Achar-se superior aos outros é atitude que agitava o mundo e o Olimpo ainda antes da internet
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
Ela era rancorosa. Adorava semear intrigas. Amarga ao extremo, fazia detrações contínuas. Todas passaram a evitar Éris, a encarnação da discórdia. Deixou de ser convidada e ficou ainda mais amarga. Pior, houve uma disputada festa de casamento e ela desejava muito ter recebido a cartinha com seu nome. O envelope nunca chegou. Vingou-se com um plano maligno que provocaria uma guerra longa e mudaria toda a literatura ocidental.
“Não me queriam com os noivos? Sem problema. Vou estragar o banquete deles!” Éris mandou forjar uma belíssima fruta de ouro. Era uma obra de arte, um troféu. A deusa das dissensões sabia muito sobre a natureza de todos e apostou na vaidade como mecanismo de desforra da sua dor social. Para aumentar, ela cunhou sobre a peça: “Para a mais bela”. Viraria um prêmio disputado pela soberba das deusas. Daria confusão saber quem obteria a peça e era, exatamente, o que Éris desejava.
O plano foi executado com perfeição. Ao perceberem a fruta dourada sobre a mesa, instalou-se ruidosa discussão. Afrodite/Vênus (registro os nomes grego e romano) pegou-a com natural homenagem: ela era a deusa do amor e da beleza. Palas Atena/Minerva era igualmente cheia de ideias elevadas sobre si. A esposa do chefe, Hera/Juno, achou que o posto lhe dava a vitória no certame indireto que o plano malévolo de Éris engendrava. Zeus/Júpiter tinha um grave problema pela frente: indispor-se com qual das três mulheres? Tema delicado.
O caminho é conhecido por quem lê mitologia. O poder olímpico mais alto encarregou um pastor-príncipe, Páris, de escolher o destino do fruto da discórdia. O juiz escolheu Vênus como a vencedora, por ela ter lhe oferecido o amor de Helena, a mais bela das mortais. As outras deusas ficaram muito irritadas e todo o conflito está na origem da Guerra de Troia. Achar-se superior aos outros e querer o reconhecimento de tal desnível agitava o mundo ainda antes da internet.
Meu objetivo não é o choque registrado na Ilíada de Homero. Quero falar de Éris. Ela era filha da rainha do Olimpo. Sua mãe a rejeitara. Motivo? Não era muito bonita. Os romanos a batizaram, mais latinamente, de Discórdia. Rejeição da mãe, falta de beleza? Fica compreensível que ela tivesse o gênio difícil. Em outra fonte, Hesíodo, o escritor associa a deusa à noite (Nix) e a torna mãe de entidades tristes como Hisminas (deusa das discussões), Disnomia (deusa do desrespeito) e o triste Ponos, entidade do desânimo e da fadiga.
Deusa amarga, rejeitada e geradora de sérios atritos entre homens e deuses. Sempre admirei quem atribuísse seus maus bofes, seu azedume a uma entidade externa. Você tende a brigar muito? Não, responderia um grego piedoso, foi a deusa Éris que falou por mim. Bebe demais? Não. São espíritos alcoólicos que me induzem para que eu me encharque no vício. Deusas, deuses, espíritos, almas perdidas, demônios, entidades malévolas seriam os verdadeiros causadores do mal. As vozes me ordenaram que atacasse você. Obsessores fizeram com que eu postasse este ataque.
A questão central é óbvia: a omissão do sujeito e o ato de delegar suas escolhas a terceiros, visíveis ou invisíveis. Não compartilho dessa crença consoladora. Meus ressentimentos brotam de mim. Sou minha Éris quando, por falta de autoconhecimento, sou controlado pela dor ou pelo veneno da inveja. Eu crio o veneno, elaboro e destilo o fel, bebo, cuspo e vomito sobre o mundo. O ódio é meu. O desânimo me pertence. Provocar discórdia pode ser um prazer Karnal. Meus defeitos possuem meu nome e sobrenome. Creio que alguma virtude que eu possa ter, igualmente, apresente minha rubrica autoral. Mesmo que houvesse espíritos malignos ou benignos, entidades inspiradoras ou destruidoras da paz, eu teria de dar ouvido a elas. Assim como a lei brasileira não vai me livrar da cadeia se eu ceder à “lábia” de um criminoso e participar de um ato vil, ouvindo santos ou bandidos eu serei Leandro sempre. Sempre acreditei nisto: a absoluta responsabilidade dos meus atos.
Não interpreto essa ideia (em parte elaborada com a leitura de Sartre) como vaidade de me achar importante. Não! Considero uma espécie de prisão que encerra minha consciência e que me leva a aceitar ou rejeitar influências.
Como Hamlet, posso dizer a algum Laertes ofendido que, se a loucura do príncipe o ofendeu, eu também sou inimigo dela. É um excelente álibi. Pelo menos posso invocar a multiplicidade de ações que eu posso engendrar. Sou multifacetado e vivo no tempo soberano, logo, o Leandro de ontem agrediu? Lamento, era eu mesmo, integralmente, mas hoje eu percebo que fui idiota. Não foi Éris, não foi o Hamlet-louco, porém, Leandro. O Leandro mais calmo, hoje, insiste no pedido de perdão. Um dia, os deuses, contemplando as chamas de Troia e as muitas tragédias provocadas pela fruta dourada, teriam pensado: tudo isso foi culpa da deusa terrível. Os deuses poderiam fazer psicanálise? Tenho esperança.
* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros