1. Cultura 

A característica básica da falta de inteligência é ser cego sobre suas próprias capacidades

Leandro Karnal, Especial para o Estado

O advogado Tiago Pavinatto lançou, pela Edições 70, o livro Estética da Estupidez: A Arte da Guerra Contra o Senso Comum. O livro é muito interessante e serve para refletir o momento curioso em que nos encontramos. O autor mistura bom humor, ironia ácida, referências eruditas e lança catapultas sobre a Jerusalém de Brasília e seus Messias. 

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Imagem do quadrinho “O Alienista”, por Fábio Moon e Gabriel Sá Foto: Reprodução

Comecei refletindo na epígrafe do livro: “Debater com um idiota é perder de maneiras distintas e combinadas. Perde-se tempo. Perde-se a paciência. E se perde o debate propriamente, porque ele só entenderá argumentos idiotas – e, nesse quesito, o imbatível é ele, não você”. (Reinaldo Azevedo). 

A primeira reação ao ler o pensamento é sorrir. Ela já contém uma vaidade: se você gostou, há uma chance de não se considerar um idiota. Quem achou bom, naturalmente, imagina-se portador de cidadania plena na ilha da sabedoria e da razão e olha para os limitados com certa xenofobia. O pensamento de Azevedo termina com frase que, diria meu pai, usa de “contundência”. O termo comum para a conclusão, hoje, é “lacradora”. Sim, o adversário é imbatível porque é… idiota. Há certo consolo retórico e psicológico na conclusão. 

Despontam questionamentos válidos: a) como saberei, de fato, que não sou um imbecil? A característica básica da falta de inteligência é ser cego sobre suas próprias capacidades; b) se não posso debater com idiotas e não tenho certeza sobre minha pontuação no campo da genialidade, com mais certeza terei dúvidas sobre quem é sábio ao meu redor e, por consequência, digno de debate; c) se eu perco o debate com idiota porque ele é melhor no manejo do argumento ilógico, com um sábio eu perderei porque ele é hábil no uso da razão; logo, perderei sempre?

Eu já dei este conselho em palestra, citando minha avó: “Não toque tambor para maluco dançar”. Li O Alienista de Machado algumas vezes e me dou o direito ao relativismo no campo da sanidade mental. Analisando algumas passagens da minha vida pretérita, eu teria bons motivos para ocupar ampla suíte na Casa Verde do dr. Bacamarte. Itaguaí poderia conter o universo todo. 

Sim, fui louco eventual. Continuarei sendo um idiota? Claro, querida leitora e estimado leitor, já ficou claro aqui que temos idiotas insanos e idiotas perfeitamente equilibrados daquele tipo que, em época menos cuidadosa com palavras, chamaríamos de “pessoa normal”. Como é patológico nos dias atuais identificar alguém como normal, digamos que a maioria das ações e pensamentos de alguns idiotas caracteriza um comportamento médio tido por aceitável pela sociedade. 

Duas questões afloram: sou um idiota? Devo discutir com idiotas? Sendo a democracia inconciliável com a censura, estaríamos condenados (como pensou Umberto Eco) à fala onipresente do “idiota da aldeia”? A figura descrita por Eco tem base literária: anda, maltrapilho, incomodando pessoas com frases e gestos, todavia todos o tomam por inofensivo. Aliás, o “idiota da aldeia” tem profunda função social: serve para classificar todo o resto da comunidade como inteligente. É fundamental existir, no grupo, o tipo limitado: a sombra da escassez cerebral dele ilumina a inteligência dos outros. 

Nos tempos que despertam desejo daquele meteoro devastador como redenção possível, existe a categoria que Pierre Bourdieu chamou de “meio-cientistas”, chave conceitual analisada por Pavinatto na página 175. Fazem eco a algum tema tratado por pesquisadores, misturam a outros, somam certo senso comum com linguagem elaborada e, le voilà, surge um post devastador contra vacinas… O meio-cientista reúne o pior de dois mundos e causa danos aos idiotas da aldeia e aos sábios. 

Que futuro terá nossa sociedade se conseguirmos classificar com quem se pode e com quem não se pode debater? Teremos uma Berlim reconstruída com um muro ao meio? Uma nova Guerra Fria?

Eu tenho alguns princípios para tentar conversa séria. O primeiro é concordância sobre ética e lei. Não discuto com racistas ou defensores da violência contra a mulher, por exemplo. É uma derivação do paradoxo de Karl Popper: não tolerar intolerantes: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”, segundo o austro-britânico. 

Há mais condições propícias: a pessoa ouve e fala. A condição de um diálogo é a alternância entre ouvir e falar. Mais uma: existe uma vontade de análise sem fígado, adjetivos, fulanização ou violência verbal. Por fim, os dois lados reconhecem que não são donos absolutos da verdade e o outro tem direito à existência, mesmo que com argumentos contrários. 

Na minha concepção, nunca saberemos se somos idiotas ou inteligentes. Porém, o debate com alguns princípios prévios aperfeiçoa meu raciocínio oferecendo o contraditório. Também aumenta minha visão e, eventualmente, muda minha ideia ou a do meu debatedor. Não existem as condições dadas? Melhor ficar de um lado de Berlim que lhe agrade lamentando o limite das pessoas do outro lado do muro. Enquanto isso, leia o livro de Pavinatto e seja feliz. No ano de 2022, os muros serão erguidos a alturas inimagináveis. Esperança média de bons debates…

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By valeon