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Como o filósofo almeja a criação de uma casta espiritual-intelectual que, mais do que ser uma elite, pretende influenciar os rumos da nação no longo prazo
Por
Martim Vasques da Cunha – Gazeta do Povo

O escritor Olavo de Carvalho é considerado o guru da nova direita brasileira – (Foto: Reprodução/Facebook)| Foto:
Não podemos olhar fixamente nem o sol nem a morte. 

La Rochefoucauld 

No “manual do usuário” de ‘O Imbecil Coletivo’ (1996) – a parte final da trilogia que compõe, com ‘A Nova Era e a Revolução Cultural’ (1994) e ‘O Jardim das Aflições’ (1995), o seu panorama crítico do ambiente brasileiro –, Olavo de Carvalho escreve um trecho em que expõe sinteticamente o método da “dialética simbólica” e também propõe, a partir da reavaliação do ambiente intelectual analisado nesses livros, restaurar a filosofia como percurso para uma purificação da alma.

É quando ele afirma que, ao analisar a famosa gravura de William Blake, inspirada no Livro de Jó (e frontispício às primeiras edições de ‘O Imbecil’), os monstros bíblicos Behemot e Leviatã representam forças abissais da natureza, “o primeiro imperando pesadamente sobre o mundo, o maciço poder de sua pança firmemente apoiado sobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundo das águas, derrotado e temível no seu rancor impotente”.

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Apoiado naquilo que afirma ser “a aplicação rigorosa dos princípios do simbolismo cristão”, Olavo escreve que Blake percebeu como poucos um grande “contraste [entre] o poder psíquico e [o] poder material: Behemot é o peso maciço da necessidade natural, Leviatã é a infraestrutura diabólica, invisível sob as águas – o mundo psíquico – que agita com a língua”.

Esses dois monstros habitam, de uma forma ou de outra, tanto o cenário da história humana como o interior da nossa alma, cada um sendo respectivamente o espírito da negação e da rebelião. Neste combate, Olavo explicita que “não é ao homem, nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo”. E acrescenta:

“A iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa Leviatã para fora das águas, prendendo sua língua com anzol. Quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e entre as forças rebeldes antinaturais, ou infranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário exterior da História. É assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bíblica, nos sugere com a força sintética de seu simbolismo uma interpretação metafísica quanto à origem das guerras, revoluções e catástrofes: elas refletem a demissão do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se da esfera da Providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino, onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, pois aí já não se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forças cegas da necessidade implacável e da rebelião impotente”. 

A “luta interior” defendida por Olavo é sustentada, na sua filosofia, por aquilo que ele chama de uma busca obsessiva pela “unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa”. Esta experiência seria traduzida, tanto em conceitos como em ações, no filosofema, “o sistema ideal de intuições e pensamentos que se oculta por trás dos textos, sistema que os textos refletem de maneira irregular e desigual, por vezes com partes faltantes, e que só pode ser contemplado por quem o reconstitua”, conforme é explicado no estudo “Poesia e Filosofia”.

Contudo, esta unidade não se dá de maneira plena e sim fragmentada, em um estado de rascunho, como Olavo acrescentaria posteriormente em outro texto da mesma época, “Da Contemplação Amorosa”. O que une esses esboços seria justamente o filosofema – e aqui ele expande um pouco mais o que este termo significa, ao escrever que se trata do

“conteúdo essencial de uma conexão de pensamentos, intuições e outros atos cognitivos que forma o mundo e o estilo próprios de um determinado filósofo. É isto o que nos permite distinguir entre ‘as obras de Aristóteles’ e ‘a filosofia de Aristóteles’. […] Há filósofos sem obra – a começar do pai de todos nós: Sócrates; há filósofos cujo pensamento nos chega por obras escritas por testemunhas ou por ajudantes (não conheceríamos o pensamento de Husserl sem a redação de Fink). Mas não há filósofo sem filosofema – e aquele que publique dezenas ou centenas de livros eruditíssimos, com opiniões de estilo filosófico sobre assuntos filosóficos, não se torna por isto um filósofo. A filosofia de um filósofo não está em seus textos, mas num certo modo de ver as coisas, que é transportável para fora deles e participável por quem quer que, saltando sobre os textos, faça esse seu modo de ver, integrando-o no seu próprio”. (grifos meus) 

A busca por unidade feita por Olavo de Carvalho em seus escritos é parte de um grande problema que atacou a modernidade, atingindo especialmente o século XX, e do qual o filósofo brasileiro sem dúvida quer resolver a seu modo: o da superação do impasse epistemológico e ontológico da Filosofia – e que se resume, grosso modo, a um questionamento a respeito do sentido primordial do Ser.

Neste ponto, é evidente que Olavo pretende não só recuperar o que é o verdadeiro sentido do Ser – em especial, em uma sociedade possessa pelo “novo tempo do mundo”, promulgado pela filosofia desesperada de um Paulo Eduardo Arantes, vista no artigo anterior desta série –, como também restaurá-lo dentro daquilo que ele acredita ser a própria tradição filosófica.

Por mais que queira negar tal fato, Olavo é, na cultura brasileira, uma consequência deste impasse que, segundo Benedito Nunes, ainda não foi superado. No ensaio “Os círculos de Heidegger”, Nunes parte do projeto da destruição da história da ontologia feito pelo autor de ‘Ser e Tempo’ – por quem, aliás, Olavo nutre nenhuma simpatia – e estabelece que a crítica feita pelo filósofo alemão tem como alvo “a concepção de Hegel, segundo a qual todas as doutrinas filosóficas fazem parte, com igual direito, de uma mesma história do pensamento, história que desenvolve contradições e que as ultrapassa, tornando-se mais concreta e mais verdadeira em cada um dos seus momentos evolutivos”.

Com sua “dialética simbólica”, Olavo tenta absorver e superar Hegel, aceitando as imperfeições na unidade do seu pensamento conforme elas surgem no curso concreto da História. Apesar de Nunes falar de Heidegger no trecho a seguir, não interessa a Olavo imitar o percurso destes dois teutônicos e ter a intenção de encontrar nessa “história” a “única verdade”, a “verdade de fato com que podemos contar, constituída por meio de um processo intemporal irrecorrível, cujas faces a filosofia recompõe. A pergunta ontológica, uma vez feita na antiguidade, por Parmênides ou por Aristóteles, recebeu de um e de outro as únicas respostas que poderia ter recebido, e logo foi superado no movimento dialético e evolutivo do espírito, ultimado de acordo com o caráter das épocas e as condições de cultura dos diversos povos”.

Ao contrário de Hegel – e de Heidegger –, Olavo não se preocupa em formatar um “sistema total” porque, graças à noção intuitiva da contemplação amorosa, reconhece que a realidade só pode ser captada em partes ou de maneira limitada. Contudo, nada disso retira a apreensão completa que o homem comum pode ter da existência do Ser, mesmo em seus detalhes cotidianos. É nesta tensão simultânea – que há entre seis polos antropológicos (“origem-fim”, “natureza-sociedade”, “imanência-transcendência”) – que todos nós vivemos e da qual Olavo pretende captar na sua filosofia.

A construção da teoria

É no limiar da expressão entre a unidade e a multiplicidade – acentuada pela tensão descrita acima – que Olavo começa, então, a construir o edifício da sua teoria da ação e da sociedade, a partir das aparentes oposições entre poesia e filosofia. No texto de mesmo nome, fica cristalino o esforço hercúleo que ele faz para superar, a qualquer custo (especialmente pessoal), o impasse filosófico descrito por Benedito Nunes. Como o próprio Olavo afirma, a diferença essencial entre o poeta e o filósofo é que o primeiro, para comunicar com eficácia as suas impressões ou sentimentos sobre o mundo, precisa “dialogar com a tribo” – isto é, com seus contemporâneos e quem vier depois deles –, enquanto o segundo “dialoga com o Ser” – uma afirmação que, aliás, Heidegger assinaria embaixo, pelo menos antes de se reencontrar com a obra de Friedrich Hölderlin no final dos anos 1930.

Se, em suas prelações dessa época sobre o poeta romântico – que era companheiro de universidade de Hegel, diga-se de passagem –, o autor de ‘Caminhos da Floresta’ busca uma integração plena entre as ações do poeta e do filósofo, sem ver nenhuma dicotomia nelas, Olavo de Carvalho vai pela trilha oposta. Para ele, é nítido que a primeira coisa que um filósofo faz “é voltar as costas à comunidade, para ir perguntar, à experiência, não o que ela pode dizer ao mesmo tempo a todos os homens reunidos em torno da fogueira, mas sim apenas aquilo que ela deve acabar por dizer, se tudo der certo, àqueles poucos que continuarem a contemplá-la detidamente até que ela se abra e mostre seu conteúdo inteligível”.

Neste ponto de vista, a prática da filosofia seria essencialmente uma tarefa esotérica – ou seja, voltada para dentro de um grupo de iniciados que possa entendê-la em seu esplendor. Aqui, Olavo não tem nada de diferente de um Platão ou de um Hegel. Mas deve-se entender essa atitude do filósofo em geral não como uma forma de querer esconder propositadamente o seu conhecimento. Muito pelo contrário: ele precisa fazer isso para que as definições sobre um determinado assunto importante fiquem cada vez mais claras, tanto para si mesmo como para aqueles que podem acompanhá-lo nas suas descobertas.

Afinal, se a pergunta filosófica por excelência é Quid? (“Quê?”) – Que é o homem? Que é a morte? Que é o bem? Que é a felicidade?, são os exemplos supremos deste tipo de procedimento –, ainda assim a reflexão não consegue chegar ao que seria a essência de algo. Trata-se apenas de uma aproximação. É por esse motivo que Olavo explica que “as essências, ou qüididades, revelam-se no ato intuitivo que contempla a presença de um objeto, cujo conteúdo noético o filósofo não faz senão reproduzir com a máxima fidelidade e exatidão possíveis. Sua atividade é tanto quanto a do poeta, um traslado da experiência, interior ou exterior. Todo juízo definitório, quando seu objeto é um ente e não uma simples possibilidade lógica inventada – e às vezes mesmo neste caso –, é sempre a pura formalização lógica de um conteúdo intuído, que a memória fixa e o discurso interior descreve”.

Por outro lado, a intuição não pode ficar guardada na vida interior do filósofo. Ele precisa comunicar a verdade que viu, a despeito dos outros que possam combatê-la porque isso não seria confortável para a vida em sociedade. É neste embate com a polis – simbolizado no confronto histórico de Sócrates, Platão e Aristóteles com os retóricos e os sofistas – que a filosofia torna-se enfim dialética e, “por meio dela, reflexão e diálogo: mas diálogo que visa a restaurar apenas, por cima da rede das ilusões do discurso corrente, a intuição primeira das essências auto-evidentes. E tanto quanto não pode revelar essências, a reflexão – exceto na acepção de rememoração descritiva – não pode levar ao conhecimento dos princípios e axiomas”.

Assim, apesar do caminho dialético habitual – muito diferente da dialética simbólica defendida por Olavo, como veremos – ser um “encaminhamento e aquecimento da inteligência para o despertar da intuição”, a intuição descoberta pelo filósofo deve atender, “de um lado, à realidade dos dados e, de outro, às convenções de vocabulário e às exigências técnicas da exposição lógica ou dialética, consagradas pelo uso na comunidade de ofício”.

Segundo o transcorrer deste método, a diferença entre o procedimento de reflexão do filósofo e o do poeta é que este último “tem de transformar o intuído, o mais imediatamente possível, em moeda corrente; tem lançar desde logo o conteúdo noético [o qual já é, certamente, forma poética] de uma experiência que pode ser fortemente individual, na água corrente do vocabulário comum, para fazer dela uma posse de todos os homens na linguagem do seu tempo e do seu meio”; já quem pratica a filosofia precisa entender que é impossível “deter-se indefinidamente na crítica e repetição da sua experiência, para obter mais clareza, para integrá-la mais profundamente na estrutura do seu ser pessoal, para distingui-la nas adjacências e circunvizinhas, para fazer dela, progressivamente, parte de experiências cada vez mais amplas, para adquirir sobre ela a certeza de que ela não revelou só um aspecto passageiro e acidental, mas a natureza mesma do seu ser”. (grifos meus)

A unidade disto só poderá ser conquistada pelo modo como o conhecimento da experiência desta sabedoria será transmitido. Na poesia, ele jamais será hermético, sob pena de ser “uma falha intolerável”; mas o conhecimento adquirido pelas vias da filosofia só pode ser, “em princípio, coisa para filósofos, e só raramente para o povo inteiro – exceto quando à vocação do filósofo se soma a do artista, ou do pedagogo, ou do orador e homem político, o que certamente é acidental e não exigível”, pois “a comunicação, a forma concreta da obra escrita, é em filosofia o momento acidental e menor de uma atividade que consiste, fundamentalmente, em conhecer e não em transmitir”.

Portanto, para Olavo de Carvalho, a poesia é a “sabedoria que bate à porta dos homens” e a filosofia “não busca ninguém” porque ela é a própria “busca da sabedoria”. Parece uma tautologia, mas não é, uma vez que, apesar de ser uma busca literal e direta, infelizmente “o filósofo não poderá comunicar senão uma parte pequena, e às vezes nada”.

Entre as duas atividades não há um desentendimento completo, nem uma identificação de todo. Novamente, encontramos a tensão antropológica já descrita anteriormente, que será sintetizada, em seu aspecto filosófico, na forma plena do “portador do saber”, o mesmo homem que o refletiu e o carrega para ser comunicado à toda sociedade. Daí a imperfeição da escrita ou até mesmo da transmissão oral, pois “o livro, o tratado, a aula, nunca é senão a condensação do saber nuns quantos princípios gerais e sua exemplificação numas quantas amostras; e o saber, o verdadeiro saber, se abriga naquele núcleo vivo de inteligência que permanece no fundo da alma do autor após encerrado o livro, e que saberá dar a esses princípios outras e ilimitadas encarnações e aplicações diversas, imprevisíveis, surpreendentes ou mesmo paradoxais, conforme a variedade inabarcável das situações da existência. Só em Sto. Tomás residiu a sabedoria de Sto. Tomás. Nós outros não podemos ser senão tomistas, o que é um Sto. Tomás fixado e diminuído, compactado por desidratação”.

Apesar desta lacuna entre o que foi apreendido e o que foi comunicado pelo filósofo, ainda assim é fundamental ver todos os seus registros – os escritos menores, as cartas, os rascunhos, as entrevistas, as transcrições de aula – como uma unidade, até mesmo para que eles fiquem perfeitamente orgânicos e coerentes ao filosofema que se encontra cifrado na sua obra. Ao mesmo tempo, deve-se olhar este conjunto inacabado – o qual deve ter a aprovação do filósofo como “expressão adequada de seu pensamento – ou que, mesmo sem essa aprovação explícita, possa ter o valor de um testemunho fidedigno” – como “parte integrante de sua Obra, na medida em que ajudam a perfazer o filosofema em que ela consiste essencialmente.

Mas o filosofema, por sua vez, não se perfaz somente num sistema ideal de teses abstratas, e sim também nas atitudes pessoais concretas com que o filósofo lhes deu interpretação vivente ante as situações da existência: a altivez de Sócrates ante a morte é a exemplificação concreta da moral socrática, que entenderíamos diversamente, de maneira mais figurada e menos estrita, caso seu autor houvesse mostrado fraqueza ante os carrascos”.

Olavo articula assim a distinção final entre quem pratica a poesia e quem vive a filosofia. Ele explica que, “de todas as atividades criadoras do espírito, a artística e literária é a que exige menos compromisso pessoal com o seu conteúdo: o que a arte exige do artista é a devoção à obra para criá-la, não a fidelidade a ela, depois de pronta”. A obra salva o poeta; já com o filósofo, o que lhe redime são as ações que mostram que ele aprendeu com a própria filosofia construída durante a vida, numa dicotomia simultânea que pode ser vista da seguinte maneira:

“A relação do artista com a obra pronta é de total independência; a do filosófo […] é de responsabilidade e continuidade. O artista, ao publicar suas criações, liberta-se delas. O homem de pensamento carrega-as como a cruz do seu destino: seja para defendê-las, seja para renegá-las, terá de tê-las sempre ante os olhos, para firmar no passado os atos do presente. A vida infame de um poeta é resgatada por seus escritos; os atos infames de um filósofo são a condenação de sua obra escrita. E bem longe do meu pensamento andará o leitor que compreenda tudo isto como um simples apelo moralístico à coerência entre atos e obras; pois não digo que essa coerência deva existir, mas que ela existe necessariamente, para o bem ou para o mal, e que por isso os atos de um filósofo devem ser incorporados à sua filosofia como interpretações operantes que o pensador deu ao seu próprio pensamento ao traduzi-los da generalidade das ideias para a particularidade das situações; que, portanto, em filosofia, os estudos biográficos não são externos e supervenientes em literatura, mas parte integrante, ainda que auxiliar, da compreensão do filosofema; a vida do filósofo está para sua filosofia como a jurisprudência está para os códigos”. 

Graças ao uso da sua incrível capacidade verbal, Olavo abre uma brecha que, ao mesmo tempo em que não exime o fato de que a filosofia jamais exclui de si mesma os atos do filósofo que a pratica, também faz surgir a oportunidade para que se perceba (e aceite), dentro desta mesma unidade de pensamento, uma semente de contradição entre as ideias e as ações do “portador do saber”. Aceitar este tipo de “movimento pendular” seria uma das características principais, segundo Olavo, daquela inteligência que é obediente à verdade revelada.

Julgamento e a verdadeira inteligência
Este é o tema principal da apostila “Inteligência e Verdade”, resultado de duas aulas dadas em 1994 no famoso Seminário de Filosofia, que posteriormente seria transformado, nos anos 2000 em diante, no Curso Online de Filosofia (COF). Logo no início, Olavo deixa claro que a sua definição de inteligência “não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial”. Trata-se de algo mais sério e profundo: a inteligência seria a “capacidade de apreender a verdade”, algo completamente diferente de pensar, já que ela se encontra na “realização da [sua] finalidade, e não na natureza dos meios empregados” e, por isso, só pode ser concebida como “a potência de conhecer a verdade por qualquer meio que seja”.

A verdade se encontra com a inteligência (e vice-versa) quando compreendemos que “o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou [uma] memória excepcionalmente desenvolvidas”. O ser humano só encontra a sua essência quando depara com “tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos, recordamos”, quando “somos capazes de vê-lo como um conjunto e, com relação a este conjunto, podemos dizer um sim ou um não, podemos dizer: ‘É verdadeiro’, ou; ‘É falso’”. Ou seja, o que um homem quando conhece realmente é fazer uma escolha, um julgamento sobre o que é realmente uma coisa.

Portanto, a inteligência tem a ver com o que fazer quando estamos diante de impasses morais, impasses que envolvem opções difíceis e que, conforme o passar do tempo, podem incorrer em resultados trágicos. Assim, o “quid” do filósofo é uma pergunta que, ao mesmo tempo, envolve o conhecimento e a ignorância de um objeto, uma vez que “a coisa que se me oferece nesse instante não cumpre, não atende perfeitamente a condição exigida na palavra quê – aquela consistência, aquela coesão do estar, do agir e do padecer, aquela potência e sobretudo aquela fatalidade, aquele não-ser-de-outro-modo, aquela impositiva ausência de perguntas – e da capacidade de fazer perguntas – que me sobrevém quando sei o quê”.

