGs concluíssem que “existe uma conduta discriminatória nas empresas que exclui negros, mulheres, pessoas com mais de 40 anos e portadores de deficiência” e pedissem inacreditáveis R$ 10 milhões por “danos morais e coletivos”.

Ninguém é capaz de afirmar que artigo do Código Penal, da Consolidação das Leis do Trabalho ou da Lei 7.716/89 foi violado pela Ável ou pela XP com a publicação da fotografia

Afinal, que crime ou irregularidade teria sido cometido pelas duas empresas do mercado financeiro? Ninguém é capaz de afirmar que artigo do Código Penal, da Consolidação das Leis do Trabalho ou da Lei 7.716/89 foi violado pela Ável ou pela XP com a publicação da fotografia. Não há notícia de candidato negro que tenha sido vetado nessas empresas por causa da cor de sua pele, ou que algum funcionário negro tenha recebido tratamento diferenciado, como salários ou comissões menores, ou visto sua carreira ser prejudicada devido à sua etnia. Na ausência de crime concreto, sobram apenas acusações genéricas de “racismo estrutural” – e também de machismo, já que uma entidade feminista também está entre os autores da ação, questionando o baixo número de mulheres na foto; o máximo que o Ministério Público do Trabalho conseguiu fazer em termos de citação de diplomas legais foi a invocação da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Estatuto da Igualdade Racial, que “proíbem a discriminação étnico-racial, direta ou indireta, no ambiente de trabalho e estimulam ações afirmativas para a correção de distorções” – embora os procuradores sejam incapazes de comprovar a existência de qualquer discriminação real no caso em tela.

A participação do MPT-RS, aliás, evidencia outro aspecto bizarro de todo este episódio: a mobilização do aparato estatal em torno de um evidente “não crime” ou “não irregularidade”. Reconheça-se o jus sperneandi das ONGs identitárias, seja por oportunismo, seja por uma convicção autêntica (embora totalmente descolada da realidade) de que Ável e XP agem guiadas por racismo, mas, diante desse tipo de demanda, caberia às instituições restaurar o bom senso. Não foi o que ocorreu: em agosto, a juíza Julieta Pinheiro Neta, da 25.ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, aceitou o processo, transformando as duas empresas em rés; e, no fim de outubro, o MPT-RS deu parecer favorável à ação, mostrando que a ideologia está triunfando sobre a aplicação da lei – ou, mais precisamente, que a ideologia está se tornando a lei.


É possível concordar que a discriminação racial é um flagelo real no país, que há uma subrepresentação de certos grupos em determinados setores do mundo do trabalho, e que a sociedade se beneficia incorporando as perspectivas desses grupos, sem comprar a narrativa do “racismo estrutural”, uma resposta simplista que ignora vários outros fatores como o papel da pobreza e as dificuldades no acesso a uma educação de qualidade. As empresas podem muito bem agir proativamente para ter um quadro de funcionários mais diverso – e muitas o fazem, de formas as mais variadas. Mas aquelas que decidem escolher seus funcionários única e exclusivamente com base no mérito sem olhar para nenhum outro fator também estão agindo dentro da lei. Não há legislação instituindo cotas raciais ou por sexo na iniciativa privada – e nem deveria haver, pois não cabe ao Estado tal intromissão em como as empresas conduzem seus negócios. Isso é simples e cristalino, mas é uma obviedade que passa a correr risco quando duas empresas têm de perder tempo e dinheiro se defendendo na Justiça por causa de uma fotografia que não evidencia ilícito algum. Qualquer desfecho que não seja a absolvição representará a falência da racionalidade no Judiciário trabalhista e a substituição do legislador pela patrulha dos justiceiros identitários, que, na era do cancelamento, passarão a fazer e a impor as regras.


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By valeon

5 thoughts on “A foto, o “não crime” e os justiceiros identitários”
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