Editorial
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Gazeta do Povo
Comissão da PEC da prisão em segunda instância durante reunião de 8 de dezembro: troca em massa de membros levou a suspensão da votação de parecer.| Foto: Agência Câmara
Quando deu o voto decisivo para acabar com a prisão após condenação em segunda instância no Brasil, no fim de 2019, o ministro do STF Dias Toffoli deixou a responsabilidade para o Congresso Nacional: se os parlamentares quisessem, poderiam alterar a Constituição para deixar bem claro a partir de que ponto poderia ocorrer o início do cumprimento da pena. Em reação ao voto de Toffoli, surgiram vários projetos de lei e PECs para permitir a prisão em segunda instância. Passou o ano de 2020 sem que o assunto caminhasse, o que em parte se explica pela novidade da pandemia; e 2021 termina da forma como começou, apesar de um fiapo de esperança que o país chegou a ter agora neste fim de ano.
Aprovar a prisão em segunda instância, infelizmente, não era prioridade nem de Executivo, nem de Legislativo: no começo do ano, o governo federal enviou ao Congresso uma relação de 35 assuntos que gostaria de ver aprovados em 2021 e, apesar da extensão da lista, a prisão em segunda instância não estava entre eles. Da mesma forma, nem Arthur Lira (PP-AL) nem Rodrigo Pacheco (PSD-MG) usaram o tema como forma de angariar votos nas disputas que fizeram deles os presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente, ocorridas em fevereiro de 2021. Apenas a insistência dos parlamentares realmente comprometidos com o combate à corrupção conseguiria fazer andar algum dos projetos de lei ou PECs propostos para instaurar a prisão em segunda instância, mas mesmo eles chegaram a julgar, em algumas ocasiões, que o momento político não era adequado porque outros temas estavam monopolizando a atenção do Congresso e da opinião pública.
A leniência com o crime destrói o tecido social de um país e é mazela que merece tanta atenção quanto problemas socioeconômicos como o desemprego; é com preocupação que o Brasil vê mais um ano perdido no combate à corrupção
Quando finalmente alguns temas como a CPI da Covid e a PEC do Voto Impresso saíram da frente, a comissão especial da PEC 199/19 – o texto que acabou se tornando o preferido dos congressistas para conseguir trazer de volta a prisão em segunda instância – viu uma janela de oportunidade para fazer caminhar o texto, aprová-lo e finalmente submetê-lo ao plenário da Câmara. Mas uma jogada regimental de última hora travou tudo: em 8 de dezembro, quando a comissão votaria o relatório de Fábio Trad (PSD-MS), PSC, MDB, DEM, PT, PL, Republicanos e PP trocaram membros do colegiado. “Parlamentares que eram favoráveis à PEC foram, coincidentemente, substituídos por parlamentares que são contrários à PEC”, resumiu o deputado Gilson Marques (Novo-SC). Como havia sério risco de derrota do texto, Trad retirou seu parecer, alegando que o relatório não tinha sido discutido com aqueles que haveriam de votá-lo.
O ano termina, portanto, sem nenhuma definição quanto ao futuro da PEC 199 e com mais uma demonstração de que há, na Câmara dos Deputados, um grupo disposto a usar sua força para que tudo permaneça como está, atrapalhando qualquer iniciativa no Legislativo que ajude no combate à corrupção, uma das principais áreas a se beneficiar com o retorno da prisão em segunda instância. Continua em curso no Congresso, portanto, uma das estratégias para a destruição da Operação Lava Jato e de seu legado: rejeitar os projetos de lei que fortaleçam a investigação e a punição dos crimes de colarinho branco, enquanto se aprovam aqueles projetos que dificultam a vida de promotores, procuradores e juízes.
A “prisão em quarta instância” é uma jabuticaba brasileira que destoa completamente da prática de vários países desenvolvidos, que levam seus criminosos à prisão às vezes até mesmo depois da condenação em primeira instância, sem que com isso se considere haver qualquer violação do direito de defesa ou do devido processo legal. No caso brasileiro, é importante sempre recordar que a análise da culpabilidade do réu termina na segunda instância – os tribunais superiores verificam apenas questões processuais, não se o réu é culpado ou inocente; tanto é assim que eles não podem inocentar ninguém, cabendo-lhes no máximo determinar o reinício do processo quando encontram alguma irregularidade. Além disso, a prisão em segunda instância vigorou no Brasil pela maior parte do período pós-Constituição de 1988, com aval do próprio Supremo, que havia decidido por sua constitucionalidade já em 1991; a situação atual é uma exceção que valeu entre 2009 e 2016, e novamente a partir do fim de 2019.
O modelo processual atual brasileiro favorece a impunidade: criminosos que conseguem dominar o labirinto de ações e recursos adiam ao máximo o trânsito em julgado de suas sentenças; sabedores de que o dia em que terão de ir para trás das grades está distante, ou jamais virá, eles se veem estimulados a seguir delinquindo, em vez de cooperar com as autoridades. A leniência com o crime destrói o tecido social de um país e é mazela que merece tanta atenção quanto problemas socioeconômicos como o desemprego; é com preocupação que o Brasil vê mais um ano perdido no combate à corrupção.
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