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Essa definição de uma inteligência que vai além dos “meros atos mentais” é um contraponto ao “equívoco” o qual “acabou por ser oficializado e legitimado pela educação” oficial, segundo Olavo. Para resolver esse problema, ele propõe não só um método, mas sobretudo a criação de uma nova comunidade, que ensine ao sujeito a verdadeira prática da inteligência, aquela que “não consiste em atinar com um resultado verdadeiro, mas em admitir esse resultado como verdadeiro”. Admitir, aqui, significa entender que a inteligência é um ato livre para “preferir um resultado falso” e, depois, “crer nesse resultado, isto é, assumir uma responsabilidade pessoal pela afirmação dele e pelas consequências que dele derivem” – e dessa forma chegarmos à uma definição mais precisa do que Olavo pensa ser o ato da inteligência: “é a relação que se estabelece entre o homem e a verdade, uma relação que só o homem tem com a verdade, e que só tem no momento em que intelige e admite a verdade, já que ele pode tornar-se ininteligente no instante seguinte, quando a esquece ou renega”.

Contudo, para que essa definição seja prática, a inteligência deve parar de ser uma “faculdade puramente cognitiva” – o equívoco repetido ad nauseam pela educação do status quo, de acordo com Olavo – e ser entendida como uma “síntese de uma aptidão cognitiva e de uma vontade de conhecer”, na qual há uma conexão entre a “desonestidade interior” e o “enfraquecimento da inteligência, que acaba sendo substituída por uma espécie de astúcia, de maldade engenhosa”. Olavo detalha ainda mais essa afirmação – e a relaciona com a existência da elite intelectual do nosso presente momento:

“A astúcia não consiste em captar a verdade, mas em captar – sem dúvida com veracidade – qual a mentira mais eficiente em cada ocasião. O astucioso é eficaz, mas está condenado a falhar ante situações das quais não possa se safar mediante algum subterfúgio, que exijam um confronto com a verdade. A conexão entre a inteligência e bondade é reconhecida por todos os grandes filósofos do passado, do mesmo modo que a correspondente ligação, do lado do objeto, entre a verdade e o bem. [Quando examinamos os seguintes fatos, em que,] com frequência as nossas ações não são acompanhadas de palavras que as expliquem, nem mesmo interiormente; ou seja, [quando] somos capazes de agir de determinadas maneiras, explicando esses atos de maneiras exatamente inversas, precisamente porque as motivações verdadeiras, permanecendo inexpressas e mudas, se furtam ao julgamento consciente. Isso faz com que, pelo menos subsconscientemente, alimentemos um discurso duplo. 

A partir do momento em que você admite que uma coisa é verdadeira, mas procede, mesmo em segredo, mesmo interiormente, como se ela não o fosse, está mantendo um discurso duplo: num plano afirma uma coisa, noutro afirma outra coisa. […] Por isto a mentira interior é sempre danosa à inteligência: é um escotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão e substituí-lo por um sistema completo de erros e mentiras. Quando nos habituamos a suprimir a verdade com relação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossos sentimentos e atos, esta supressão nunca fica só naquele setor onde mexemos, mas se alastra para outros territórios em volta e, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa, nos tornamos incapazes para inteligir muitas coisas também. […]. 

Mais tarde, quando desejarmos estudar um determinado assunto que nos interessa, ou entender o que está se passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmente perceberemos que fomos nós mesmos que causamos esta lesão da inteligência. Noto em muitos intelectuais de hoje uma repugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a tal ponto que, mesmo quando desejam aceitá-la, tem de metê-la num invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com frequência essa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertrófico das faculdades auxiliares, numa inútil excrescência ornamental [e, por isso,] muitas dessas inteligências lesadas alcançam sucesso nas profissões intelectuais”. 

Para não permitir que as outras pessoas sejam atingidas por essas “inteligências lesadas”, Olavo de Carvalho propõe a construção de uma verdadeira “intelectualidade nacional”, cuja definição seria “um número suficiente de pessoas capazes de perceber a verdade por si mesmas, e que não precisam ser persuadidas por ninguém” e que funcionariam espontaneamente como “fiscais da inteligência coletiva”. A principal responsabilidade deste estrato da sociedade – que não precisa ser composto necessariamente de “pessoas que exercem profissões ligadas à cultura ou à inteligência” – é ajudar os povos a escolherem “entre a verdade e a mentira”, fazendo o possível de dizerem a primeira e assim impedindo-os de se enganarem. Quem vai guiá-los nisso, Olavo ainda não revela nada a respeito deste feito, mas ele não hesita de afirmar o seguinte:

“Afirmo, peremptoriamente, que este é o caso da intelectualidade brasileira, que, na sua quase totalidade se utiliza de profissões culturais para fazer com que povo e a opinião brasileira a sirvam, confirmando suas crenças, das quais ela não tem certeza pessoal alguma, e para as quais justamente por isso procura angariar um apoio coletivo. […] Como é que a intelectualidade pode ao mesmo tempo pregar um relativismo dissolvente, onde os critérios do verdadeiro e do falso se diluem a ponto de se tornaram indistinguíveis, e ao mesmo tempo exigir que os políticos sejam honestos e digam a verdade ao povo? […] Não resta dúvida de que a corrupção da sociedade começa com a corrupção da camada intelectual, não com a corrupção dos negócios ou com a política. […]”. 

Sem dúvida, Olavo está corretíssimo nesse diagnóstico. O problema começa a se apresentar quando ele propõe o seguinte tipo de cura para a situação caótica apresentada pela sua “crítica da cultura”:

“[…] Do ponto de vista de utilidade para o indivíduo o objetivo deste curso é o desenvolvimento da sua inteligência, [já] do ponto de vista social, cultural, o objetivo do curso é fornecer gente para uma futura elite intelectual verdadeira. O que é uma elite intelectual? É gente tão treinada para perceber a verdade quanto um boxeador está treinado para lutar e um soldado para fazer a guerra. Neste sentido, todas as nações que obtiveram um lugar de grandeza na história tiveram uma elite assim, formada muito antes de que o país alcançasse qualquer projeção econômica, política, militar, etc. Pois não é possível resolver os problemas primeiro e se tornar inteligente depois. Em todo debate sobre problemas nacionais que atualmente está em curso só há uma coisa que todos estão resolvendo: Quem vai resolver estes problemas? Quem vai examiná-los? Quem tem a capacidade de examiná-los com efetiva inteligência? Se estas pessoas não existirem, então o problema inicial é formá-las. O objetivo prioritário deste curso é exatamente isto, se não formar, pelo menos contribuir para formar, amanhã ou depois, ao longo de talvez vinte ou trinta anos, uma verdadeira elite intelectual”. 

Logo depois da declaração explícita desta missão, Olavo toma muito cuidado de ressaltar que “com relação à formação de uma elite intelectual, não é preciso dizer que não é absolutamente necessário que os membros de uma elite deste tipo tenham opiniões concordantes, aliás se tiveram opiniões discordantes talvez até seja melhor em determinadas circunstâncias”. Reparem neste detalhe: “determinadas circunstâncias”. E quais seriam elas? Quem as determina? Aquele que ensina ou aquele que recebe o ensinamento? Seriam os membros do Seminário de Filosofia – ou, atualmente, os membros do Curso Online de Filosofia? E qual seria o filtro da inteligência que faria a distinção essencial entre o que é verdadeiramente importante e o que são essas “determinadas circunstâncias”?

À beira do abismo
Essas perguntas começam ser respondidas quando lemos o ensaio “O espectro da heresia – Um breve exercício na ciência do discernimento dos espíritos”, escrito em 1995, quando Olavo de Carvalho tinha uma intensa amizade com o poeta Bruno Tolentino, cuja obra foi justamente o assunto deste texto. Partindo dos paralelos temáticos e formais de um poema de Tolentino, “O Espectro” (que seria depois a abertura da sua magnum opus, ‘O Mundo Como Ideia’, lançado no final de 2001), com ‘A Máquina do Mundo’, de Carlos Drummond de Andrade, o filósofo logo inicia o seu raciocínio com uma afirmação espantosa: a de que esses versos do autor de ‘As Horas de Katharina’ conseguem “apenas ser um enganoso e temporário desmentido que o autor dá à sua própria obra de toda uma vida”.

Deve-se deixar claro que este aviso não é um indício de menoscabo de Olavo por Tolentino. É justamente o oposto: ele faz este tipo de afirmação porque admira o trabalho do poeta. Como o próprio filósofo escreve à guisa de conclusão, é o destino de toda uma cultura, é todo um país, somos todos nós que sofremos “quando um homem desse porte, colocado pela Providência numa posição estratégica tão decisiva para os destinos de uma cultura nacional, é levado por uma inspiração suspeita a caminhar perigosamente pela beira de um abismo”.

Então, qual seria este abismo? Para Olavo, o tal do desmentido exibido em “O Espectro” jamais poderá visto como uma “escolha consciente do poeta, mas um desses lapsos monumentais em que a alma, por distração, favorece os seus inimigos, que a espreitam sem cessar para atravessar a ponte no momento em que o vigia adormeça”. De acordo com o mesmo autor que produziu o texto “Poesia e Filosofia”:

“E como a alma de um poeta é uma encruzilhada por onde passam todas as correntes de força de uma civilização, há entre inimigos algo mais do que os vulgares fantasmas inconscientes que neurotizam o homem comum: há correntes espirituais e históricas ocultas, esquecidas, muitas vezes milenares, que anseiam por utilizar-se da sua voz como de um canal por onde possam evadir-se da prisão subterrânea e saltar sobre a sociedade inteira. É grande e temível, por isto, a responsabilidade do poeta: abrindo-se para inspirações que o transcendem, e dando-lhes voz por um processo que não inclui necessariamente – que na verdade não inclui quase nunca – o exercício do discernimento dos espíritos, ele se torna por vezes o instrumento daquilo a que menos desejaria favorecer. É por isso que a interpretação de um poema vai muito além da averiguação das ‘intenções’ pessoais do autor: ela se prolonga até as intenções ocultas do Espírito que, misteriosamente, delineia os caminhos da História”. 

Belas palavras, sem dúvida, típicas de quem conhece muito bem o encanto delas. Mas sobre o que é a causa desta celeuma? Ao comparar “O Espectro”, de Tolentino – cuja cena principal é o encontro do eu-lírico (que pode ser ou não ser o próprio poeta) com nada mais nada menos que o fantasma de Charles Baudelaire, este vate maldito da modernidade, à beira do rio Tâmisa –, com a meditação feita por Drummond em “A Máquina do Mundo” – na qual o eu-lírico (que pode ser ou não ser o mineiro nascido em Itabira) finalmente conhece a engrenagem que explica o cosmos –, Olavo de Carvalho julga perceber, no primeiro poema citado, “uma subcorrente que, por baixo da intenção conscientemente católica [de Tolentino], nos leva para um território que beira o satanismo”. 

Deixemos de lado a força dos advérbios, dos substantivos e dos adjetivos – e vamos direto para o que parece ser o problema do poema para Olavo. Na versão a que ele teve acesso (de 1995), antes do eu-lírico se encontrar com o espectro de Baudelaire, o poeta reflete sobre um “argumento de John Locke sobre a fortuidade da inclinação da Terra”. Este detalhe o faz chegar ao seguinte raciocínio, uma vez que as citações feitas por Tolentino a esses dois nomes – um da filosofia, outro da poesia – seriam “falsas atribuições” dos seus papéis:

“De um lado, John Locke não acreditava em nenhuma ‘luz conceitual’ [uma das metáforas favoritas de Tolentino], criação pura da razão lógico-matemática que pudesse sobrepor – no sentido tolentiniano das expressões – o ‘mundo como ideia’ ao ‘mundo como tal’. O fundador do empirismo não podia, por definição, ter nada de platônico. Não só, para Locke, todo o conhecimento provém dos sentidos, mas também a razão mesma não é senão o produto de uma decantação mais ou menos passiva da experiência sensível, onde o agrupamento espontâneo dos dados em conjuntos semelhantes e diferentes vai estabelecendo por mera indução o sentido da identidade, as categorias lógicas, as formas do silogismo e tudo quando, em suma, compõe as estruturas do pensamento racional. Não existe aí nenhuma ‘luz conceitual’: o conceito é, ao contrário, nada mais que resíduo ou mera sombra projetada pela realidade sensível”. 

Em seguida, Olavo sugere que, no lugar de Locke, o melhor seria “algum apóstolo do racionalismo absoluto – Spinoza, Hegel –, ou então algum logicista furioso, como Carnap ou Frege”. Já a respeito de Charles Baudelaire, ele ainda é mais taxativo: o francês “também não é o que se pode apropriadamente denominar um porta-voz autorizado da luz divina [que, segundo Olavo, é o que Tolentino estaria propondo como contraponto à ‘luz conceitual’ de Locke]. As experiências interiores a que teve acesso não foram produzidas por nenhuma ascese religiosa, mas pelo consumo de drogas. Elas não têm o significado universal e o valor das autênticas visões místicas, mas o de meras experiências pessoais, amplificadas por uma rara eloquência poética que só serve para torná-las ainda mais enganosas”.

Como se não estivesse satisfeito, Olavo chama de Baudelaire de um “asceta do mal” – e sua poesia

“longe de nos trazer uma mensagem universal do Espírito, não expressa senão o protesto subjetivo da alma sensível esmagada pela feiura de um mundo dominado pelo comercialismo e pela técnica. Até aí, ela poderia constar como uma apologia do Espírito, ainda que melancólica e derrotista. Mas o que a distingue das demais poéticas do protesto subjetivo são dois traços inconfundíveis: primeiro, sua pretensão universalizante; segundo, sua contaminação proposital, deleitosa e perversa no mal que denuncia”. 

Assim, segundo Olavo, sem o saber, Bruno Tolentino estaria “contaminado” por esse “método baudelairiano”, cuja essência seria a soma da “repressão dos sentimentos” e da “exaltação imaginativa”, na qual o seu “cerebralismo extremado”, disfarçado de fantasia seria uma espécie de “irmão gêmeo” da “luz conceitual” de John Locke, nascendo assim uma “outra coisa senão uma versão esnobe e inquietante do ‘mundo como ideia’”. E arremata:

“[…] ‘O Espectro’ vai muito além de uma valorização descabida do esotérisme de Baudelaire [uma referência que Olavo faz ao título do famoso livro de René Guénon, ‘L´Esotérisme de Dante’ – O Esoterismo de Dante]. Ela confere ao conhecimento obtido pelo método baudelairiano da fantasia exaltada uma autoridade comparável, se não superior, à das Sagradas Escrituras. O espectro falante, com efeito, exige de seu ouvinte a renúncia ao pensamento discursivo, a sujeição integral da alma à fantasia imaginativa. A Igreja nunca exigiu tanto: ela limitou-se a decretar a conformidade da razão com a fé, e a alertar, de outro lado, para os temíveis perigos a que o homem se expõe quando se deixa levar por uma fé não iluminada pela razão. O dogma católico, a rigor, admite no homem duas e somente duas fontes do conhecimento de Deus: a fé e a razão. Se há algo que não nos pode dar esse conhecimento de maneira alguma, é a ‘experiência’, seja pessoal, seja coletiva. A experiência mística, mesmo autêntica, não tem autoridade e tem de ser validade pela sua conformidade aos preceitos da fé, conformidade esta que é julgada pela razão. O argumento aí subentendido é o de Aristóteles e Sto. Tomás: a experiência só nos dá o conhecimento do singular sensível, e é a inteligência racional que introduz nela os critérios de universalidade, necessidade, possibilidade, contingência, etc., sem os quais ela não tem um valor cognitivo senão muito rudimentar e tosco”. (grifos meus) 

Sob esta perspectiva, “A Máquina do Mundo”, de Drummond, seria o poema que dramatizaria, por meio de uma linguagem que discorreria sobre os Mistérios Menores (“correspondentes [no jargão esotérico] às ciências simbólicas da natureza: astrologia, matemáticas, alquimia, etc.”), tanto o fracasso na iniciação diante desses mesmos Mistérios como “a renúncia cognitiva que precede o ingresso nos Grandes Mistérios” (mais especificamente, a “visão de Deus”).

Aqui, Olavo interpreta os versos sob a ótica da sua formação perenialista, a escola de pensamento que teve René Guénon e Frithjof Schuon como seus expoentes máximos, defensores de uma “unidade transcendente das religiões”, e que fundamentou a maioria dos estudos do filósofo brasileiro em seus anos de aprendizagem. Se Drummond sabia ou tinha um conhecimento mínimo deste tipo de linha de pensamento, nem Olavo pode prever isso, dando a entender, logo em seguida, que a sua própria interpretação sobre “A Máquina” – a de ser um “poema cristão de elevado valor místico” – pode ser apenas mais uma interpretação, entre tantas, caindo na mesma inversão de leitura que o próprio Olavo fez sobre o poema de Bruno Tolentino e também sobre a interpretação tolentiniana ao redor dos versos de Drummond.

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Porém, há algo mais nesta discussão entre dois amigos extremamente inteligentes. Não se trata somente de descobrir se “O Espectro” não passa de um “rascunho gnóstico de um futuro grande poema épico católico” – o que indica que Olavo tinha plena noção de que o objeto analisado em questão era parte de um tomo maior e que seria futuramente lançado com o título de ‘O Mundo Como Ideia’.

Na verdade, trata-se de um debate sobre o que seria a natureza desse mundo possesso pela “luz conceitual” e que foi uma espécie de denúncia constante na obra de Bruno Tolentino. Para sermos exato, Olavo de Carvalho quer se apropriar – ou melhor, controlar – a grande descoberta que o autor de ‘A Imitação do Amanhecer’ fez para os outros, sempre em detrimento de si mesmo. Se não for isto, como então podemos interpretar a seguinte definição abaixo, na qual Olavo amarra a defesa do conceito como instrumento fundamental da inteligência racional e a sua própria definição do que deveria ser, segundo seu ponto-de-vista, o tal do “mundo como ideia”?:

“Pensar por conceitos é tão natural no homem quanto respirar ou sonhar; é um instrumento indispensável da nossa instalação no real, pelo menos tanto quanto a imaginação ou a percepção sensível, que sem o pensamento conceitual acabariam definhando até reduzir-se a uma passividade vegetal. Se o pensar por conceitos às vezes nos afasta da realidade e faz com que nos percamos na rede de nossas próprias invenções subjetivas, a mesma acusação se pode fazer com igual justiça à capacidade sensorial, aos sentimentos e à imaginação, para não falar da fantasia baudelaireana. Não pode ser, portanto, contra o conceito como tal que se deve voltar a luta pelo predomínio do ‘mundo como tal’ sobre o ‘mundo como ideia’; pois um mundo onde os homens pudessem conhecer o real e inserir-se nele sem conceitos, e amparados tão somente no método baudelairiano da auto-excitação imaginativa, é um mundo tão irreal quanto o mais exaltado delírio pitagórico. Combater o conceito em nome da fantasia baudelaireana é apenas trocar um mundo como ideia por outro mundo como ideia, mais enganoso ainda porque envolto na aura prestigiosa de um ‘conhecimento direto’. 

O que nos desvia do mundo como tal e nos aprisiona no palácio aritmético da ilusão não é o pensar conceitual, em si mesmo natural e são, mas sim a revolta platonizante contra a vida imediata, o matematismo desvairado que substitui os modelos às coisas, o abstratismo arrogante que prefere a perfeição de uma certeza lógica inventada à incerteza do mundo recebido – abstratismo que sem dúvida nasce menos da dinâmica interna da razão que de um impulso estetizante de dar ao pensamento a perfeição formal definitiva de um soneto ou de uma ode. Esse abstratismo é certamente incompatível com as concepções cristãs de um Deus pessoal, da Encarnação, da redenção, etc. Mas não é incompatível com a poética de Baudelaire, que nasce do mesmo espírito de rebelião contra o mundo criado, do mesmo desejo de substituir, à imperfeita criação divina, a perfeição de um mundo inventado”. 

A conexão que Olavo faz entre o esoterismo imaginativo de Baudelaire com o empirismo de Locke se daria na dependência existencial do segundo em relação ao primeiro, quando “a concepção que faz da experiência subjetiva ampliada um substantivo da revelação divina” tem consequências históricas e intelectuais de grande alcance, “inclusive na ordem religiosa, onde a ‘experiência pessoal’, a ‘intuição’, a ‘visão interior’, etc. acabaram adquirindo, para a sensibilidade de uma grande parte dos intelectuais, uma autoridade bem superior à da fé iluminada pela razão. Baudelaire é, sob esse aspecto, um herdeiro e beneficiário do precedente lockeano. Se rejeitamos o empirismo de Locke, pouco sobra do método de Baudelaire”.

