O diabo das pequenas coisas
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
A palavra é estranha: misocinesia. A primeira parte indica raiva, ódio, inimizade. As sílabas finais envolvem a ideia de movimento, como temos na palavra cinemática. Em resumo: os pequenos gestos irritantes dos outros que disparam nossos gatilhos de ódio.
Santa Teresinha do Menino Jesus, a popular doutora da Igreja, afirmava que sofria de misocinesia. Tinha antipatia por uma religiosa no claustro e o simples fato de a confreira agitar seu rosário a irritava. A pessoa da qual você não gosta fica balançando a perna ou tamborilando os dedos no tampo da mesa? Se você explodir com a repetição de um movimento, está diagnosticado: seu mal é a misocinesia.
Sabemos que o mal atinge matrimônios. O que antes era indiferente ou até charmoso, no declínio do afeto ganha dimensões enormes. Nos relatos de divórcios aparece, com maior frequência do que grandes e terríveis violências, a irritação dos gestos e dos movimentos.
Voltemos à cidade de Santa Teresinha, Lisieux. No mesmo texto que ela identifica o horror do simples manejo das contas do rosário, a mística católica indica a solução. Passou a combater a antipatia. Criou reação oposta: todas as vezes que cruzava com a freira que a irritava, Teresinha sorria e manifestava alguma fala simpática e de acolhimento. A religiosa chegou a perguntar a ela sobre o sorriso, desconfiada. Nossa ex-irritada combateu sua disposição de antipatia e a transformou em empatia treinada e eficaz. Uma autossugestão funcional. Experimente. Eu já fiz. Funciona!
Um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade da Colúmbia Britânica (UBC) identifica que uma em cada três pessoas pode sair do sério com gestos repetitivos alheios. Um terço em um grupo grande de 4,1 mil seres humanos. Existe, claro, a variante cultural para a tolerância ou não. Mas reconheçamos: muita gente pode estar com impulso homicida por você tremer a perna com insistência.
Existe uma segunda palavra exótica na crônica de hoje: misofonia. Sons como o estalar de dedos e outros podem despertar em algumas pessoas um ataque de fúria. Como você vê, toda mania, neurose ou psicose acaba tendo um estudo e você deixa de ser apenas chato, passa a ser um chato com laudo. Claro, não é culpa das pessoas com misocinesia/misofonia reagirem desta forma. Usei a palavra chato para descrever a opinião do mundo. Para quem sofre de algum mal, os chatos são os que fazem movimentos ou sons repetitivos.
Como surge? Segundo o estudo da UBC, é que nossos neurônios-espelhos seriam ativados com a repetição. São os que impulsionam a seguir o que estamos presenciando. Sumeet M. Jaswal e Todd Handy, pesquisadores do tema, reconhecem que não sabemos exatamente por que a irritação cresce tanto em algumas pessoas. Consolo final para os pesquisadores citados: ao menos, você deve saber que não está sozinho. É uma esperança.
* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros