Corrida armamentista
Por
Luis Kawaguti – Gazeta do Povo
Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte, participou do teste de um míssil hipersônico em 11 de janeiro. O Brasil tem testado uma tecnologia semelhante| Foto: EFE/EPA/KCNA
No início deste mês, a Coreia do Norte fez dois testes de mísseis hipersônicos que deixaram a comunidade internacional em alerta e geraram novas sanções dos Estados Unidos ao país. No Brasil, um teste em menor escala, mas envolvendo tecnologia semelhante, passou despercebido para a maioria da população.
As armas hipersônicas são um dos principais focos da atual corrida armamentista mundial, que envolve potências como EUA, China e Rússia. Elas são mísseis que voam em velocidades de pelo menos 6 mil km/h, o que equivale a cinco vezes a velocidade do som.
Esse tipo de armamento é difícil de se detectar e quase impossível de se abater com defesas aéreas. Além disso, pode carregar tanto explosivos comuns, quanto ogivas nucleares.
Há dois tipos deles: mísseis e “planadores”. Estes têm chamado mais atenção dos analistas militares. Mas, ao pensar em planadores, esqueça os aviões de lazer de asas compridas que voam lentamente. Estamos falando de voo hipersônico, em velocidades que deixariam para trás o avião comercial Concorde (já fora de operação) ou os modernos aviões de caça.
Ou seja, o planador hipersônico é um pequeno avião não tripulado que é lançado na ponta de um foguete. Quando chega à estratosfera, a aeronave se separa do foguete e ativa seu motor supersônico, chamado scramjet e segue em velocidades ainda mais altas.
O planador então começa a descer e adota uma trajetória mais próxima da superfície terrestre, onde pode manobrar até atingir seu alvo.
Mas porque ele é melhor que os outros mísseis?
Os mísseis balísticos transcontinentais (chamados no jargão militar de ICBMs) fazem uma trajetória de parábola. Eles sobem até o espaço e depois reentram na atmosfera com velocidades superiores a Mach 25, ou 30 mil km/h, até atingirem seu alvo.
São mais rápidos que os mísseis hipersônicos. Porém, uma vez lançados, sua trajetória pode ser mais facilmente detectada e prevista. Assim, defesas antiaéreas podem ser acionadas.
Já os mísseis hipersônicos podem manobrar para evitar radares por mais tempo, o que torna as defesas com a tecnologia atual pouco efetivas.
Corrida por armas hipersônicas se espalha pelo planeta
Foi esse tipo de planador hipersônico que a Coreia do Norte testou duas vezes neste mês. Um dos testes teve até a presença do líder Kim Jong-un, que não comparecia a esse tipo de evento militar há mais de um ano.
A agência de notícias norte-coreana KCNA afirmou que o planador hipersônico lançado no dia 11 de janeiro voou por 600 quilômetros. Depois, mudou de direção e percorreu mais 240 quilômetros, fazendo manobras ao estilo “saca-rolhas” até atingir um alvo pré-determinado no mar.
Foi o terceiro teste do tipo e aparentemente o mais bem sucedido feito pela Coreia do Norte. O primeiro ocorreu em setembro de 2021.
Mas, quem lidera a corrida por armas hipersônicas é a Rússia. Em 2018, Moscou lançou o míssil Kinzhal e no ano seguinte incorporou ao seu arsenal o planador Avangard, que é lançado conectado a um míssil ICBM convencional.
A China testou seu planador hipersônico em agosto do ano passado, um mês antes dos norte-coreanos. Ele chegou a completar uma órbita completa da Terra, depois reentrou na atmosfera e quase atingiu um alvo programado na China.
Os americanos se assustaram com o teste, que passou a ser chamado de “momento Sputnik”, em referência ao evento de 1957, quando os russos se tornaram os primeiros a lançar um satélite em órbita do planeta.
Os Estados Unidos já fizeram testes de voo de seu planador hipersônico em meados de 2011, mas estariam atrás da China e da Rússia nessa corrida tecnológica, segundo analistas. Washington afirmou que apresentaria seu armamento funcional neste ano de 2022.
A tecnologia hipersônica pode mudar a dinâmica de vários aspectos da guerra. Um deles é, por exemplo, a guerra naval. Uma vez localizado pelo inimigo, um porta-aviões dificilmente conseguiria se defender de um ataque de um míssil hipersônico, atômico ou não. Raciocínio semelhante vale para alvos estratégicos em terra, como bases militares, instalações nucleares e estruturas de comando e controle.
Entretanto, no caso de guerra nuclear de grande escala, o assunto é mais controverso. Um míssil hipersônico poderia se evadir de barreiras antimísseis e detonar em praticamente qualquer lugar do planeta, por mais defendido que seja.
Mas, teoricamente, potências como Estados Unidos e Rússia possuem grande quantidade de ogivas nucleares instaladas em mísseis ICBM. Elas são mais do que suficientes para sobrecarregar qualquer sistema de defesa aérea. Isso tornaria a tecnologia hipersônica menos relevante.
Na prática, há uma nova corrida armamentista. Rússia, China, EUA e Coreia do Norte claramente estão mais avançados. Mas a tecnologia hipersônica também vem sendo desenvolvida por Índia, Japão, Austrália, França, Alemanha e Brasil. Eles estão em diferentes estágios de evolução da pesquisa.
Como é o projeto hipersônico brasileiro?
O planador hipersônico brasileiro terá cerca de quatro metros de comprimento e se chama 14-X, em homenagem a Santos Dumont, o pai da aviação. O Projeto PropHyper vem sendo desenvolvido pela Força Aérea e pela empresa Orbital Engenharia.
É considerado um projeto estratégico, mas está em uma fase de desenvolvimento bem anterior aos das potências como China e Rússia, além da Coreia do Norte.
Seu primeiro ensaio de voo ocorreu há um mês, em 14 de dezembro, no Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. O objetivo do teste era testar a combustão supersônica, ou seja, “dar a partida” em um motor tipo scramjet.
Esse motor foi acoplado como carga em um foguete chamado de Veículo de Aceleração Hipersônico, desenvolvido no Brasil. Isso é necessário pois o motor só pode ser ligado quando a aeronave já está viajando em uma velocidade cerca de cinco vezes mais rápida que o som.
Diferente de um motor a jato comum, o scramjet não tem um sistema de ignição ou compressores e turbinas. A queima da mistura de ar e combustível ocorre no combustor com o atrito causado pela passagem de ar em alta velocidade.
Segundo a FAB, o teste ocorreu assim: durante a subida do foguete em velocidade de 7.500 km/h até a estratosfera, foi injetado hidrogênio no combustor supersônico do motor do 14-X e ele foi ligado.
A aeronave atingiu uma altura de 30 quilômetros e caiu no mar a 200 quilômetros do local de lançamento. O sucesso do teste foi comprovado por filmagens e dados de telemetria, segundo a Força Aérea.
O planador hipersônico brasileiro ainda vai passar por ao menos mais três fases de testes. No próximo passo, o 14-X vai ser acionado na atmosfera para testar a propulsão hipersônica aspirada.
Essa é uma das partes mais desafiadoras do desenvolvimento da tecnologia. Mísseis balísticos e espaçonaves passam a maior parte do voo fora da atmosfera, onde não há atrito com o ar. Isso significa menos pressão e aquecimento.
Mas, em um voo que ocorre em sua maior parte na atmosfera, como no caso dos mísseis e aviões hipersônicos, fica tudo muito mais complicado.
Para se ter ideia, a velocidade é tão alta que modifica as moléculas de ar em volta da aeronave. Elas são quebradas e ganham uma carga, em um processo chamado ionização. A temperatura pode passar de 2 mil graus em poucos minutos. Por isso é preciso desenvolver materiais resistentes e a aeronave deve ter uma aerodinâmica muito específica.
Em uma fase seguinte, o 14-X vai fazer um voo hipersônico planado, para que seja testado o sistema de manobras em voo. Já na fase final de testes, o planador hipersônico será colocado à prova em um voo completo, desde o lançamento até as manobras em voo planado.
O projeto começou em 2006, mas a FAB não respondeu quando essa fase final deve acontecer nem o custo total do projeto. Trata-se de sigilo militar. A instituição tampouco detalhou em quais cenários o 14-X será usado quando estiver pronto.
Informou apenas que o objetivo é dominar a tecnologia de propulsão hipersônica e possibilitar que o Brasil entre em novos projetos espaciais.
Em teoria, esse conhecimento pode fundamentar, no futuro, a construção de drones e aviões civis ou militares muito mais rápidos que os atuais. Mas, no cenário internacional de hoje, a aplicação principal é mesmo a construção de mísseis hipersônicos.
Financiamento estatal
Possuir mísseis hipersônicos ou mísseis de cruzeiro de longo alcance são formas de tentar dissuadir outras nações de usarem a força para impor suas vontades ao Brasil. Essa é a lógica de toda corrida armamentista e também a estratégia de defesa do país.
Analistas militares dizem acreditar que os projetos hipersônicos que estão mais avançados entre as potências mundiais receberam financiamento estatal em larga escala. Nesse modelo, as empresas privadas ou estatais da base industrial de defesa têm como seu principal cliente o governo do país. Ou seja, sua produção depende do orçamento nacional de defesa.
No Brasil, há investimento estatal, porém não o suficiente para garantir a sobrevivência das empresas estratégicas de defesa. Assim, elas acabam recorrendo a financiamentos de instituições bancárias privadas.
“Por isso, essas empresas acabam dependendo muito de exportação, que é um mercado muito incerto”, afirmou o pesquisador Eduardo Brick, do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial da Universidade Federal Fluminense (UFFDEFESA). Isso retarda os avanços tecnológicos em comparação com outros países que usam modelo diferente.
Uma fonte do Planalto envolvida com a questão de Defesa do Brasil explicou que o governo gostaria de investir mais nas empresas estratégicas de defesa, mas restrições orçamentárias não permitem.
Na Coreia do Norte, os avanços tecnológicos na área de defesa acontecem em paralelo a um cenário de escassez de alimentos, vestuário e habitação para a população. Kim Jong-un disse que em 2022 esses problemas sociais serão prioridade.
O Brasil, nos últimos anos, decidiu dar prioridade à ajuda econômica para a população durante a pandemia, segundo a fonte governista. Independente disso, as exportações de produtos de defesa bateram recorde nacional no ano passado, chegando ao patamar de US$ 1,65 bilhão (R$ 9,4 bilhões).
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