Sem se considerar satisfeito, Olavo vai além no seu raciocínio, ao alegar que há uma subordinação ainda mais profunda das ideias de Locke em relação aos desvarios de Baudelaire, supondo o fato de que “se a razão é um produto da experiência [segundo Locke], e se a experiência é sempre individual, circunscrita aos limites do corpo que a padece, então as categorias da razão resultam apenas da soma das experiências de muitos indivíduos. Elas não são universais e necessárias, mas apenas gerais – de uma generalidade quantitativa e estatística. Se é a experiencia de muitos que sustenta a validade dos raciocínios lógicos, então o raciocínio lógico de um indivíduo sozinho não tem a mínima autoridade contra a opinião da maioria” – e, portanto, isso leva Olavo a concluir que “a imaginação, para adquirir uma autoridade superior à da razão precisa apenas amplificar-se até as dimensões do coletivo”.

Foi exatamente isso que levou Tolentino, segundo o filósofo, a “jogar Baudelaire contra Locke”, o que seria a mesma coisa que “contrapor Satanás a Belzebu”, terminando pela “vitória completa e definitiva” do empirista inglês e do erro medonho (de acordo com Olavo) do poeta de se “voltar contra o pensamento conceitual a hostilidade que se devia dirigir somente contra a vontade perversa que transforma o conceito, a imagem, o sentimento e todos os outros instrumentos de cognição em instrumentos da mentira”.

Drama da razão
Olavo teria razão neste malabarismo verbal (e lógico) se não fosse por um detalhe: nada disso tem a ver com o que Bruno Tolentino realmente pensava a respeito do “mundo como ideia”. E há de se demonstrar tal fato em quatro pontos.

O primeiro é que, logo no início dos dez ensaios que servem como introdução ao volume que foi finalmente publicado em 2001 com o título de ‘O Mundo Como Ideia’, Tolentino deixa claro que não tem nenhum desprezo pelo uso do conceito como instrumento de reflexão. Aliás, o próprio afirma que não viveu “exatamente infenso às sereias da Ideia, longe disso”, pois foi em nome desta última que, “século após séculos desde os fins da Idade Média, vem-se hipotecando a aventura cognoscitiva a um empirismo às avessas, espécie de remanso especulativo a substituir-se às perplexidades da condição mortal”.

O uso da expressão “empirismo às avessas” não foi à toa; Tolentino já quer eliminar imediatamente qualquer referência a Locke na análise do seu pensamento (e também não foi por acaso que, na versão definitiva do poema, ele substituiu o filósofo inglês por ninguém menos que Immanuel Kant, numa deferência à observação feita por Olavo, apesar deste jamais citar o anacoreta de Konigsberg em “O Espectro da Heresia”). Pois o “mundo como ideia” não é uma mera questão filosófica ou um outro problema formal ou técnico. Trata-se de uma escolha moral – e mortal – em que “a vida do espírito” precisa fazer a opção dilacerante “entre duas posturas, só em aparência opostas: ou bem ‘retira-se’ da arena, desativando suas tensões com a abdicação de um mea culpa de sonâmbulo, tautológica e fatalista, ou bem ‘abole’ a intratável opacidade do real num movimento de ebriez altiva, de cegueira rebelde”.

Esta última escolha seria a “grande tentação”, o “refúgio por excelência (e há mesmo quem o diga inescapável) da inquietude ocidental”, ao mesmo tempo em que jamais pode se esquecer que o “conceito per se (como da metáfora, de resto)” nada mais “é que um instrumento: nobre, ilustre, indispensável que seja”, mas perigosíssimo uma vez que, com ele, não se pode “inverter a relação entre os meios e os fins”. O conceito jamais pode ser “o substrato mesmo do conhecimento – em vez do contraponto formal que é à noite tumultuosa do sensível” – porque, se isso acontecer, haverá certamente a troca do “mundo-como-tal” pelo “mundo-como-ideia”.

Portanto, o que Tolentino nos oferece não é uma discussão bizantina sobre fantasia, imaginação ou empirismo, e sim uma diagnose que afeta a todos nós, sem exceção, inclusive o próprio poeta: “Confrontada às tensões e aos paradoxos de que se nutre a rosa cognoscente, a vida do espírito tende a capitular ante as seduções do conceito, o qual, por sua vez, entorpece-a com fórmulas, métodos e dogmas que nada mais logram além de uma leitura pretensamente ‘segura’, e ao cabo apenas redutiva, dos fundamentos do ser e das categorias do real”.

Trata-se, na verdade, daquilo que ele chamava sem parar – talvez para ressaltar a quem não o compreendesse – de o “drama da razão”, em que o conceito é apenas um dos polos de tensão cujo equilíbrio depende a aceitação do fato de que “não há lição de trevas nos reinos diuturnos do conceito, todos eles opostos ao ‘império do real’”. Neste drama, Tolentino busca também um ponto de apoio na dialética constante (e excruciante) do pecado e da Graça, uma dialética completamente diferente da dialética simbólica ao reconhecer que, no seu movimento, “sem um chiaroscuro, sem as mediações da treva, as ‘coisas’ não têm ‘sombra’, e segue-se que nesse tipo de ‘registro’ sem interesse intelectual ou anelo algum pelo que o ultrapasse tampouco há de haver lição digna de modelagem do nome; nenhuma, em todo caso, que não tenda ao que chamo a marmorização moral do ser – para o homem conceitual a única admissível resposta às inquietações da mente ante o fugaz, o precário, o elusivo”.

É interessante observar que Olavo de Carvalho jamais cita a expressão “drama da razão” no texto dedicado à obra do amigo – e isto nos faz crer que o filósofo analisou apenas uma parte das intenções poéticas e estéticas de Tolentino, esquecendo-se de outras que, certamente, mostrariam que seu raciocínio sobre aqueles “versos satânicos” não era assim tão completo. E eis aqui o segundo motivo pelo qual sua análise é equivocada: Olavo parece ter se esquecido de que o próprio Tolentino deu uma resposta à experiencia dramatizada em “O Espectro” com um outro poema, igualmente complementar, e que fecha o Livro Primeiro de ‘O Mundo Como Ideia’.

Estamos falando, aqui, de “Lição de Modelagem”, cuja cena memorável do eu-lírico que conversa interiormente com uma visão de ninguém menos que Santo Irineu de Lyon (o autor deste monumento patrístico que é Contra os Hereges), é a contraposição perfeita ao “satanismo” decifrado por Olavo no encontro do poeta com o espectro de Baudelaire. A definição de uma “lição de modelagem”, surgida no final da década de 1980 em poemas escritos na língua inglesa como “A sermon upon the clay”, é muito cara à obra tolentiniana – e, portanto, não tem nada a ver com as sugestões que Olavo poderia fazer como consequências da discussão filosófica iniciada em “O Espectro da Heresia”. Esta lição seria algo que está “além de um exercício formal de cunho e natureza quando muito simbólicos”, uma “operação da inteligência que tem cura, antes de tudo, da intratável e aparentemente informe rugosidade do real, e que ao buscar formar-se uma qualquer imagem dele só se legitima ao equilibrar-lhe as tensões e os paradoxos de modo a efetivamente tocar aquele nervo vital, aquela carnatura viva da linguagem em que significado e significante resultam indissociáveis – portanto significativos. É evidente que o espírito do conceito nada sabe e nada quer saber desse equilíbrio, desse exercício sobretudo moral”. (grifos meus)

Contrapondo o resultado final de ‘O Mundo Como Ideia’ com a sua análise provisória a respeito de um único poema do tomo, é percebe-se que Olavo não preservou esse “equilíbrio” na sua interpretação de “O Espectro”. Se ele tivesse feito o paralelo entre a alucinação com Baudelaire e a visão com Santo Irineu, notaria que o importante para Tolentino nunca foi o uso adequado do conceito como instrumento cognoscente, e sim como

quanto à soma intranquila, 

de tudo o que sobrar 

do que não conseguimos 

nunca aperfeiçoar 

(não por falta de estímulo, 

mas por desconfiar 

da perene ambição 

de sermos nós os nossos 

melhores arquitetos), 

tudo aquilo não passa 

de indiferença à graça, 

na pompa e na soberba 

dos sonhos do intelecto 

que se presume autônomo […]. 

(“Lição de modelagem”, grifos meus). 

Chegamos, portanto, à terceira razão pela qual Olavo se mostra equivocado: apesar de ter um repertório literário e filosófico invejável, com referências à philosophia perennis, Drummond, Baudelaire, Locke, etc., ele simplesmente se esqueceu (ou então não sabia mesmo) de que o poema “O Espectro” é também uma releitura do famoso episódio que T.S.Eliot descreve na quarta e última parte dos seus ‘Quatro Quartetos’, intitulada “Little Gidding”, na qual o eu-lírico tem uma visão com ninguém menos que Dante Alighieri.

Não se trata de uma mera elucubração. Tolentino era extremamente auto-consciente em suas citações – e, intuindo que ninguém repararia neste pequeno detalhe, fez questão de ressaltá-lo por meio da dedicatória dirigida a Ivan Junqueira (tradutor nacional tanto de Eliot como de Baudelaire). O cenário é assustadoramente semelhante em ambos os poemas: Eliot e Tolentino estão em Londres; só que o primeiro é testemunha de uma cidade em ruínas, arrasada pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial, enquanto o segundo está imerso nos “arabescos da mente” à beira do Tâmisa.

O contraste não podia ser mais gritante – e, por isso mesmo, evidente. O que temos aqui é um poeta conversando secretamente com outro poeta, e ambos os vates estão cruzando referências com suas maiores influências, sejam positivas ou negativas. No caso de Eliot, é o visionário de ‘A Divina Comédia’, antecipado por nada mais nada menos que uma “pomba escura” (dark dove), o oposto do pássaro que simboliza o Espírito Santo, e que incita o anglo-americano a fazer uma releitura de toda a sua carreira literária; no de Tolentino, a pomba escura é o próprio espectro da poesia metaforizado na presença aterrorizante de Charles Baudelaire, avisando o colega brasileiro de que ao buscar “o todo parte a parte”, querendo “as perfeições da geometria/ e ao fim do sonho circular da arte//, entregas tudo à fantasmagoria, aos jogos malabares da ilusão”.

E temos aqui o quarto, mas não menos importante, motivo da interpretação de Olavo não corresponder à realidade. O que ele não entendeu é que “O Espectro” não é um jogo filosófico sobre o “discernimento dos espíritos”, mas faz o que toda a grande poesia (e toda a grande arte) se propõe: dramatizar uma experiência extrema da condição humana – que, neste caso, é o confronto com as raízes obscuras do conceito, resultando assim naquele esteticismo moral que prejudicou não só a biografia de Baudelaire ou Drummond, como também a de filósofos como Nietzsche e Heidegger. É um poema que retrata, com muita ambição e muito sucesso, o mesmo evento descrito por Eliot no seu encontro com Dante em “Little Gidding”: a presença da “pomba escura” em sujeitos que deveriam viver a sua plena vocação filosófica e poética, como se fossem iluminados pelo Espírito Santo.

O único antídoto para suportar e vencer essa presença negativa, próxima ao “não-ser”, é se preparar para a execução de uma “lição de modelagem”, sem cair nas armadilhas de quem fica indiferente aos chamados cifrados da Graça. Infelizmente, Olavo não notou nada disso ao interpretar os versos do amigo. Ele preferiu se refugiar em uma visão formalista do poema (não marxista, por certo, mas sobretudo perenialista, se admitirmos as críticas que Hans Urs Von Balthazar faz a esta escola de pensamento) e praticar uma leitura semelhante ao que Charles Kinbote, o excêntrico personagem do romance ‘Fogo Pálido’ (1962), de Vladimir Nabokov, fez dos enigmáticos cantos que o poeta John Shade criou antes do seu desaparecimento.

No livro escrito por Nabokov, Kinbote prefere deixar de lado a intensa meditação sobre a morte, a imortalidade e o sofrimento encontrados nos versos do poeta prematuramente falecido, para criar delírios a respeito de um país, Zembra, provavelmente irreal, naquela crença tola de que “é o comentador que tem a última palavra” em relação ao poema. No fundo, Olavo se comportou como o “purovisibilista”, expressão que Bruno Tolentino tomou emprestada de José Guilherme Merquior e que ele tanto temia quando alguém comentava sobre a arte em geral, quando o sujeito em questão não sabia “escutar sob o alarido das formas, em contato ou em luta, o murmúrio às vezes esquivo e subterrâneo de suas motivações culturais” porque era imune a “esse ouvido crítico” que sentia “o pulso e a problemática da cultura” os quais “fazem aquelas confidências que nos permitem decifrar a opulenta mensagem do tesouro das obras de arte”.

Por que o filósofo brasileiro, o mesmo que escreveu as belas páginas de “Poesia e Filosofia”, se refugiou neste engano? Não se trata de um problema de ausência de inteligência – e muito menos de falta de sensibilidade. Ele é muito astucioso para escapar desses obstáculos cognitivos. Só nos resta uma opção, que devemos ir a fundo para saber onde se localiza a raiz deste mal – a de que, ao encontrar uma obra como a de Bruno Tolentino, a inteligência de Olavo de Carvalho não teve outra coisa a fazer senão admitir no diálogo interior com o seu “ser” que “há múmias que uma vez desembrulhadas/ têm escrito na cara o nosso nome”.

Tirania da intelligentsia
Porém, uma coisa é fazer a leitura equivocada do poema de um amigo, em um ambiente particular. Outra é cometer o mesmo erro quando se analisa a conjuntura política e cultural de um país, uma vez que, neste caso, as consequências são muito maiores, além de serem perigosamente imprevisíveis. Mas, como estamos analisando a obra de um filósofo que preza, antes de tudo, pela unidade do seu pensamento – e pela ação que confirma o seu filosofema –, chegou a hora de percebermos que esses dois tipos de eventos estão intimamente conectados.

Pois o fato é que, de 1995 em diante, Olavo de Carvalho insiste nas suas interpretações à la Charles Kinbote – em especial quando analisou, em um famoso ensaio publicado em ‘O Imbecil Coletivo’, o livro ‘A Rebelião das Elites’ e a ‘Traição da Democracia’, escrito pelo norte-americano Christopher Lasch e publicado em 1996, logo após a morte do seu autor.

Como um bom professor, Olavo inicia o seu texto explicando direitinho qual é o conceito de “a revolta das elites” que Lasch desenvolve a partir da “rebelião das massas”, termo criado pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset:

“Há uma nova elite dominante no mundo, distinta da burguesia; ela não governa pela posse dos meios de produção, mas pelo domínio da informação; mais ambiciosa que sua antecessora, não se contenta em ter poder sobre a riqueza material e a força do trabalho das pessoas, mas quer moldar a sua mente, seus valores, sua via e o sentido da sua vida; não quer só possuir o mundo, mas reinventá-lo à sua imagem e semelhança, doa a quem doer (ela chama a isso “engenharia social” […]). […] A nova classe não precisa de intermediários, ela mesma inventa o seu discurso e não corre o perigo de ser traída pelas vacilações de intelectuais de aluguel – pois ela é composta de intelectuais. Estamos em plena tirania da intelligentsia”. 

Essa “nova aristocracia do espírito” foi profetizada por James Burnham em seu ‘The Managerial Revolution’, de 1941, mas foi Lasch quem deu o acabamento final e enfim a formalização numa espécie de princípio político. Se Ortega acreditava que o “homem-massa” que alimentou o totalitarismo nazista e comunista no século XX era o comportamento padrão no mundo social, com seu jeito de “senhorzinho satisfeito”, de temperamento mimado, e cumpria às elites darem o exemplo de ação e de pensamentos corretos para esse tipo de gente, Lasch inverte as expectativas (e o conceito) – e passa a afirmar que o novo “homem-massa” é ninguém menos que o intelectual, o sujeito que, encastelado em uma torre de marfim ou em seu gabinete, imagina alterar a estrutura da realidade, graças à força das suas ideias ou da sua técnica impecável, repleta de números e gráficos.

Este tipo de doença do espírito se chama pleonexia e é extremamente comum em pessoas com um alto poder cognitivo. A consequência prática é que, conforme a descrição precisa de Lasch, “as classes pensantes [ou ‘analistas simbólicos’] vivem em um mundo de abstrações e imagens, um mundo simulado, constituído de modelos computadorizados da realidade – a hiper-realidade, como tem sido chamada –, distinto da realidade palpável, imediata e física habitada por homens e mulheres comuns”. Sem saber, o americano teve a mesma intuição de Bruno Tolentino a respeito do “mundo como ideia”. O que importa para o intelectual analisado por Lasch – dominado então pelo discurso do marxismo e do politicamente correto – é a “construção social da realidade”, na qual “reflete a experiência de viver em um ambiente artificial, de onde foi excluído tudo aquilo que resista ao controle humano”.

Olavo reconhece a “importância e o valor” da empreitada de Lasch, mas faz a mesma coisa que praticou no ensaio “O Espectro da Heresia” – ou seja, insistir numa ressalva que, ironicamente, mostra toda a sua admiração pelo autor criticado. Assim, ele não hesita afirmar, peremptoriamente, que “Lasch – como quase toda intelectualidade fora da Espanha, excetuando-se uns poucos estudiosos de assuntos hispânicos como Ernst Robert Curtius – leu Ortega y Gasset muito mal”. E continua, no mesmo tom:

“[Lasch] compreendeu-o tão somente por ‘La Rebelión de las Masas’ – uma coletânea de artigos sem sentido completo em si mesma, como avisara repetidamente (e inutilmente) o próprio autor. Nem sequer folheou o restante das obras do filósofo, onde se encontram os antecedentes e a continuação do seu argumento. Ali poderia descobrir, por exemplo, que a distinção que Ortega y Gasset faz entre elite e massas não tem sentido socioeconômico, mas apenas psicológico e ético, inspirada, como é, na doutrina hindu das castas e do dharma, que os termos da sociologia ocidental não traduzem: há ‘homens da elite’ entre os proletários e ‘homens-massa’ na classe dominante. Poderia descobrir, pior ainda, que por ‘massas’ Ortega y Gasset entendia designar especificamente – como se lê com todas as letras em ‘España Invertebrada’, de 1923 – ‘las masas com mayor poderio: las de la clase media y superior’, principalmente as massas de estudantes que lotavam as universidades, isto é, os futuros gerentes […] da análise de Lasch. Em ‘Misión de la Universidad’, um texto quase contemporâneo da ‘Rebelíon’, Ortega y Gasset deixava muito claro que o nuevo barbaro a quem chamava homem-massa era ‘principalmente el professional mas sábio que nunca, pero más inculto tambíen: el ingeniero, el médico, el abogado, el científico’. Sua análise é de 1928. Permaneceu desconhecida do mundo, soterrada sob a falsa conotação atribuída quase que universalmente ao seu termo ‘massas’, a ponto de haver desde então duas imagens do autor: um Ortega y Gasset de centro-esquerda, na Espanha que o leu; um de extrema-direita, ao resto do mundo, que leu seus intérpretes. Ao mundo não hispânico, as análises de Lasch parecerão coisa inédita”. 

Apesar da clareza da exposição, Olavo pretende ser aqui “mais realista do que o rei”, com suas analogias crípticas ao pensamento perenialista e seu indiscutível conhecimento da obra de Ortega y Gasset, mas esquece-se que Lasch apenas se apropria da expressão do filósofo espanhol para praticar uma “inversão retórica” e então depois desenvolver a sua tese. Nada errado nisso. Contudo, Olavo desautoriza a importância do livro de Lasch – e diminui o impacto das suas reflexões para o leitor que ficou interessado em saber mais sobre ele. E, com isso, o brasileiro abusa do tu quoque [recurso do “tu também”] para sedimentar a sua impressão de que “a decadência intelectual norte-americana foi muito mais fundo que [Lasch] imaginava”, uma vez que “ela chegou a contaminar seu próprio crítico mais lúcido”:

“Se não fosse assim, ela não dedicaria tantas páginas ao exame meticuloso de ideólogos de segundo time, de importância meramente local, ao mesmo tempo que se omitia de lançar um olhar mais atento ao filósofo mesmo em que seu livro se inspira como ostensivo pendant pós-moderno de ‘La Rebelión de las Masas’. Nem sacrificaria aos ídolos que desmascara, ao acrescentar metodicamente à palavra homens, quando empregada com o sentido de humanidade, a ressalva cautelosa: ‘e mulheres’. Nem sugeriria, como remédio ao mal que diagnostica, um retorno à tradição do pragmatismo deweyano – uma tradição que, depreciando a noção de ‘verdade objetiva’ em prol do mero consenso útil, muito fez para debilitar a mente norte-americana e gerar o atual estado das coisas. Por essas fraquezas, e sobretudo pela tendência incoercível de atribuir provincianamente a tudo o que se passa nos Estados Unidos uma significação universal, a obra de Lasch é ela mesma, até certo ponto, um sintoma da situação que descreve”. 

Novamente, Olavo não quer ser apenas “mais realista do que o rei”. Ele faz exatamente aquilo que Robert Musil descreveu como a “agitação dissoluta da vida intelectual”, a qual “se move em todas as direções e pode vestir todas as roupas da verdade”, sem que o pensador imagine que esta última, “ao contrário, tem apenas uma roupa em qualquer ocasião, um só caminho, e sempre está em desvantagem”. E isto pode ser afirmado por um único motivo: tudo leva a crer que Olavo de Carvalho simplesmente não leu por inteiro o livro de Lasch, exceto pela introdução e o primeiro capítulo – e praticou a mesma coisa ao interpretar o poema de Bruno Tolentino e substituir o todo por apenas uma parte.

Homem singular
Os equívocos de Olavo sobre a obra de Lasch são dois: o primeiro é que Lasch, na verdade, amplia a noção da crítica a respeito do “homem-massa” de Ortega, inserindo-a numa tradição que se opõe à “tirania da intelligenstia”, aproximadamente caracterizada como “populista-conservadora”, e que tem sua perfeita articulação nas reflexões do filósofo britânico Michael Oakeshott; e o segundo é que Olavo não tem (ou não quer ter) a sensibilidade de perceber que se trata do testamento derradeiro de um homem, antes do sopro da morte o arrebatar completamente.

Em relação ao primeiro equívoco, Oakeshott escreveu um ensaio chamado “As massas em uma democracia representativa”. Nele, parte do seguinte raciocínio, inspirado justamente no conceito de “massa” de Ortega y Gasset: a de que o advento deste ente chamado “homem-massa” seria visto como o “surgimento mais significativo e abrangente dentro das revoluções da era moderna”, responsável “por ter transformado a maneira como vivemos, nossos padrões de conduta e a forma como fazemos política”.

Além do que já sabemos sobre este conceito – segundo as explicações de Olavo e de Lasch –, deve-se complementar que o fenômeno do “homem-massa” é de alguém que não aceita, sob nenhuma forma, de que a condição humana é um constante naufrágio, e que a primeira vítima pode ser ele mesmo. Também aceita sem reclamações que a vida, afinal de contas, cresceu – com sua estabilidade econômica, números polpudos, prosperidade merecida –, mas se recusa saber como isso aconteceu. E nisso trilha com contentamento a sua pequena existência, sem saber que existem outras pessoas que podem se diferenciar da aglomeração. Quando isso ocorre, logo a massa trata de agir, por meio de meios irracionais e vulgares, e ordena a sua visão sobre as coisas, que se aproxima de um totalitarismo alucinante, insistindo na característica do momento de que é “a alma vulgar, sabendo que é vulgar, [que] tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte”.

Porém, Oakeshott acredita que ver o mundo moderno por esse prisma não passa de um “exagero grotesco”. Assim, para consertar o que o filósofo espanhol disse, o britânico decide realizar uma “empreitada de descrição histórica” – na verdade, uma “longa história” que começa não na “Revolução Francesa (como querem alguns)” ou com “as mudanças industriais do fim do século XVIII e sim em meados dos séculos XIV e XV, nos períodos chamados ‘Humanismo’ e ‘Renascimento’ em que o que conhecemos hoje como ‘individualidade humana’” passou por “uma modificação das condições medievais de vida e pensamento”.

Antes, o sujeito era reconhecido entre os outros por ser o “membro de uma família, de um grupo, de uma corporação, de uma igreja, de uma comunidade, de um vilarejo, de promotor de uma comarca ou de ocupante de um posto alfandegário” e, isto era até então, “para uma grande maioria, a soma circunstancialmente possível de autoconhecimento. E isso não se restringia ao ‘ganha-pão’, também englobava decisões, direitos e responsabilidades gerais. Relacionamentos e alinhamentos normalmente se originavam do status e coincidiam em seu caráter com as relações de parentesco. A maior parte das pessoas era anônima, ninguém se importava com o caráter individual. O que diferenciava um homem de outro era insignificante quando se comparava com os privilégios de fazer parte de um clube de qualquer espécie”.

A partir do Renascimento, o eixo de percepção de como o ser humano via a si mesmo passou a mudar lentamente. Oakeshott se baseia em Jacob Burckhardt para afirmar que, do século XIII em diante, especialmente na Itália, percebe-se algo novo – uma “onda de individualidade”, ou, para ser mais preciso, a chegada do Uomo Singulare, o homem singular, insubstituível. A conduta deste novo sujeito “era marcada por um alto teor de autodeterminação e cujas atividades expressavam preferências pessoais de comportamento, gradualmente se desgarrando de seus companheiros. E junto com ele aparecia, não somente o libertine e o dilletante, como também o uomo unico, o homem que, ao dominar seu destino, ficara sozinho e se tornara uma lei para ele mesmo. Homens examinavam suas condições e não se chocavam por suas necessidades de perfeição. […] Uma nova imagem humana aparecera – e não a de Adão ou a de Prometeu, mas a de Proteu – um personagem distinto de todos os outros devido a sua multiplicidade e infinita capacidade de transformação”.

Logo, ser um indivíduo se tornou “o evento mais destacável da história da Europa moderna” e, como aconteceria com o passar de quatro séculos, uma forma ideal de governo também surgiu e ela teve de se adequar a essas “intenções de explorar as intimações de individualidade”, construindo uma base legal na qual começava com uma exigência muito ardilosa em sua simplicidade: a de que esses “interesses individuais” deviam se transformar em direitos e deveres.

Depois que tal governo foi estabelecido dessa forma, pediram-no mais três coisas: “primeiro, ele deveria ser único e supremo; somente pela concentração de toda a autoridade em um centro único o indivíduo emergente poderia escapar das pressões comunais da família e das guildas, das igrejas e da comunidade local; tudo o que o impedia de desfrutar plenamente de seu caráter. Segundo, ele deveria ser um instrumento de governo desvinculado de prescrições e consequentemente com autoridade para abolir velhas leis e criar novas: deve ser um governo ‘soberano’. E isso, de acordo com ideias de então, significa um governo em que todos que gozavam de direitos eram parceiros, um governo em que as ‘peças’ do tabuleiro eram participantes diretos ou indiretos. Terceiro, deveria ser poderoso – capaz de preservar a ordem sem a qual a aspiração da individualidade não seria possível; porém nem tão forte assim que constituísse um perigo para a própria individualidade”.

Contudo, essa evolução não ocorreu com a paz desejada. Esse tipo de transformação, mesmo que gradual, jamais eliminou o problema comum a qualquer ser humano, mesmo que ele seja um Uomo Singulare – a capacidade de fazer suas próprias escolhas. Na verdade, isto passou a ser um fardo. Para complicar, Oakeshott descreve que

“as velhas certezas em relação às crenças, às profissões e ao status estavam sendo dissolvidas, não somente para aqueles que estavam confiantes de seu próprio poder de erigir um novo lugar para si em uma associação de indivíduos, mas também para aqueles de temperamento mais pessimista. A contrapartida para o empreendedor, seja da cidade ou do campo, do século XVI, eram os trabalhadores desalojados; a contrapartida do libertine era o crente desiludido. As familiares pressões comunais eivadas de carinho foram dissolvidas em um mar de outras tensões – a emancipação que excitava alguns, deprimia outros. O anonimato familiar da vida comunal fora substituído pela identidade pessoal, a qual para alguns se tornara um fardo, uma vez que não logravam transformá-la em individualidade. O que uns viam como felicidade parecia a outros mais um desconforto. As mesmas condições de circunstância humana eram identificadas como progresso e como decadência. Em poucas palavras, a condição da Europa moderna, mesmo antes do século XVI, dera origem não somente a um personagem, mas a duas figuras antagônicas: além do indivíduo, agora temos também o ‘indivíduo manqué’. E esse ‘indivíduo manqué’ não era uma relíquia das eras antigas, e sim um produto da modernidade, o resíduo da mesma dissolução dos laços comunais que haviam dado à luz o indivíduo europeu moderno”. 

O indivíduo manqué, na definição de Oakeshott, era “uma combinação de debilidade, ignorância, timidez, pobreza ou azar” que mostra uma absoluta incapacidade de se adaptar a qualquer ambiente hostil. Sua única solução para resolver este impasse existencial foi a de procurar um “protetor que entendesse sua situação” – e que se tornou nada mais nada menos que o Estado, o qual jamais hesitou atender às necessidades do “indivíduo manqué”. No entanto, com essa aprovação absoluta da busca da individualidade como a única alternativa que restou na consciência moderna, o “peso dessa vitória moral despencou na cabeça do indivíduo manqué” que, a partir de agora, além de se ver “derrotado em casa, em seu próprio caráter”, acentuando ainda mais as dúvidas sobre “suas habilidades de aguentar a pressão na luta pela sobrevivência” e, como se não bastasse, termina em “uma radical falta de confiança em si mesmo”, na qual “o que era o desconforto de um fracasso se transformara na miséria da culpa”.

Assim, o “indivíduo manqué” passa a ter uma nova metamorfose – ora à resignação, ora à inveja e ao ressentimento, além de insistir no impulso de fugir a esta cruel situação, impondo-a ao resto da humanidade. É aqui que vemos a passagem do “indivíduo manqué” para o “anti-indivíduo”, um ser totalmente dominado por seus sentimentos ao invés de pensamentos, alguém disposto a assimilar tal definição sem se preocupar com a desintegração do seu próprio caráter, ao destronar o indivíduo que lhe deu origem e ao eliminar qualquer rastro do seu prestígio moral.

A partir de agora, nada pode frear esse “anti-indivíduo”, pois, além de reconhecer em si mesmo que “sua individualidade era tão pobre que nada seria o bastante para salvá-la”, ele também sabe que a única coisa que o movia “era unicamente a oportunidade de escapar da ansiedade de ter que ser um indivíduo, além da chance de extirpar do mundo tudo o que lhe convencia de sua falta de aptidão para tal. Sua situação o levou a buscar conforto em comunidades isoladas, insuladas das pressões morais da individualidade. Porém, a oportunidade que ele tanto procurava apareceu de verdade quando reconheceu que, ao invés de estar sozinho no mundo, ele pertencia à classe mais populosa da sociedade moderna na Europa, a classe que não tinha suas próprias escolhas a ser feitas” – o “anti-indivíduo” que enfim se torna uma única substância com a “massa” diagnosticada por Ortega y Gasset, aquele que “não pode ter amigos (porque amizade consiste na relação entre dois indivíduos), só camaradas”, pois ele obriga os outros a serem acolhidos somente se forem “uma réplica dele, impondo a todos uma uniformidade de crença e conduta que não deixa espaço nem para os prazeres nem para as angústias da escolha” (grifos meus).

Lasch se insere dentro desta linha de pensamento quando descobre o conceito da sua “revolta das elites”. Para ele, o intelectual, ao se descolar da realidade por meio da sua pleonexia, tornou-se uma espécie de “anti-indivíduo” que, unido aos seus semelhantes, destruiu o tecido social e provocou o que ele chama de “a traição da democracia”. Com isso, a única solução que lhe restou foi trocar o que era uma “comunidade” orgânica e verdadeira por um simulacro dela – e isso, na época de Lasch, aconteceu tanto com a academia tomada de assalto pelo pensamento de esquerda e como hoje em dia pelas redes sociais, com suas histéricas caixas de comentários, independentes dos espectros ideológicos.

É justamente por isso que Lasch propõe o populismo como uma forma de prática política que se opõe contra a tirania da intelligentsia – na qual esta última se concentra em uma espécie de “Catedral do conhecimento”, que pretende controlar todas as estâncias do saber, como as universidades, a imprensa, a cultura e as instituições governamentais. Trata-se de uma mentalidade totalitária, personificada por intelectuais que não se importam mais de libertar o ser humano por meio do aperfeiçoamento da luta interior, a mesma em que Behemot e Leviatã se confrontam nos subterrâneos da nossa alma, e sim de usarem a inteligência de cada um para a construção de um projeto de poder que domine e – mais – altere a natureza humana. Neste sentido, segundo Lasch, o populismo

é claramente preocupado com o princípio do respeito. […] Ele defende os costumes simples e o discurso simples e direto. Não fica impressionado por títulos e outros símbolos de elevada posição social, e não fica igualmente impressionado por alegações de superioridade moral feitas sob o nome dos oprimidos. Rejeita a “opção preferencial pelos pobres”, se isto significa tratá-los como vítimas indefesas das circunstâncias, absolvendo-os da responsabilidade ou desculpando-os de seus delitos na base de que a pobreza traz a presunção de inocência. O populismo é a voz autêntica da democracia. Afirma que os indivíduos detêm respeito por si mesmos até que provem que não possuem esse direito, mas também insiste que eles devem assumir a responsabilidade pelo que fazem. Reluta ao fazer alianças ou ter juízos fundamentados na ideia de que “a sociedade é culpada”. O populismo é “discriminatório”, para chamar um adjetivo comum no uso pejorativo de um termo que mostra a nossa capacidade de discriminar juízos enfraquecidos pelo clima moral da “preocupação” humanitária. (grifos meus) 

Contudo, esse sentimento de recuperação da responsabilidade política só pode surgir mediante uma terrível – e inusitada – perspectiva da mortalidade. Pois foi isso que aconteceu com Lasch. Apesar de uma visão marxista que ainda sobrevive nas primeiras páginas de ‘A Rebelião das Elites’, logo depois abandonada no decorrer do livro, e a predominância de um pragmatismo a lá John Dewey junto com uma concessão à langue de bois do politicamente correto ao falar da “humanidade” em abstrato (pontos muito bem identificados pelo autor de ‘O Imbecil Coletivo’ no texto), ainda assim a tese do sociólogo americano não pode ser desprezada por completo e ser utilizada como se fosse uma exceção que confirmaria a regra – no caso, a hegemonia de uma elite de esquerda que escravizou a consciência do povo brasileiro.

O argumento acima é um fato indiscutível – e não há como refutá-lo. Então, por que Olavo joga para baixo do tapete o argumento de Lasch, esquecendo-se deliberadamente que, entre outros exemplos, ‘A Rebelião’, no seu terço final, é uma das mais comoventes reflexões sobre a finitude, algo que compensa quaisquer outras falhas suas, com direito a ensaios brilhantes sobre a “abolição da vergonha” em um mundo destituído de transcendência, a invasão do corporativismo na educação universitária e, last but not least, a obra de Philip Rieff (um gigante que jamais foi um “ideólogo de segundo time” e que, aliás, seria citado no futuro pelo próprio Olavo no artigo “O Ocidente Islamizado”, escrito em 2007)?

Há a hipótese de que ler o testamento de um homem que está à beira da morte é sempre perturbador — mas isso jamais foi um problema para Olavo que, como bom filósofo, sabe que o método da sua vocação sempre teve como meta o encontro com a indesejada das gentes. Com isso, resta uma outra hipótese, menos perturbadora, é certo, mas igualmente inquietante: a de que o princípio político desvelado por Christopher Lasch iria contra a teoria de Olavo de Carvalho sobre o que significa o poder.

Poder espiritual
Na acepção de Olavo, em sua apostila “Ser e Poder” (1997-99), só existem três poderes neste mundo:

“produzir, destruir, conduzir. O primeiro é o poder econômico, o segundo o poder militar, o terceiro o poder espiritual. Roma consagrou-os, respectivamente, a Quirinus, Marte e Júpiter. Os três deuses defendem o homem contra as três ameaças fundamentais: a fome, a violência, o erro. O bem da sociedade depende inteiramente de que haja equilíbrio no culto que se consagra a essas divindades. O triangulo do poder tem de ser equilátero”. 

Cada poder tem um sujeito que o exerce e um objeto que é atingido por esta ação. “O objeto do poder econômico”, escreve Olavo, “são os bens de natureza material. O do poder militar, o corpo humano e suas ações. O do poder espiritual, as ideias, crenças e sentimentos”.

Já os sujeitos do poder se comportam ora numa modalidade ativa, ora numa modalidade passiva, “ou vertical ou horizontal”, e seus respectivos representantes seriam, no caso do poder econômico, os “capitalistas e trabalhadores”, no militar o exército e a justiça (“a nobreza de espada e a nobreza de toga”) e no espiritual seria a igreja, composta de “cultura e tradição”, sendo que a “primeira é ativa e vertical, porque busca criar novas crenças e submeter toda a sociedade às opiniões dos indivíduos criadores. A tradição é passiva e horizontal, porque busca estabilizar as crenças num sistema fixo nivelado pelos valores consagrados”.

Apesar da ordem da argumentação de Olavo apresentar esses níveis do poder como se fossem aparentemente hierárquicos – em primeiro lugar, o econômico, depois o militar, e por último o espiritual –, na verdade o seu raciocínio só tem coerência se entendermos que, na ordem do ser (a única realmente importante para um filósofo), é o poder do espírito que se sobrepõe a todos os outros.

Segundo essa perspectiva, as ideias teriam um poder ativo, que reside nos “criadores de bens culturais”, com a tendência de concentrá-lo, “a submeter as ações de muitos às ideias de uns poucos, a acelerar a mudança e a romper os hábitos estabelecidos”. Já no polo passivo, temos os homens de religião, que dispersam o poder, nivelam “o comportamento humano pela média dos valores tradicionais, a anular as diferenças entre homens notáveis e homens comuns, a estabilizar a ação social na rotina sacralizada”.

Em termos práticos, o poder só pode ser dividido (e formalizado) por meio de castas. De acordo com Olavo, “a casta sacerdotal divide-se em intelectualidade e clero; a casta nobre divide-se em nobreza de espada e nobreza de toga; a casta dos produtores divide-se em proprietários e trabalhadores”.

Reparem que, de repente, ele inverte a ordem de apresentação porque, aqui, o importante não é a classificação do sujeito e do objeto do poder, mas a sua efetividade nas castas. Uma não existe sem a outra, é claro, mas a casta é o que dá “funcionalidade” ao poder porque seu fascínio, por assim dizer, é não ter necessariamente “ocupantes fixos”: “os componentes da nobreza, destronados, podem compor uma casta capitalista ou uma intelectualidade. O trabalhador, em ascensão, pode ingressar na intelectualidade ou na nobreza. Massas inteiras podem ser deslocadas de uma função a outra. As funções permanecem fixas, os ocupantes ou permanecem ou mudam”.

De fato, Olavo permanece fiel ao seu princípio de sempre definir “o que é” (quid) alguma coisa. E o que é o poder, de acordo com a sua visão? Seria um conceito nuclear de uma “possibilidade de ação”, no sentido mais universal, e seria também “a possibilidade de determinar as ações alheias”, no sentido estrito da política. Mas, para ocorrer essa determinação de uma ação alheia, é fundamental que o sujeito tenha a capacidade de alterar não só as ideias de alguém, mas sobretudo os desejos desta mesma pessoa. Ora, não é por acaso que ele próprio define que “as ideologias são expressões dos desejos das várias castas” e, para dar um exemplo concreto deste tipo de metamorfose, Olavo cita os acontecimentos de duas revoluções – a Russa e a da “revolta das elites” que já tinha sido diagnosticada por Christopher Lasch:

“Na Revolução Russa de 1917, a intelectualidade, apoiada nos trabalhadores e na milícia, toma o poder, assumindo instantaneamente as funções de nobreza e de clero. A nova nobreza, uma vez constituída, absorve as funções da casta capitalista, o que pôde fazer com facilidade porque já estavam parcialmente absorvidos pela nobreza do antigo regime, num capitalismo de Estado. O marxismo surge como obra de cultura, mas, quando a intelectualidade que o criou sobe ao poder e se transforma em clero, ele adquire a forma de religião. 

Nos Estados Unidos, uma poderosa classe capitalista governa com o apoio do clero protestante, subjuga a nobreza, os trabalhadores e a intelectualidade. A intelectualidade e os trabalhadores, com o auxílio da nobreza de toga, contestam o poder. A intelectualidade, porém, conquista gradativamente o poder graças à inventividade técnica e ao domínio das informações, à medida que o capitalismo industrial cede a um lugar a um capitalismo de bens e serviços. Com a engenharia social, o poder centraliza-se, a eficiência do comando é aumentada, o Estado tende na direção socialdemocrática. Os capitalistas, sentindo-se alijados do poder, aliam-se aos trabalhadores e à milícia numa reação conservadora, dividindo a nobreza de toga”. 

Apesar de ter desprezado a tese de Lasch, Olavo não hesita de usá-la – além de querer forçar o fato de que a maioria desses eventos históricos foi inicialmente alterada por causa dos desejos de uma casta sacerdotal. Contudo, há uma apropriação de controle deste raciocínio – semelhante ao que foi feito ao conceito de “mundo como ideia”, concebido anteriormente por Bruno Tolentino –, além de uma curiosa inversão, perceptível somente nas entrelinhas. Se, em Lasch, a “revolta das elites” provocava a “traição da democracia” porque os seus integrantes eram os anti-indivíduos que se descolaram da realidade concreta, para Olavo é justamente a casta do espírito que fará essa restauração, sempre por meio da existência de alguém dotado de um “poder carismático”:

“[Este tipo de poder] não reside nos dons pessoais de um homem, mas no que os outros homens imaginam a respeito dele. O talento não reconhecido é um dom real, mas não um poder carismático. Para o exercício do poder carismático, pouco importa que os supostos dons daquele que exerce o poder sejam reais ou fictícios: se o povo imagina que um homem fala com Deus, vai segui-lo como a um profeta. Se um profeta fala com Deus, mas o povo não acredita nisto, ele não tem seguidores. O poder de fazer-se acreditar (retórica) é, no entanto, um poder carismático autêntico – concomitante ou não com outros poderes carismáticos, [como, por exemplo], César [que] tinha o dom da estratégia e o da retórica concomitantemente, [e] Cícero, [que só tinha] o da retórica”. (grifos meus) 

Em ‘A Rebelião das Elites’, Lasch expõe que a “moléstia democrática” surge exatamente por causa da petrificação moral da casta do espírito discutida por Olavo. O americano não nega, e muito menos despreza, a função sacerdotal do homem que vive a vida do intelecto. Contudo, o que ele critica com muita perspicácia – e é isto que Olavo parece não ter se dado conta em seu ensaio sobre o livro – é que a “tirania da intelligentsia”, o reino da pleonexia, se instala certamente no coração do intelectual dominado pelo pensamento de esquerda, mas o mesmo fenômeno ocorre com quem pretende realizar uma oposição simétrica a este tipo de hegemonia. Na leitura de ‘O Imbecil Coletivo’ como um todo, temos um programa de desinfecção deste tipo de vírus marxista, mas, ao mesmo tempo, dá-se a impressão de que Olavo quer substituir essa elite que perverteu a casta do espírito por uma outra elite que a colocaria em seu devido lugar na sociedade.

No fundo, apesar do seu diagnóstico em geral ser certeiro, o que Olavo propõe, na prática e no detalhe, é a famosa substituição de “seis por meia dúzia”. Ou seja: quando uma determinada elite pretende concentrar o seu poder, mesmo com a bela intenção de distribuir o conhecimento e a informação para o resto da sociedade, o resultado será inevitavelmente o oposto. Sobre este assunto, Michael Oakeshott, Friedrich Hayek e Michael Polanyi argumentam, com uma abundância de provas em suas respectivas obras, de que, numa sociedade realmente livre, o conhecimento só pode existir se for caótico, desorganizado, fragmentado e disperso, chegando a alguma coerência somente por meio de um processo decisório que venha “de baixo para cima”, jamais por meio de uma casta específica que seja liderada por alguém dotado de um “poder carismático” e que pretenda alterar os rumos de uma nação a longo prazo.

Porém, Olavo de Carvalho pensa o contrário – e aqui está a sua discordância central com o princípio descoberto por Christopher Lasch, apesar de utilizá-lo conforme a conveniência de “determinadas circunstâncias”. E, com isso, chegamos a um dos enigmas que este texto tenta responder: até que ponto o sujeito que procura, a todo custo, criar uma “verdadeira elite intelectual” para restaurar a “inteligência” do país, não abandona a luta interior, essencial para o árduo método filosófico, e assim deixa ser possuído pelo seu próprio “espectro da heresia”? É evidente que tal impasse é natural para um pensador que se arrisca demais e, por isso mesmo, também pode errar de maneira catastrófica. A questão que surge é saber se ele, como o filósofo que é, tem plena consciência disso.

Instabilidade do conhecimento
No perigo da agitação dissoluta da vida intelectual, é absolutamente comum um filósofo ambicioso que tenta superar os dilemas da Dama Filosofia – como é o caso exemplar de Olavo, se nos lembrarmos do problema apresentado inicialmente por Benedito Nunes – perder o prumo daquilo que é o seu filosofema. Por isso ele deve ter, antes de tudo, um método ao qual lhe dê um norte. É esta a função que cumpre a “dialética simbólica” na obra do autor de ‘O Jardim das Aflições’ – exposta em um ensaio de mesmo nome, escrito em 1985, publicado no mesmo ano no volume ‘Astros e Símbolos’ e relançado, praticamente sem alterações, em 2007 e em 2015 na reedição com o mesmo título, por duas editoras diferentes (É Realizações e Vide Editorial, respectivamente).

Estes dados são fundamentais porque mostra a importância capital deste escrito para Olavo, segundo suas próprias palavras no escrito “Esboço para um sistema de filosofia” (1997). O método da “dialética simbólica” é o que o orienta nos diversos campos da filosofia abordados durante a sua carreira – da metafísica à filosofia política, passando pela epistemologia e até mesmo a lógica – e, portanto, toda vez que alguém se sentir perdido quando contempla a complexidade de seu pensamento, esta pessoa deve sempre retornar ao texto que expõe tal caminho.

Olavo começa o seu raciocínio com a seguinte afirmação: apesar de existirem gradações da realidade quando passamos do “conceito abstrato de equilíbrio à tentativa de equilibrar alguma coisa real – por exemplo, quando aprendemos a andar de bicicleta –, verificamos que a nossa imagem de perfeita simetria se rompe no impacto de sucessivas desilusões: de fato, não existe equilíbrio perfeitamente estático em parte alguma do mundo sensível”.

Neste palco onde a instabilidade do conhecimento efetivo e seguro (a episteme filosófica) é a regra, não há equilíbrio ou simetria, além da nossa expressão dessa incerteza primordial ser extremamente falha. Contudo, ao passarmos “da ideia de equilíbrio estático à de equilíbrio dinâmico, isto é, do conceito abstrato à experiência concreta, e assim verificamos que o equilíbrio não é feito de simetria e equidistância, mas também de interação, de conflito e de reciprocidade entre os dois pólos, então estes já não são opostos, e sim complementares”.

Isto ocorre por causa da variável do tempo – ou, para sermos mais precisos, de um ponto de referência que permite-nos ver uma sucessão de acontecimentos. Este ponto é o próprio homem. É ele que consegue fazer naturalmente a passagem de um “primeiro raciocínio” que é o “raciocínio lógico-analítico – ou de identidade e diferença – e “[…] um segundo [que seria] o raciocínio dialético (no sentido hegeliano e não aristotélico do termo)”. Olavo detalha ainda mais essa distinção:

“Os que se imaginam hegelianos sempre acusaram a lógica de identidade de ser puramente estática, de visar antes a abstrações formais do que às coisas concretas, imersas no fio do tempo, submetidas a transformações incessantes. O raciocínio dialético pretende apreender o movimento, vital por assim dizer, das transformações reais no mundo dos fenômenos. A verdade, segundo este método, não está no conceito fixo dos entes isolados, mas no processo lógico-temporal que ao mesmo tempo os revela e os constitui. É o sentido da famosa fórmula de Hegel: ‘Wesen ist was gewesen ist’ – ‘A essência [de um ente] é aquilo em que [esse ente] se transformou’. Ou, em outros termos: ser é devir.” 

Para sair desse impasse da gradação entre os dois pólos, Olavo propõe uma terceira forma de pensar: a simbólica espiritual (termo retirado diretamente dos escritos de René Guénon), cujos emblemas maiores de complementação seriam o “Sol”, que representaria “a intelecção, a verdade”, e a Lua, considerada como símbolo da “mente, [do] pensamento, a imagem subjetiva da verdade” que, neste tipo de dialética, a verdade objetiva estaria “latente”, constituída no “espírito humano pelo processo do devir que a patenteia, que a veri-fica”. O importante é que esta gradação também marca uma “passagem de plano, uma subida de nível”, pois, ao “passarmos da oposição estática à complementaridade dinâmica, do raciocínio estático ao dialético, mudamos de posto de observação, e um novo sistema de relações se evidenciou no espetáculo de coisas”.

Para que essa “subida de nível” seja realmente eficaz, a dialética criticada por Olavo precisa perceber que se vê diante de um “trágico dilema”: ou opta “por um discurso interminável – o qual, não possuindo limites, deixa de ter conteúdo identificável, como bem o assinalaram os críticos neopositivistas de Hegel – ou determinar arbitrariamente, e irracionalmente portanto, um ponto final qualquer para o processo dialético”. Para não cair no mesmo erro de Hegel – que acreditou superar a filosofia e acabou morrendo logo depois, sem testemunhar a continuidade dela – há de se passar “acima da dialética, galgar mais um degrau, subir a um enfoque mais vasto e abrangente”.

O socorro para este impasse virá do “modelo celeste”, em que “todas as oposições – e todas as complementaridades, portanto – se fundam em algum traço comum, que se polariza inversamente num elemento e no outro”. Trata-se de um jogo sério que vai da “identidade à diferença e novamente à identidade [e que] só pode desenrolar-se perante um observador estático, firmemente instalado no seu posto de observação”.

Pode-se pensar, claro, no homem, ponto de referência entre os pólos do equilíbrio e da instabilidade, já que normalmente ele não tem como abandonar esse posto. Contudo, ele pode fazer algo pior: divagar em sua imaginação, “entre os espaços celestes”, caindo na “fantasia informe”. Para Olavo, o “antídoto a esse perigo é a astronomia: pela correta medição, o homem restabelece na sua representação a figura verdadeira dos céus, e já tem o apoio de um novo modelo intelectual – calcado, segundo Platão, na inteligência divina – para buscar um ponto de vista que lhe permita ultrapassar a dialética vulgar, penetrando no plano do que poderíamos denominar a dialética simbólica”.

A diferença fundamental entre essa dialética que se apresenta como um “novo modelo intelectual” e a “dialética vulgar” (no caso, a hegeliana) é que, se antes o fator “tempo” era importante, agora temos o elemento “espaço”, que complementaria “o modelo em que se apoiavam nossas representações e os modelos sensíveis das respectivas formas de raciocínio”. Para sedimentar tudo isso em um raciocínio coerente, Olavo afirma o seguinte:

“Podemos dizer que o ponto de vista dialético [comum] correspondia a uma observação meramente ‘agrícola’ dos céus: tudo quanto ele captava era a ideia de transformação e de ciclo. A dialética simbólica, agora, vai partir de um entendimento propriamente astronômico, e lançar-se à compreensão do entrelaçamento especial dos vários pontos de vista e dos vários ciclos que eles desvelam. 

Ora, se abandonamos o ponto de vista terrestre e levamos em consideração o sistema solar como um todo – isto é, o quadro maior de referências no qual se estatuem e se diferenciam os vários elementos em jogo –, verificamos que, na realidade, a Lua não está nem oposta ao Sol, como no raciocínio de identidade estática, nem coordenada a ele, como no raciocínio dialético, mas sim subordinada. Aliás, está até mesmo duplamente subordinada, por ser o satélite de um satélite. A Terra está para o Sol assim como a Lua está para a Terra. Formamos assim uma proporção, e aqui pela primeira vez atingimos um enfoque racional de pleno direito, desde que ‘razão’, ratio, não quer dizer originalmente nada mais que proporção. É a proporção entre nossas representações e a experiência, e entre os raciocínios e as representações, que assegura a racionalidade dos nossos pensamentos e, em última instância, a veracidade de nossas ideias”. 

Para manter a leitura dessa proporção em um rumo correto, Olavo apresenta uma “terceira modalidade” de raciocínio que resolveria os “aspectos parciais” da oposição e da complementação que alcançariam a sua proporcionalidade somente se fosse reabsorvidas em um princípio unitário que as constitui. Trata-se da analogia, algo que, segundo Olavo, está repleto de “equívocos” quando é debatido ou usado nos meios intelectuais porque “muitos autores acreditam que se trate da constatação da mera semelhança de formas” ou “uma forma primitiva e vagamente ‘poética’ de assimilação da realidade, distinguindo-se radicalmente da apreensão racional e lógica”.

Para quem se arrisca a praticar a dialética simbólica, deve-se ter muito cuidado para não aplicar a analogia como se ela fosse uma forma superior de raciocínio (o erro comum aos “astrólogos e ocultistas”) ou uma maneira depreciativa de valor cognitivo (como fazem os “filósofos acadêmicos”). Ela deve ser usada como uma “ferramenta sutil, de precisão”, jamais comprimindo “o macro no micro e [que] os empastele”, mas sim para manter a proporção nas diferenças, uma vez que este termo “dá a entender que se trata de uma relação em sentido ascendente”, para irmos do visível ao invisível e assim termos a apreensão correta da “essência espiritual”:

“Os dois objetos unidos por uma relação de analogia estão conectados por cima: é em seus aspectos superiores, e por eles, que os entes podem estar ‘em analogia’. Uma analogia é tanto mais evidente quanto mais nos afastamos da particularidade sensível para considerar os entes sob o aspecto da sua universalidade. Correlativamente, essa relação se desvanece quanto mais encaramos os entes por seus aspectos inferiores, pela sua fenomenalidade empírica, que é precisamente o plano onde, malgrado as altas pretensões que ostentam, se movem os astrólogos e ocultistas. 

O que estabelece uma analogia entre dois entes, portanto, não são as similitudes que apresentam no mesmo plano, mas o fato de que estão ligados a um mesmo princípio [que pode ser lógico, ontológico ou metafísico], que cada qual representa simbolicamente a seu próprio modo e nível de ser, e que, contendo em si um e outro, é forçosamente superior a ambos. É nesse nível de universalidade que se celebra no céu o liame de analogia que vai unindo, numa cadeia de símbolos, o ouro ao mel, o mel ao leão, o leão ao rei, o rei ao Sol, o Sol ao anjo, o anjo ao Logos. Visto desde cima, desde o princípio que os constitui, eles revelam a proporcionalidade entre as funções simbólicas que desempenham para a manifestação desse princípio, cada qual no nível cosmológico que lhe corresponde, e é essa proporcionalidade que constitui a analogia. Vistos desde baixo, desde a fenomenalidade empírica, eles se desmembram na multilateralidade das diferenças. Assim, a analogia é simultaneamente evidente e inapreensível; óbvia para uns, inconcebível para outros, conforme a unidade ou fragmentação das suas respectivas cosmovisões”. 

Na dialética simbólica proposta por Olavo, a analogia leva ao conhecimento do princípio que, de certa forma, já existia virtualmente dentro de nós. Aprisionados entre as fórmulas abstratas dos princípios universais e o empirismo “cego e tedioso” de uma experiência concreta descolada de uma verdade universal, precisaríamos dessa “escalada das analogias” para justamente transpormos esse “hiato”, sempre tendo como meta um “conhecimento vivido e concreto” deste mesmo princípio. A analogia e o simbolismo, por meio das ciências e técnicas espirituais que objetivam cristalizar e condensar a compreensão dos símbolos na nossa vivência subjetiva, ajudariam-nos a “transformar e alargar a psique individual de modo que ela mesma chegue a uma envergadura universal, a imagem do Homem universal [o protótipo da humanidade], que é compêndio e modelo do cosmos inteiro”.

Com isso, reencontraríamos o princípio da identidade, não como fórmula abstrata, mas como “realidade plena, como sentido de verdade e verdade do sentido, como unidade da verdade e do sentido. É somente assim que se estende o que a escolástica denominava universal concreto, síntese de universalidade lógica e de plenitude existencial”.

Tudo isso seria uma forma de reunificar não só o homem consigo mesmo, mas principalmente ajudar por completo no “reencontro com Deus”. Olavo se apoia aqui em Hugo de São Vítor para dizer que sua dialética simbólica significa também o “reencontro do homem exterior, ou carnal, com o homem interior, espiritual”, no qual a “faixa imaginária” entre o espírito e o corpo seria a “afecção imaginária”, a “imaginação mediadora”, e é onde se daria “o conhecimento das analogias e do simbolismo em geral, e é nela que se [daria] o reencontro da verdade universal com e na experiência concreta”.

Aqui, se não existir a escalada no mundo sem a ajuda da “afecção imaginária” e sem a dialética simbólica, Olavo escreve que “a mente humana estará sempre dividida entre o particular empírico e o geral abstrato, não podendo elevar-se ao conhecimento da universalidade infinita, que é, bem examinadas as coisas, a única realidade concreta da qual tudo o mais é aspecto ou fragmento só obtido mediante abstração”. Tal ascensão coincidirá com o instante em que “o sentido (conhecimento dos particulares em número indefinido, sem unidade) e o entendimento (conhecimento da unidade abstrata) [se unem com] a razão (conhecimento da unidade e da infinitude concretas) através da imaginação”, com o topo sendo a “afirmação [do princípio] da identidade” que, segundo Schelling, se o homem “conhecer o seu conteúdo”, terá finalmente “contemplado a Deus”.

Contudo, no mundo real, a “subida de nível” é apenas “o momento de reencontro” que dura pouco, muito pouco. Para recuperá-lo, Olavo sugere o seguinte complemento ao método:

“É preciso, portanto, descer novamente do princípio às suas manifestações particulares, e depois subir de novo, e assim por diante. De modo que a alternância sim/não, verdade/erro, que constitui para nós o início da investigação, é finalmente substituída, num giro de noventa graus, pela alternância alto-baixo, universal-particular. Passamos da oscilação horizontal para a vertical. E é justamente o despertar da capacidade de realizar em modo constante a subida e a descida, que constitui o objetivo de toda educação espiritual, sem a qual a perspectiva que nos é oferecida pela dialética simbólica se torna para nós apenas miragem. Compreendemos assim quanto é vão e pueril todo ensino da filosofia que permaneça no nível da pura discussão e não inclua uma disciplina da alma”. (grifos meus) 

Logo, se, para Olavo, a filosofia é um caminho que fortalece a disciplina da alma, ele precisa ter um extremo cuidado para saber se o método da dialética simbólica e se o raciocínio da analogia estão absolutamente corretos, pois as implicações no uso desses dois, se forem erradas, podem ser tremendas para a imaginação de cada um dos seus alunos. E, assim, chegamos à pergunta sobre se a analogia não seria capaz de cometer, como diria Jacques Bouveresse, tanto os seus “prodígios” e como as suas “vertigens” naquele que a pratica indiscriminadamente.

Símbolo

A analogia sempre foi a força e a fraqueza dessas visões de mundo que se baseiam nas correspondências proporcionais entre o que é inferior e o que é superior, o que é invisível e o que é visível, nesta busca obsessiva para compreender “as maravilhas da coisa una”. Não seria diferente com Olavo de Carvalho.

No ensaio “Especulações sobre alegoria e símbolo” (publicado no volume 8 da falecida revista Dicta&Contradicta), o professor Henrique Elfes explica pacientemente que, no território pantanoso da interpretação simbólica, existem dois tipos de religiões: as que são baseadas no “princípio da analogia” e as baseadas no “princípio da palavra”.

O primeiro tipo é a religião panteísta no sentido mais amplo do termo, pois identifica a substância mesma da realidade, a sua arché, com a própria substância divina. A divindade, por um processo necessário de emanação, daria origem a diversos níveis “concêntricos”, análogos entre si, de seres divinos ou espirituais, cada vez menos “reais” quanto mais longe se encontrem do centro; o nível mais baixo seria o deste mundo, o dos seres materiais, que já confina com o nada. Elfes escreve que “o número desses níveis concêntricos, e portanto das entidades ‘divinas’, depende do autor ou do sistema que estudemos: desde os três básicos de Plotino até as centenas do hinduísmo védico”.

Já o segundo tipo lida com as religiões consideradas monoteístas. Elas implicam uma total distinção entre o ser divino e o do universo e, se para as religiões analógicas, vale o princípio hindu “Enquanto Brahma sonha, os deuses são” – isto é, a relação entre Deus e o universo é semelhante à que existe entre um homem e os personagens que sonha –, para as religiões da palavra essa relação é semelhante à que existe entre um artesão ou um artista e a sua obra. Ou seja, segundo Elfes, “Deus não emana o mundo espiritual e material por um processo necessário, mas o cria por um processo racional e livre”.

Tendo essa distinção fundamental em mente, podemos então entender um pouco melhor a ambiguidade de se aplicar a analogia como uma forma de pensamento para compreender corretamente o mundo como ele é e não o “mundo como ideia”. Elfes articula, junto com as reflexões de Mircea Eliade, o modo como, nesse princípio, cada nível inferior é um microcosmo que reflete analogicamente (por semelhança = “é tal como…”) aqueles que lhe são superiores, isto é, o macrocosmo. Assim,

“o microcosmo formado dentro da alma humana reflete o macrocosmo do universo material e do universo espiritual (o Uno e os deuses); o universo material por sua vez é um microcosmo que reflete o macrocosmo espiritual, e assim por diante. Como todos os níveis e todos os seres estão ligados entre si de maneira analógica, todos – exceto o ser original, divino – são apenas símbolos de outros símbolos, reflexões de outras reflexões um pouco ‘mais reais’. Toda a realidade dissolve-se em irrealidade – o mundo passa a ser apenas maya, ‘a ilusão’ –, e caímos naquilo que Guimarães Rosa descreve como ‘essa série de símbolos que é esta nossa outra vida de aquém-túmulo’”. 

Até aí, nada diferente do que Olavo também descreve como analogia em sua dialética simbólica. Contudo, Elfes traz à tona uma sutil diferença:

“[Em outras palavras:] afora o ser divino, em última análise não há seres reais. A realidade divina é a única realidade, e todas as coisas – deuses, homens e seres materiais são como que ondas passageiras, menos ainda, reflexos dançantes na superfície do mar da divindade. Como a analogia permite vincular tudo com tudo, tudo acaba simbolizando tudo, ou seja, no fim das contas tudo não significa nada. Se se leva adiante essa linha de pensamento, até a realidade divina acabará por identificar-se com o nada, como acontece no budismo Mahayana, para quem o fundo original do ser é sunyata, ‘o vazio’”. (grifos meus) 

Em termos práticos, a analogia converte o próprio homem em um símbolo, tornando-o algo extremamente abstrato e, por isso mesmo, consegue aglutinar diversos grupos aparentemente díspares em suas linhas-mestres, como, segundo a lista feita por Elfes,

“o hinduísmo e a sua versão ‘reformada’, o budismo; o taoísmo tardio; os diversos politeísmos, grego, celta, latino, germânico, e tantos outros; a cabala e os gnosticismos apocalípticos hebraicos; os diversos gnosticismos cristãos, de Marcião no século II em diante; o zoroastrismo persa e seus derivados, como o gnosticismo maniqueu a que Santo Agostinho aderiu brevemente no século IV; o catarismo dos séculos XII-XIII; a alquimia, como podemos comprovar ainda nos séculos XVII-XVIII, pelos escritos de Isaac Newton; os diversos esoterismos dos séculos XVI-XIX, como os rosa-cruzes, maçons e tantos outros; o espiritualismo anglossaxônico e o espiritismo francês, nos séculos XIX-XX; as diversas correntes e grupos New Age; e igualmente um certo tradicionalismo à René Guénon”. 

Ora, é justamente esse último grupo do qual faz parte, direta ou indiretamente, queira ou não queira, a dialética simbólica de Olavo de Carvalho. Elfes comenta que uma das consequências desse tipo de pensamento é que

“nessas religiões [de analogia] ocorre secretamente um assassinato, o do princípio da não contradição [chamado por Olavo de “princípio da identidade”] (porque Deus teria de ser ao mesmo tempo bom em si mesmo e mau em [outro sujeito] e em mim; lógico nas regularidades do mundo e ilógico na arbitrariedade a que está submetida a vida humana; real em si mesmo e irreal no mundo, etc.). Ora, o princípio da não contradição é a base da lógica; em consequência, a razão é inaplicável nesses sistemas religiosos, e muitas vezes (como no budismo Zen) chega a ser considerada prejudicial, pois acorrentaria à ilusão. Torna-se então necessário recorrer a uma ‘sabedoria superior’, geralmente esotérica – reservada aos iniciados, aos espíritos superiores, aos iluminados – que venha a fazer a coincidentia oppositorium, a ‘harmonização dos opostos’”. (grifos meus) 

É neste ponto que as visões sobre simbólica religiosa de Olavo e de Elfes entram em choque. O primeiro acredita que sua dialética fundamenta e esclarece o princípio da identidade; o segundo afirma que este tipo de pensamento assassina secretamente a base da lógica e da boa racionalidade. Quem estaria certo? Na verdade, ambos têm razão neste ponto – o que torna evidente um irônico paradoxo, pois eliminaria de vez o princípio da não contradição nos dois raciocínios.

Porém, Elfes percebe indiretamente a solução deste impasse ao relembrar a “noção de criação”, típica das religiões baseadas no “princípio da palavra”. Ela traria uma “dupla realidade: a divina, fontal e absoluta, e a criada, que é reflexa e relativa. Ambas são, porém, reais – e assim impede-se o perigo de dissolver o mundo em uma sinfonia de símbolos sem entidade. Há sem dúvida um aspecto analógico na realidade criada, mas é uma analogia mais complexa, menos direta do que no caso das religiões analógicas”.

O importante, para Elfes, é destacar que existem dois tipos de analogia quando a noção de criação passa a ser o eixo central de orientação neste debate intrincado:

“Nas [religiões analógicas], um espírito ou uma divindade é mais perfeito na medida em que está mais próximo de Deus, e a situação do homem se define por estar ‘entre’ o não ser da matéria e o ser da divindade; o homem não tem a rigor uma natureza, um ser próprio, mas apenas uma condição reflexa e de intermediariedade, puramente analógica. Nas religiões da palavra, pelo contrário, cada ser é tanto mais perfeito quanto melhor expressar a sua natureza peculiar e própria, que por sua vez reflete indiretamente a Deus na medida em que corresponde por assim dizer a um pensamento, a um projeto seu: a analogia, na falta de uma palavra melhor, é ‘indireta’, ao passo que nos panteísmos é ‘direta’. 

Em consequência, há nos monoteísmos uma perfeição natural do ser humano, uma vida correta (como descrita, por exemplo, na ‘Ética a Nicômaco’ de Aristóteles), que consiste na realização das potencialidades racionais da natureza humana (para o cristão, há uma ‘segunda’ perfeição, a da santidade, que une o homem a Deus pelo amor em seu Filho, o Verbo encarnado; esta segunda perfeição apoia-se sobre a primeira, sem a anular).” (grifos meus) 

Essa encarnação de Deus em um homem concreto é o que possibilita o “nervo vital”, a “carnatura viva da linguagem” em que o significado e o significante se unem indissociáveis na “lição de modelagem” poetizada por Bruno Tolentino – e é o que leva Elfes ir além do seu raciocínio e afirmar sem hesitação que, em vez de ser chamada da “religião da palavra”, o mais correto é chamá-la de “religião do logos”.

Para Elfes, Logos, aqui, tem um sentido muito mais amplo do que o termo português ou até do que o latino verbum: significa não apenas “palavra” e “verbo” (a palavra por excelência), mas sobretudo “conceito” (a palavra na mente), “razão”, “proporcionalidade”, “estruturação lógica” interna do real, “verdade”. A religião que o aceita também acolhe a crítica grega, liderada por Platão no livro X da Politeia, de que o logos deve guiar o mito (mythos) – e apesar do discípulo favorito de Sócrates não se desfazer completamente do princípio da analogia, este último retorna no cristianismo (a religião do logos por excelência) com rédea curta, principalmente pelas mãos do Pseudo-Dionísio Aeropagita, um místico platônico cristão dos séculos V e VI, que recuperou a tendência a interpretar a realidade como simbólica, sem negar que tenha sido criada (sobre este assunto, veja o primeiro artigo desta série publicada na Gazeta do Povo).

Elfes argumenta que a noção da criação esconde uma revolução não apenas no modo de ler os escritos que fundamentam as bases metafísicas da religião do logos (no caso, as Escrituras), mas também de ler o próprio mundo em que habitamos. Ela restabelece

“o sentido literal ou natural do mundo real, o das essências ou naturezas das coisas, que serve de ‘âncora’ necessária para quaisquer interpretações alegóricas. Fundam, assim, o modo propriamente moderno de ver o mundo: a realidade é primariamente racional, e apenas secundariamente analógica. A analogia, a imaginação estará doravante a serviço da exposição da racionalidade, da qual será um instrumento precioso e até necessário […]. 

Esse novo modo de leitura do real tem consequências radicais, isto é, que chegam às raízes de todo o nosso modo de ver o mundo. Como vimos há pouco, na visão do platonismo [defendido pelo Pseudo-Dionisio], como praticamente não há ser em si, a perfeição do homem consiste na sua proximidade com o ser divino, na santidade, que é puro dom divino; na visão aristotélico-tomista, a perfeição de cada ser consiste primariamente na perfeição com que expressa a sua natureza, isto é, nas virtudes que adquire, enquanto a santidade propriamente dita apoia-se sobre as virtudes e opera também através delas. 

Essa nova visão do mundo é também o que permite o progressivo desvinculamento da política e da religião, até se chegar à atual e altamente desejável separação entre Igreja e Estado; a explosão da filosofia medieval, que passa a ser independente da teologia e por isso está livre para estudar o mundo; e o nascimento das ciências a partir do século XII, primeiro de uma física hesitante que ainda tinha de livrar-se das cascas do ovo, isto é da Física aristotélica (mas não da Lógica nem da Metafísica), e depois de todas as outras”. 

A longa análise de Henrique Elfes sobre o uso da analogia serve para entendermos melhor que a dialética simbólica – o método fundamental da filosofia de Olavo de Carvalho – pode cair no mesmo perigo de se exceder tanto nos seus “prodígios” como nas suas “vertigens”, em especial quando ela é aplicada na leitura objetiva do mundo. Afinal, Jacques Bouveresse – um filósofo que não é nem um acadêmico, muito menos um inveterado por disciplinas esotéricas – já nos avisa que a analogia torna-se um procedimento duvidoso, principalmente quando este método “repousa sobre dois princípios simples e particularmente eficazes nos meios literários e filosóficos: (1) destacar sistematicamente as semelhanças mais superficiais, apresentando isso como uma descoberta revolucionária; (2) ignorar de modo igualmente sistemático as profundas diferenças, exibindo-as como detalhes insignificantes que só podem interessar e impressionar os espíritos pontilhosos, mesquinhos e pusilânimes”. (grifos meus)

Reforma do ser humano
Os usos e abusos da analogia, não só como fundamento das religiões baseadas nelas, mas também na lógica interna do sistema filosófico esboçado por Olavo de Carvalho, são resultado da excessiva preferência que o filósofo brasileiro atribui ao intelecto como forma de compreender – e ler – a estrutura da realidade. Em um ensaio intitulado justamente “O valor do intelecto”, escrito e publicado em 1985, praticamente na mesma época em que publicou a primeira versão de “A Dialética Simbólica”, ele escreve que “a depreciação do intelecto, mesmo feita em nome de supostos ‘meios superiores’ de conhecimento, é […] anti-espiritual em sua essência”.

Mesmo tendo elaborado este raciocínio na época em que fazia parte de tariqas islâmicas (inspiradas por Frithjof Schuon), ainda assim, se aplicarmos o filosofema que dá unidade aos seus argumentos, a afirmação de Olavo não perde a sua validade. Esse desprezo do intelecto, segundo ele, seria inspirado “pelo apego à imaginação e à sensorialidade, funções que, uma vez reprimido ou entorpecido o intelecto, exercem um poderio sem freio sobre o homem, revestindo-se inclusive da autoridade que pertence exclusivamente ao intelecto e pretendendo ditar ‘verdades’ cuja confusão mesma já basta para caracterizá-las como mentiras ou desvarios”.

Por coincidência, é o mesmo argumento, resumido agora em uma frase, que Olavo articula para se certificar que Bruno Tolentino, no poema “O Espectro”, se aproximava perigosamente do “satanismo”. Contudo, isso não o leva a também desprezar a fé, pelo menos segundo a sua visão de que ela significa, em latim, fides, que

“tem a acepção de ‘fidelidade’, de ‘constância’ e de ‘confiabilidade’, nada permitindo interpretá-la no sentido de uma adesão irracional a crenças insensatas ou incertas. A virtude da fé significa que o homem, uma vez tendo aprendido pela razão e pela evidência uma verdade, permanecerá fiel a ela, mesmo quando sua imaginação, seus sentimentos ou sua vontade – para não falar de fatores coercitivos meramente externos, como a opinião grupal ou a pressão das circunstâncias – o inclinarem em sentido oposto. Dentro do campo cristão, a concepção não é diferente, desde que a teologia escolástica, com Santo Tomás de Aquino à frente, declara que a fé não é uma atitude de sentimentos – e muito menos de algum impulso obscuro, inexplicável e ‘subconsciente’ – porém uma decisão do intelecto e da Vontade. No mundo judaico, o valor do intelecto e do pensamento é afirmado com sinal de soberania intelectual e moral da pessoa humana, e atestado, entre outros fatos, pelo amor que o povo judeu dedica aos livros e à arte do debate, que é fundamental para a manutenção da ‘Torah vivente’”. 

Olavo também não minimiza as experiências místicas, sejam as cristãs ou as muçulmanas. Pelo contrário: ele reforça que essas expressões “que proclamam sua fé acima e independentemente de motivos racionais, não podem ser desonestamente empregadas para justificar o ataque ao intelecto, pois expressam apenas, em modo hiperbólico, a fidelidade do crente à verdade apreendida, mesmo acima e independentemente dos meios da descoberta e prova que a ela conduziram e que a sustentem no campo do pensamento discursivo”. (grifos meus)

Apesar do “modo hiperbólico” de como essas verdades são expressas, Olavo deixa claro que “o sentido dessas expressões” mostra como a “verdade”,

“mesmo imperfeitamente apreendida, vale mais do que um erro, mesmo fundado em razões aparentemente lógicas: mais vale crer numa verdade que não se sabe provar do que deixar-se enganar por falsas provas. O próprio estilo hiperbólico de tais declarações evidencia que eles veiculam hipóteses extremadas, que tomadas ao pé da letra ou em modo plano resultariam no absurdo puro e simples”. 

O intelecto – e não a realidade em si – faz o ser humano ficar obediente à verdade revelada. Quando a realidade se apresenta de forma incontornável, o intelecto organiza os dados em uma linguagem falha, mas capaz de orientar aquele que estava perdido na selva dos sentidos, principalmente por meio de rituais e regras comportamentais. O que causa confusão é o que acontece quando o intelecto “pode efetivamente corromper-se e falhar”, pois, se por um lado, “a verdade apreendida pelo pensamento não permanece”, por outro ela “some quando o homem para de pensar no assunto, e pode, portanto, ser esquecida”. A resposta para este dilema, segundo Olavo, é

“a necessidade da prática religiosa e mística que consolide no próprio modo de ser da pessoa a posse da verdade percebida. Este é o sentido, aliás, do termo latino hábito, que vem do verbo habere, ‘possuir’. Não basta apreender a verdade pelo pensamento, é preciso transformá-la num hábito ou posse permanente, e que só se obtêm pela remoção das distrações e pela concentração do intelecto. A concentração, como é óbvio, intensifica a atividade do intelecto, e nunca a suprime a pretexto de desenvolver supostas ‘faculdades superiores’. O termo ‘visão interior’ utilizado por todos os místicos, refere-se ao estado de evidência permanente que é alcançado pelo intelecto, e que nunca poderia ser alcançado pelo seu mero exercício esporádico e intermitente, e sim somente pela prática voluntária e regular. 

Por outro lado, a possibilidade da corrupção não decorre de alguma falha constitutiva do próprio intelecto, mas do simples fato de que pensar é simultaneamente um ato lógico (portanto ontológico) e um ato psicológico (portanto biológico), respondendo simultaneamente, de uma parte, às exigências constitutivas da verdade e, de outra parte, às contingências e demandas do corpo em sua instabilidade e flutuação cíclica. Quando o pensamento é fiel à sua missão, quando ele se atém à universalidade lógica que reflete a permanência e a universalidade do ser, ele é o ‘intelecto são’ que conduz o homem à verdade. Quando, ao contrário, ele se deixa envolver pelas funções inferiores e se torna escravo da imaginação e dos desejos, ele mergulha na obscuridade subjetiva dos impulsos biológicos, e é o ‘intelecto doente’ que encerra o homem na prisão da mentira e da ilusão”. (grifos meus) 

O Olavo de “O Valor do Intelecto” será rastreado em trilhas futuras, como já percebemos nas análises de sua autoria sobre as obras de Bruno Tolentino e de Christopher Lasch.

Mas aqui já o encontramos cristalizado quando ele afirma que uma verdadeira “via espiritual” jamais acontecerá de fato se o sujeito que evitar de praticá-la restringir ou desestimule “a ação do intelecto”, excitando assim a “imaginação (mediante histórias, mediante situações incongruentes, mediante uma sucessão de estímulos desencontrados)”.

Ao mesmo tempo, se continuar nesse rumo, “ele dará livre curso aos desejos e [abolirá] qualquer regra moral explícita”, concorrendo “unicamente para a sujeição do intelecto às paixões, e portanto para a eclosão da ‘rebelião’ que fará do intelecto doente e mundanizado um tirano a serviço do ego subjetivo”, no rebaixamento do “homem a um nível inferior ao do animal, ao mesmo tempo que lhe dá a trágica ilusão de estar ‘evoluindo espiritualmente’”.

O que Olavo de Carvalho propõe neste trecho, in nuce, é um programa de reforma intelectual, moral e espiritual do ser humano que, se não é a reforma racionalista moderna elaborada pelos “mestres da suspeita” (como são conhecidos Descartes, Spinoza, Marx, Freud ou até mesmo Foucault), trata-se também de um racionalismo perenialista, cuja simbólica religiosa transforma o homem em algo abstrato, análogo ao macrocosmo, sem qualquer espécie de “nervo vital” que faça a conexão imprescindível entre o que percebermos ser o “mundo como ele é” e o que pensamos ser “o mundo como ideia”.

Na verdade, apesar da disparidade de tradições filosóficas – dos “libertinos” renascentistas (aqui sem nenhuma conotação sexual), passando pelo racionalismo filosófico cartesiano, até os iluminismos francês, alemão e até mesmo o inglês (na verdade, os inimigos reais contra os quais o perenialismo adaptado por Olavo investe com todas as suas forças) –, todas elas podem se convergir, principalmente após o Renascimento e o surgimento do “anti-indivíduo”, naquela tentação, típica do intelecto que esconde o pecado original que mora na sua raiz, da razão ser “a única potência capaz de responder a todas as questões humanas”, segundo as palavras de Henrique Elfes.

Se olharmos tudo o que foi minuciosamente discutido neste texto sob este prisma, esse “racionalismo unilateral” apresenta ser uma “salvação pela filosofia”, privilegiando, ainda de acordo com Elfes,

“o conhecimento adquirido em guetos de especialistas e protege-o com uma linguagem hermética; destrói a educação da emotividade que era feita pelos ritos, e portanto a imaginação criadora dos símbolos; e relega a vontade ao papel de puro imperativo categórico irracional. 

[…] [Existem vários exemplos deste tipo de racionalismo na história das ideias, entre eles,] o idealismo alemão com o seu Geist (‘Espírito’) que evoluiu dialeticamente em uma série de passos necessárias (níveis concêntricos) até encontrar a forma suprema no… Estado prussiano! Ou a sua progênie materialista, o marxismo e os seus descendentes, que dotam a matéria de atributos divinos (autocriação, autoestruturação, totipotência, etc.) Vão na mesma linha o nacional-socialismo (que diviniza a raça) e o liberal-pragmatismo (idem, a liberdade). Há também o positivismo de Comte (‘religião da humanidade’…), o darwinismo popular (não o de Darwin, mas o de Huxley e Haeckel), o freudismo e sua prole, e o cientificismo atual, à Dawkins, prostrado em adoração perante o acaso criador e o seu profeta, o gene egoísta. Diante deste panorama, só se pode constatar que não há nada mais irracional que o racionalismo”. 

Os exemplos descritos acima e o comportamento considerado racionalista formam uma atitude muito peculiar, que foi antevista por Michael Oakeshott em um clássico ensaio, intitulado “Racionalismo na Política”. Seu diagnóstico é de que a ação política predominante no mundo ocidental, em especial o europeu, possui uma raiz redutora nas suas ações, incapaz de aceitar a “capacidade negativa” da existência, tendo uma “disposição mental de contornos gnósticos”.

Assim, a mente de um sujeito que pratica exaustivamente este tipo de racionalismo – que, na verdade, é uma perversão da faculdade de pensar, como já vimos – “não tem atmosfera, mudança de estação e temperatura; seus processos intelectuais, até onde é possível, são insulados de qualquer influência externa e funcionam no vazio”. Seu comportamento habitual é “apontar o dedo para a humanidade”, vendo os tormentos da nossa condição apenas como “uma questão de resolver problemas, e ninguém pode pleitear ser bem-sucedido nessa tarefa se sua ‘razão’ for inflexível devido à rendição ao hábito ou se estiver anuviada por efeito das fumaças da tradição”. A “política racionalista” dos nossos dias, se podemos chamá-la assim, é uma extensão da “engenharia”, uma “política da perfeição e da uniformidade”, na qual a “erradicação” de qualquer falha, lacuna ou pessoa descontente torna-se a primeira regra do seu credo, dominando a mente. O que sobra, portanto, é “uma compreensível utopia”, um “perfeccionismo nos detalhes” e um completo desprezo pela dinâmica imprevisível da conduta humana.

Esse desprezo é traduzido no fato de que a tal da “salvação pela filosofia”, que se tornou a raiz para uma inimizade mortal contra o cristianismo, recusa-se a entender que o centro desta “religião do logos” é, conforme a observação perspicaz de Elfes, “o conceito de pessoa”, e isto “instaura na história coletiva e individual a tendência para centrar tudo na pessoa plena, foco de dignidade, de direitos e deveres, e repleta de interioridade”.

Ilusão do conhecimento
Ora, o Curso Online de Filosofia, a grande obra de Olavo de Carvalho – originada em 2009, depois que o filósofo se mudou definitivamente para o seu auto-exílio nos Estados Unidos, cinco anos antes – é nada mais, nada menos que a culminação de todo esse processo de “salvação pela filosofia” – e é também a prova derradeira daquele famoso princípio existencial que foi articulado uma vez pelo historiador americano Daniel J. Boorstin: “O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão do conhecimento”.

Se quisermos entender isso, é fundamental descobrirmos, por meio de uma rápida análise dos temas e da estrutura do COF, qual é a verdadeira unidade do conhecimento na unidade da consciência que Olavo tanto defende nas suas aulas e nos seus escritos. E para isso é importantíssimo perceber, logo de antemão, o eixo sobre o qual todo o curso se estrutura: o da confissão.

A confissão, para Olavo, é aquele momento em que o aluno do COF está disposto a mostrar a sua alma com absoluta sinceridade, sem as suas máscaras sociais, sem os maneirismos e, o mais importante, sem os tiques verbais impostos por uma existência histórica na qual todos vivem em um mundo culturalmente devastado, cujas maiores representações disso são as universidades (em especial, a USP) e a grande mídia.

Em termos práticos, o estudante entrega a sua interioridade graças ao exercício do necrológio, no qual o pupilo se predispõe a escrever sua vida como se estivesse diante dos olhos de Deus. A predisposição de abrir o coração logo no início do curso já é o indício de uma mudança de sensibilidade que o COF pretende fazer não só na vida intelectual do aluno, mas sobretudo na imaginação dele.

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Servindo como contraponto à terra estéril da cultura brasileira, Olavo se apresenta como o filósofo que vai reeducar e restaurar a sua “imaginação mediadora”, desde que o pupilo entenda que existem certas regras a serem obedecidas. A primeira delas é entender que o professor é o responsável por determinar a duração do curso. O COF (são aproximadamente cinco mil alunos) pode ou não pode durar cerca de cinco anos. Quem dirá o prazo é ninguém menos que o próprio Olavo, o qual, inspirado no modelo de ninguém menos que Sócrates como exemplo para o método filosófico, será o centro de uma nova comunidade de amigos que sairão do “obscurantismo moderno” e que têm o compromisso de recuperar a “alta cultura no Brasil”.

Só assim o aluno pode iniciar aquilo que Olavo chama de “seriedade moral na busca filosófica”, que, além das leituras especificamente literárias (para treinar a expressão e a capacidade linguísticas), existem também as leituras filosóficas, em conjunto com exercícios de meditação que reforçam o hábito do intelecto e fazem os alunos perceberem que há uma aceitação total e completa da realidade objetiva. Como se não bastasse, Olavo sugere que cada aluno faça um “voto de abstinência em matéria de opinião”, pois, somente após muitos anos de estudo, só o participante dessa comunidade de estudiosos saberá se essas mesmas opiniões podem mudar o atual estado de coisas.

Entre os diversos exercícios que ajudam a exercitar o intelecto está o da “presença do universo”. Consiste – segundo a transcrição de uma das aulas, feita pelo português Mario Chainho, um dos alunos mais fiéis do COF, a ser usado como fonte na apresentação feita aqui – em ir para

“um lugar descampado, sem ninguém, deitar, sentir a densidade da terra por baixo e a infinitude do céu em cima. E vamos perceber que estamos ali realmente, sem a nossa rede de contatos sociais, sem o nosso universo linguístico. Este exercício visa a tomarmos a consciência não-verbal da nossa presença física no universo ilimitado e a desenvolvermos o senso da presença maciça da realidade, face à qual os nossos pensamentos não podem absolutamente nada. Não é um exercício de sensibilização para sentir mais coisas no corpo, é deixar que a realidade inteira da situação se manifeste, incluindo o nosso corpo e os nossos pensamentos, em que cada coisa terá o seu modo de presença. Por maior que seja o universo, ele não nos chega como um caos, mas surge terrivelmente organizado, tudo com uma certa perspectiva (visual, sonora, táctil). Trata-se de aceitar a realidade e não ir atrás dela”. 

Tudo leva a crer que esta tarefa é uma forma de percebermos o espanto do real, o thambos do qual tanto fala Aristóteles em sua ‘Metafísica’, mas, na verdade, é uma síntese da aplicação precisa do que foi defendido em “O Valor do Intelecto” e também em “A Dialética Simbólica”. Aqui, o método de aprendizado é articulado em um movimento vertical, cujo ritmo constante de “descer novamente do princípio às suas manifestações particulares, e depois subir de novo, e assim por diante”, revela “o despertar da capacidade de realizar em modo constante a subida e a descida, que constitui o objetivo de toda educação espiritual”.

Com esses fundamentos bem sedimentados, Olavo passa a fazer um diagnóstico implacável da corrupção da inteligência que contaminou não só o Brasil como também o resto do mundo. O inimigo, no caso, é o globalismo, a religião instrumentalizada que “desumanizou a pessoa” e “destruiu o conhecimento” da tradição sagrada, acentuando a força do cientificismo no cotidiano da humanidade, além de aprofundar como nunca o segredo em torno do núcleo de quem comanda o poder. Para o filósofo (sempre segundo a transcrição de Chainho),

“o movimento globalista pretende antever como deve ser o futuro, onde naturalmente os globalistas assumirão o controle ‘humano’ da Natureza e a centralização do poder, o que, por sua vez, aumenta o momento do movimento. Os liberais que se opõem à centralização de poder dentro das nações apoiam o comércio internacional e outras iniciativas cujo efeito é a criação de poderes à escala global. Eles são um exemplo daquilo que é não ter um ponto de vista suficientemente amplo para entender a situação global, porque adotam a perspectiva econômica, claramente insuficientemente, tal como é insuficiente o enfoque marxista”. 

Portanto, os alunos do Curso Online de Filosofia têm um “papel interventor” para impedir tal situação, pois

“devem ter sempre presente o senso da miséria do ambiente à sua volta, e ter a noção de que é melhor ficar no vazio e sem referências por algum tempo do que recorrer a alguma referência local para parecer igual aos outros ou para parecer dotado de comunicabilidade (algo que não existe realmente hoje em dia). Então, não há que ambicionar ter um papel na cultura brasileira com o intuito de participar na conversa no nível que ela tem hoje. É preciso criar outras funções, inventar novos meios de atuação; não temos que nos amoldar em nada ao presente estado de coisas. Não devemos tentar fazer algo que seja compreendido pelo presente meio acadêmico, mas fazer coisas que só serão realmente compreendidas por pessoas como nós, que existirão no futuro. Podemos intervir pontualmente no debate atual, para denunciar certas pessoas, mas a preocupação fundamental é criar um outro debate acima deste, que irá se sobrepor ao atual e, pelo seu peso, fará este ceder. Para melhorar substancialmente o presente debate, teria de haver nele uma raiz do que é bom, mas esta condição não se cumpre. O ambiente em que vivemos não está apenas corrompido, ele é também corruptor. 

O trabalho que os alunos virão a realizar poderá inspirar a futura classe política (esta é uma das suas funções dos alunos em alguma medida), mas é preciso distinguir a função intelectual da função política, incluindo a do mero debatedor de ideias. 

A esquerda sempre soube disto: os seus intelectuais não procuravam convencer as massas, mas preocupavam-se em gerar as possibilidades de uma política”. (grifos meus) 

Não há como negar que, ao lermos este trecho, Olavo pretende fazer com o COF o que esboçou nos seus escritos sobre “Ser e Poder” e na apostila “Inteligência e Verdade”: a criação de uma casta espiritual-intelectual que, mais do que ser uma elite (como imaginava nos distantes anos 1990 no antigo Seminário de Filosofia), influenciará os rumos da nação no longo prazo, uma vez que ele espera a existência de uma comunidade a surgir somente em um futuro indistinto.

Apesar de parecer um reacionário, Olavo faz parte de uma tendência contemporânea (e imperceptível aos olhos dos outros analistas) nos estudos políticos que, junto com o Nobel da Economia Richard Thaler, são uma fusão inusitada do “Racionalismo na Política” denunciado por Oakeshott, e da “mente naufragada” descrita a seguir por Mark Lilla. Trata-se da imaginação distorcida de alguém que se vê em um meio “onde os outros veem o rio do tempo fluindo como sempre fluiu”, a enxergar “os destroços do paraíso passando à deriva”. O aluno do COF (e, obviamente, seu professor) “é um exilado do tempo”, em que, se “o revolucionário vê o futuro radioso que os outros não são capazes de ver”, e com isto se exalta, “o reacionário, imune às mentiras modernas, vê o passado em todo o seu esplendor, e também se sente exaltado. Sente-se em mais forte posição que o adversário por se julgar guardião do que de fato aconteceu, e não profeta do que poderia ser. Isso explica o desespero estranhamente arrebatador que permeia a literatura reacionária, seu palpável senso de missão […]. A combatividade da sua nostalgia é o que torna o reacionário uma figura tipicamente moderna, e não tradicional”.

Este “exílio do tempo presente” estimula a nostalgia de um tempo que ninguém viveu porque, na prática, ninguém sabe como é ou como foi – nem mesmo o próprio Olavo. Por isso, a sua alternativa de ver a filosofia como uma disciplina da alma, que supere os impasses provocados pela modernidade (em especial, sobre a dubiedade da natureza e do significado do Ser, ambos massacrados pelo reducionismo da técnica liberal e do determinismo marxista). Seu grande intento é abolir a separação entre ideia e vida, reintegrando-as como uma unidade dentro da ordem divina.

Todos esses esforços filosóficos de Olavo surgem na seguinte sequência, durante o aprendizado no COF: (1) as relações entre a ciência e a filosofia, nas quais uma visão mais clara do discurso poético-simbólico fornece o diálogo frutífero entre os dois campos; (2) a relação entre poesia e filosofia, já esboçada em ensaio de mesmo nome, cuja divisão de funções é acentuada nos estudos do COF; (3) a teoria dos quatro discursos, explanada no livro Aristóteles em ‘Nova Perspectiva’ (1994), em que os discursos poético, retórico, dialético e lógico são absorvidos numa hierarquia e vistos como quatro modalidades de uma potência única; (4) a teoria dos gêneros literários, já detalhada em outro ensaio, “Os gêneros literários: seus fundamentos literários” (1993), e que fala justamente sobre a passagem de um discurso a outro, expostos na teoria anterior; (5) a astrocaracteologia, cujo trabalho é separar a linguagem poética da linguagem simbólica, mostrando a objetividade da linguagem astrológica; (6) a teoria da verdade como domínio, cuja meditação sobre o fato de que estamos sempre dentro da verdade, mas que também podemos escapar dela, e isso nos leva a uma outra solução – a do domínio da experiência do arrebatamento e do rapto cognitivo; (7) a teoria do sujeito da História, cuja recusa do abstrato nos leva a uma melhor compreensão da ação individual dentro do curso histórico; (8) a teoria do império, em que o conceito fundamental está descrito em detalhes em O Jardim das Aflições; (9) a teoria do poder, cuja reflexão é para determinar até que se influencia a ação de outras pessoas na História; (10) a teoria do direito, que, dentro do estudo do poder, é importantíssima para determinar quem tem direitos e quem tem privilégios, dentro do exercício deste mesmo poder; (11) a teoria da origem da autoridade, que tentará fazer a distinção de poder e de autoridade; (12) o princípio de autoria, cujo reconhecimento é ver que o ser humano é a verdadeira causa dos acontecimentos históricos, jamais os agentes abstratos; (13) o conceito de psique, que examina a interioridade do ser humano por meio do conflito constante que há entre autoridade e razão; (14) a contemplação amorosa, que seria o embrião do método da confissão estipulado como eixo do COF e uma forma da aceitação plena da realidade objetiva e imperfeita; (15) a teoria da paralaxe cognitiva e mentalidade revolucionária, que mostra em detalhes o resultado histórico da “desumanização do homem” que Olavo tenta impedir, motivado por esse problema moral que o obceca por anos.

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Assim, Olavo explicita que todo o propósito do COF “gira em torno da ideia de consciência”, sobretudo a da consciência moral porque ela seria o “elemento fundamental da integridade da personalidade”. Aqui, a confissão ajuda não só no exame de consciência, mas na ampliação do horizonte dela, culminando assim na tal da unidade de conhecimento que seria refletida na da consciência, cuja explicação é a seguinte: “buscamos também a unidade da nossa consciência, que assim se integra a si mesma e parte novamente na busca do conhecimento a partir de outro patamar, onde vai integrar mais unidade, integração, hierarquia, ordem e organicidade. Trata-se de um trajeto que só termina com a morte”.

Até aí, tudo de acordo com o que seria um verdadeiro curso de filosofia, apesar de ir na contramão do que pensa a academia, acostumada a um método mais técnico. Contudo, o movimento vertical de “subida-e-descida” já articulado em “A Dialética Simbólica” volta, alegando que, mesmo com a integração da consciência, o critério obtido será “refeito várias vezes”. Pois, apesar de não terem uma profissão estritamente intelectual, os alunos do COF têm uma “responsabilidade cognitiva” e, por isso mesmo, não estão dotados de ter “o direito de se esconder atrás de uma profissão, nem podem pedir resguardo na falta de ambição em serem filósofos ou intelectuais, para assim poderem dirigir as suas vidas segundo os critérios usuais do seu meio. Se fizerem isso, tudo o que aprenderem aqui será perdido rapidamente”.

Logo, para não retornarem ao estado psíquico de insegurança na qual se encontravam antes de entrarem no COF, esses mesmos alunos têm, além da responsabilidade individual, “a responsabilidade coletiva de formar uma nova intelectualidade”. É óbvio que a “função principal” dessa intelectualidade “não é a tomada de poder e nem a participação na vida política, mas também não é recolher-se no tratamento de assuntos apolíticos e etéreos. A função da intelectualidade é criar a atmosfera geral da cultura, posicionando-se numa camada que pode julgar, em termos morais e sociais, tudo o que se passa na sociedade, ainda que não tenha poder para impor decisões”. (grifos meus)

Na teoria, parece que estamos lidando com uma casta espiritual-intelectual que reformará a sociedade; na prática, o que estamos examinando é uma verdadeira polícia do pensamento que, estruturada como se fosse uma “teia hierárquica”, substituiria os ativistas políticos de esquerda e as corporações fossilizadas do establishment midiático, articulando-se em um número reduzido – digamos, cerca de cem pessoas –, crentes de que possuem a “verdadeira consciência de si mesmas, produzindo material para criar uma outra hegemonia e sanear a vida intelectual, que iria refluir para todos os domínios da sociedade”. (grifos meus)

Olavo deixa cristalino que “quem tenha aprendido alguma coisa no Curso Online de Filosofia já tem esta incumbência, ainda que não o perceba, e mesmo que tenha de articular isto com o voto de abstinência em matéria de opinião”. Esta última observação é marcadamente irônica, pois ninguém pode dar uma opinião sobre algo – exceto, é claro, o próprio professor. E por que isto acontece? Porque, inspirado pelo livro ‘A Vida Intelectual’, de A.D. Sertillanges, Olavo de Carvalho vende a ideia para seus alunos de que “uma nova intelectualidade é como um apostolado, composta de pessoas que reorganizaram toda a sua vida (mesmo que isto obrigue a deixar de ter negócios com o Estado) para poder agir com consciência dos acontecimentos, das forças históricas em movimento e do que é possível fazer para minimizar os efeitos nefastos”.

De novo, temos aqui a vertente esotérica, aquela que afirma que o conhecimento filosófico só pode existir entre alguns eleitos, capazes de entender que “o mundo do estudo é uma sucessão de estudos e aberturas que não termina mais […]. À medida que formos progredindo, teremos experiências com mais densidade e saberemos muito mais coisas do que aquelas que conseguimos comunicar, e que só podem ser compreendidas por quem tenha um nível equivalente de consciência. Isto vai limitar bastante o mundo de pessoas que podem ser nossos amigos, porque serão cada vez menos aqueles capacitados para um verdadeiro intercâmbio”. A noção de ser alguém realmente especial se intensifica pela sensibilidade de viver “num ambiente de guerra cultural”, no qual “é importante saber como se dá o processo em que certas ideias se tornam dominantes numa sociedade”. Daqui surge o importante conceito de hegemonia cultural, cujo processo, segundo Olavo,

“[é como] certas ideias se impregnam por toda a sociedade até quase a um nível subconsciente, e todos acabam pensando em consonância mesmo sem perceberem (Antonio Gramsci dá à hegemonia outro sentido, o de dominação de uma classe por outra). A palavra ‘revolução’ é um bom exemplo do que é a hegemonia cultural, devido ao seu uso disseminado em todas as áreas, sempre na base de uma falsa analogia: ou com as revoluções dos astros ou com uma mudança/ novidade repentina e auspiciosa. A revolução dos corpos astrais consiste nestes sempre voltarem aos mesmos lugares, pelo que não há novidade alguma, ao ponto de podermos calcular as trajetórias dos planetas com milênios de antecedência. Por outro lado, as revoluções sociais só aparentemente são repentinas, antes sendo processos altamente complexos e demorados, e só quando irrompem parecem auspiciosos, mas logo vira uma coisa macabra, mesmo para muitos dos seus entusiastas, que acabam por ser massacrados. Por mais erradas que sejam estas analogias, a palavra ‘revolução’ continua a ser usada com um sentido positivo até mesmo pelos seus adversários, por exemplo, há muitos cristãos que consideram uma revolução”. 

O COF surgiria justamente para resolver esse problema da linguagem contaminada pela hegemonia cultural, que não se origina somente com Gramsci, mas é um processo que permeia toda a modernidade, dando uma “aura de rigor” no qual há somente “irracionalidade, mentira, ocultação proposital, propaganda, em suma, um conjunto de coisas que constituem a própria guerra cultural”. E, por causa disso, os alunos do Curso Online de Filosofia precisam ter

“o entendimento do conjunto do processo e saber o que está realmente em jogo, algo que faltou aos representantes da cultura tradicional. A aquisição do panorama global – que nos permite fazer previsões históricas e ter uma noção do que devemos fazer – implica uma vida de sínteses parciais erradas, que terão que sempre que se refazer. Isto parece conduzir a uma perspectiva niilista, mas nunca poderemos nos apegar a uma crença humana, apenas podemos acreditar no Espírito Santo, independentemente de qual seja a nossa religião. Iremos abandonar as nossas crenças inúmeras vezes, até que chegue a hora em que já não somos nós que fazemos a síntese, mas o próprio Espírito, e aí veremos as coisas como elas são”. (grifos meus) 

O que era para ser uma comunidade de estudos tornou-se depois uma “teia hierárquica”, cuja meta é influenciar espiritualmente os eventos políticos de uma nação, igual a uma casta – e agora passa a ter o senso de missão de que é uma espécie de corpus mysticum, no qual cada participante será análogo a um fiel que pode finalmente perceber a realidade em toda a sua nudez. E quem seria o intermediário de tudo isso? Olavo de Carvalho, é claro, que, inspirado na pessoa de Sócrates, afirma logo no início do curso que, “mesmo quando o aluno supera o mestre, ele sabe de onde veio e a quem ‘tudo’ deve”, e, ao tentar “cortar o cordão umbilical”, na hora de “confrontá-lo”, é igual ao “adolescente” que não superou os desafios desta idade e “depois tenta lançá-los no ‘lugar’ errado”.

Projeto de poder

A “ilusão do conhecimento” para quem pratica todos os requisitos exigidos pelo COF surge de dois pontos. O primeiro – e o mais óbvio, após analisarmos a obra de Olavo de Carvalho – é que o Curso Online de Filosofia é nada mais, nada menos que uma grande manipulação da consciência dos seus alunos, com o uso deformado e instrumentalizado da “imaginação mediadora”, de acordo com o método da analogia apresentado em “A Dialética Simbólica”.

E o segundo – que cria enfim as condições para a existência do primeiro ponto – é que a verdadeira unidade na filosofia de Olavo não é a da unidade do conhecimento na unidade da consciência (e vice-versa), como o próprio alega de forma obsessiva, mas sim a unidade do controle.

Não é por acaso que o pensamento dele abrange várias áreas do conhecimento, que vão da epistemologia até a ética. A princípio, isso seria a função própria de quem pratica a filosofia até suas últimas consequências. Mas há, aqui, uma diferença essencial: conforme foi observado por Benedito Nunes, as filosofias feitas por Platão, Aristóteles, Plotino e Sto. Tomás, por exemplo, são o resultado de um momento histórico no qual o impasse intrínseco à empreitada da modernidade ainda não acontecera; já as filosofias de um Spinoza, de um Hobbes, de um Hegel e especialmente de um Heidegger se alimentam continuamente deste impasse, deste questionamento sobre a natureza e o significado do Ser, a qual o pensamento de Olavo de Carvalho, por mais que seja o seu desejo de não fazer parte deste problema, só pode ser compreendido a partir dele.

E aqui tocamos num ponto doloroso nas perguntas que estamos fazendo: até que ponto esse pensador tem consciência de que ele faz parte deste mesmo ambiente intelectual? Será que a sua recusa de ser um dos participantes deste impasse não significa nada mais, nada menos que uma indulgência? Afinal, não se pode dizer que alguém como Olavo, dotado de uma personalidade titânica, de nítido caráter carismático para muitos dos seus alunos, sofra de estupidez ou seja um praticante contumaz da desonestidade – mas também não seria um exagero afirmar que ele mesmo é possuído por uma força que o faz acreditar piamente que escaparia desse impasse e da própria falácia que construiu no núcleo da sua obra.

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Essa força só é apreendida se observarmos o que Olavo conseguiu construir não no mundo meramente intelectual, mas sobretudo no mundo real. E é evidente que tal possessão é a experiência de se ter uma certeza sobre o sentido da existência humana e, quiçá, da própria História, a ser transfigurada mais cedo ou mais tarde pelo “Espírito que ajudará os eleitos a verem as coisas como elas são”.

O que Olavo propõe, usando de todo um vocabulário metafísico ou religioso – e com a intenção de lutar contra as hidras do globalismo, da guerra cultural e da hegemonia de esquerda –, é controlar a angústia típica de quem vive a incerteza existencial e não quer admitir, seja para si mesmo, seja para os outros (principalmente se forem seus alunos), que a vivência da fé, segundo a definição de Hebreus 11:1, não é criar uma fidelidade ou ter um hábito que desenvolva o intelecto para compreender a realidade, mas sim suportar, com alguma resignação, a frágil ordem do ser que ocorre quando a alma finalmente se abre em direção ao Deus transcendente, naquele estado quase insuportável na qual a vida espiritual extrai suas melhores virtudes nos períodos de espera, de aridez e tédio, de contrição e arrependimento, de esquecimento e esperança – o que Eric Voegelin chama de “os chamados silenciosos do amor e da graça” e os quais nos faz temer pela perda deles ao reconhecermos que a conquista da certeza é, se for eficaz, também uma impossibilidade.

Já vimos antes que Olavo reconhece esta tensão, mas se recolhe dela por meio da unidade de controle inerente ao seu pensamento – e daí vem o fato de que o seu “esboço de sistema de Filosofia” abranger tantas áreas de reflexão.

Ele quer dominar tudo o que a filosofia lhe deu e tudo o que a realidade pode lhe dar – desde discursos políticos, referências bibliográficas, falas de alunos, declarações de inimigos, ditos de amigos, numa lista que pode ir ao infinito, e que começaria com a sua leitura a lá Charles Kinbote de autores como Voegelin, Bernard Lonergan, Xavier Zubiri, Mario Ferreira dos Santos, Bruno Tolentino, Christopher Lasch, Rosenstock-Huessy, Husserl, Kant, Guénon, entre tantos outros, até terminar no last but not least de querer se integrar a um movimento político que chegou ao poder federal – seja o bolsonarismo, seja qualquer outro que exista em “determinadas circunstâncias” – para exercer não só a sua influência, como principalmente estruturar, com a ajuda do Estado, a sua “teia hierárquica” que solidificará o projeto do COF de maneira permanente.

Por mais que não queiramos perceber isso, a unidade do controle presente em um pensamento filosófico é a característica marcante do intelectual que sofre da doença da pleonexia. E, com Olavo, cada manifestação pública sua evidencia o anseio quase desesperado de que as suas ideias e as suas palavras alterem não só a realidade pragmática dos eventos cotidianos, mas a própria estrutura do real. É um claro projeto de poder – com toques místicos, é certo, mas que jamais oculta a sua libido dominandi.

O problema é que a retórica empregada por Olavo – em conjunto com o manejo magistral da analogia como uma forma de pensar que conecta os diversos níveis da realidade – cria nas outras pessoas que pretendem fazer parte desta nova casta intelectual, direta ou indiretamente, uma espécie de feitiço que aprisiona a consciência de cada um. Nesta realidade alternativa, todos se tornam os anti-indivíduos detectados por Michael Oakeshott e que criarão uma nova “revolta das elites” na nossa sociedade.

Totalitarismo cultural

Este encanto subliminar só poderia ser articulado por um filósofo que condensasse, dentro da unidade de controle da sua obra, todas as virtudes e todos os vícios da história intelectual brasileira. E a Providência resolveu dar este lugar justamente para Olavo de Carvalho.

Tudo isso é consequência radical do “esteticismo” que impera na cultura brasileira e que, infelizmente, poucos se dão conta que exista em cada uma das ações deles, em cada um dos seus pensamentos. Este fenômeno bizarro foi analisado brilhantemente por Mario Vieira de Mello em seu livro ‘Desenvolvimento e Cultura’ (1963), quando ele mostra que a alma brasileira — este bicho estranho que muitos intelectuais da nossa raça tentam reduzi-lo ao extremo, independentemente de serem da direita ou da esquerda — não consegue encarar a existência como um problema moral, em que o Bem e o Mal são objetivos, dependentes de uma escolha singular, mas sim como uma questão estética, igual a uma obra de arte em que você pode modificar à vontade, mesmo que isso ocorra às custas dos outros ou até de si mesmo, chegando ao ponto de dividir ações que antes seriam indissociáveis (como é o caso de quem pratica a poesia e de quem vive a filosofia).

Isto aconteceu por causa dos anos de influência portuguesa da Ordem dos Jesuítas em um ensino que privilegiava a retórica jurídica em vez da observação desapaixonada da realidade que marcou Paris e Oxford. Graças a ela, as universidades daqui se transformaram em um palco para a exatidão dos estudos e o adorno das palavras. Esta foi a educação formal que boa parte da elite intelectual lusitana teve no Colégio das Artes, dominado pelos jesuítas desde 1555, e que era a passagem dos estudos menores pela qual depois iam à Universidade de Coimbra, cujo controle também estava na mão da Ordem.

Este tipo de educação retirava qualquer espécie de componente ético do ensinamento dos filósofos clássicos, como Aristóteles, Santo Tomás de Aquino ou Santo Agostinho, escolhendo apenas a casca dos conceitos e os raciocínios que não tinham nenhuma conexão com uma realidade vital. Era um tipo de paideia ao avesso que agradaria somente à sensibilidade do “anti-indivíduo”, na qual as disputas filosóficas serviriam apenas para treinar um intelecto aparentemente autossuficiente.

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Depois da expulsão dos jesuítas de Portugal, promulgada pelo Marques de Pombal, em 1759, esperava-se uma mudança de mentalidade no Colégio das Artes e na Universidade de Coimbra, mas nada disso aconteceu. A atração pelo ornamento se intensificou, mudando apenas do interesse humanístico para o estudo aprofundado da ciência como uma aplicação prática, e que finalmente colocaria Portugal no círculo dos eminentes filósofos iluministas da França.

Em termos culturais, a França foi a principal vitoriosa com a expulsão dos jesuítas na formação educacional portuguesa, porque ocorreu um vácuo que deixou tanto a Metrópole como a Colônia sem nenhum norte intelectual a ser seguido. Este vazio provocado pela saída da Ordem de Inácio de Loyola permitiu que a cultura francesa surgisse, no início do século XIX, como a orientação definitiva nos assuntos do pensamento.

Contudo, e aqui se trata especificamente do que aconteceu no Brasil a partir deste momento, os portugueses e os brasileiros não decidiram pela França de Montaigne e Rabelais, que tinham consciência de uma realidade mais concreta, muito menos pela França de Descartes e Voltaire, que, por mais que fossem obcecados com o “monismo da razão”, ainda assim preocupavam-se com uma perspectiva metafísica (mesmo que fosse numa vertente negativa) no fundamento do seu questionamento filosófico. Não, a França escolhida foi a do romantismo e suas variantes – a da Inglaterra, com a morbidez de Lord Byron, e a alemã, com o idealismo totalizante de Schiller, Novalis e do primeiro Hölderlin.

No caso específico do Brasil, a França foi alçada a uma espécie de “antepassado espiritual”, cortando de vez seus vínculos com Portugal, em um movimento com claras tendências políticas que tinha muito a ver com a nossa independência promulgada em 1822. Mas o vírus da retórica persistia – e por uma questão de simples afinidade. Pois, se o Romantismo francês foi uma reação contra o “monismo da razão”, no qual o pensamento iluminista insistia como a única possibilidade de entender a realidade, a ênfase caía na sensibilidade deturpada do “anti-indivíduo” que tinha de se virar neste mundo repleto de traições, jogando como única arma a sua emoção particular contra a racionalidade imparcial, revelada agora como um sonho que despertava os monstros presos na nossa vida interior, igual ao famoso desenho de Goya.

A união inusitada do sentimentalismo do “anti-indivíduo” com o amor pela casca das palavras vazias da sensibilidade portuguesa, corrompido pela Contrarreforma jesuítica, somada ao “triunfo do eu subjetivo sobre o mundo objetivo, um desejo de espaços livres, uma nostalgia de terras distantes e de épocas longínquas” do brasileiro (nas palavras certeiras de Mario Vieira de Mello), criou o pesadelo da retórica que, no fim, dominou a própria descrição do mundo. Esta fantasmagoria tornou-se não só um instrumento para que o intelectual convencesse o seu público de que os seus sentimentos eram os melhores e os mais nobres, mas também um instrumento de poder porque, graças às suas habilidades puramente técnicas, ele provaria finalmente que tinha todas as condições necessárias para mudar o país que, antes de qualquer coisa, deveria avançar no progresso e na libertação de uma nacionalidade ainda incipiente.

A obra de Olavo de Carvalho pretende ir na contramão desta avalanche histórica que contaminou as nossas mentes. Contudo, mesmo que não admita para si ou para os seus alunos, ele não conseguiu nada disso. O que aconteceu de fato é que ele se misturou ainda mais no clima de totalitarismo cultural que existe no país desde o movimento da Semana de Arte Moderna de 1922, com suas piruetas ideológicas que até hoje causam confusão entre nós, como, por exemplo, o fio de Ariadne que liga as tendências políticas da fase final da Primeira República com as da mentalidade modernista.

Se antes havia o republicanismo jacobino-positivista (o “castilhismo” que influenciaria a juventude de Getúlio Vargas), o republicanismo conservador (o discurso oficial da República), o republicanismo liberal-progressista (defendido pela oratória empolada de Rui Barbosa), o ruralismo autoritário de Alberto Torres e o integrismo católico de Jackson de Figueiredo, agora, com uma mudança de verbo ali, outra acolá, tínhamos os artistas modernos, sempre com uma índole de “evolução socializante” (Mário de Andrade), ex-conservadores que bandearam para o anarquismo (Oswald de Andrade), os tradicionalistas como Gilberto Freyre e os protofascistas como Plínio Salgado.

A retórica muda o sentido das palavras, mas a intenção permanece a mesma: tanto ontem como hoje, o Brasil se divide entre um “nacionalismo da ordem” e um “nacionalismo da desordem” — e a inteligência do país, desintegrada entre a direita e a esquerda repletas de “anti-indivíduos”, se esforça para manter a todo custo a expectativa de que somente um “poeta”, um “líder providencial” poderia realizar a integração plena entre o Estado e o resto da sociedade (na época do modernismo, era Vargas; na década de 1990-2000, era Fernando Henrique Cardoso ou Lula; atualmente, é Jair Bolsonaro).

O resultado prático desse totalitarismo cultural na nossa história se reflete numa idolatria pela soberania popular – que não tem nada a ver com o “populismo-conservador” defendido por um Christopher Lasch, mas que seria curiosamente apoiada por Olavo de Carvalho desde as revoltas do “novo tempo do mundo”, iniciadas em 2013. Ela foi defendida tanto pela ditadura militar como pelos manifestantes das Diretas-Já em 1984, criadores da “tirania da maioria” que hoje infestam as universidades, as redações jornalísticas e os partidos políticos.

Usando dessa idolatria psíquica para se apoiar no Estado e assim estruturar por completo a sua “teia hierárquica”, o projeto pedagógico de Olavo é vendido como a solução a este ambiente deletério. Mas a insistência na sua sensibilidade de “mente naufragada” apenas o ajuda no mergulho de um verdadeiro projeto totalitário pois, ao querer aplicar a sua reforma intelectual, moral e espiritual na educação do homem comum brasileiro, na verdade ele pratica a “tirania da intelligentsia”, a mesma espalhada em todas as profissões do globo terrestre e que tenta controlar o ser humano desde os primórdios da modernidade, justamente quando nasce o “anti-indivíduo”.

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Incapaz de controlar as suas paixões e reconhecer quais são as suas virtudes, este tipo de personalidade prefere ficar dependente de um mestre que, ciente do seu poder carismático, faz seus estudantes imaginarem que ele possui uma série de ensinamentos os quais apenas poucos têm acesso. Sem terem a mínima noção deste problema existencial enraizado no coração de cada um – o verdadeiro pecado original que danifica qualquer valor que o intelecto possa ter –, eles passam a se recusar a admitir que o totalitarismo cultural criado pela pretensa comunidade deles é muito pior do que qualquer governo ditatorial. Trata-se de uma forma muito precisa e técnica de anti-intelectualismo, no desejo de alterar o que reconhecemos como o ser humano, modificando o que sempre se soube dele por meio de relatos históricos e literários, em um discurso político (com uma aparência filosófica ou religiosa, como o que acontece nas aulas do COF) que resolveria todos os nossos problemas, porque entraram na devoção peculiar de quem acabou de receber uma iluminação celestial de que, como diria Vacláv Havel, o centro do poder é igual ao centro da verdade.

Em termos políticos, Olavo aproveitou-se do “quietismo” de uma direita que se pretendia equilibrada diante de uma esquerda nitidamente totalitária para manipular a “imaginação mediadora” (leia-se: a imaginação moral) dos seus alunos e assim criar uma nova narrativa na qual ele seria nada mais, nada menos que o Alfa e Ômega da cultura brasileira. Em um sentido puramente intelectual, ele foi vitorioso, mas não no mundo real, onde suas previsões concretas simplesmente deram com os burros n´água, provando assim que jamais respeitou a dinâmica imprevisível da conduta humana, na crença de que tudo estava sob o controle das suas ideias.

Para ficar no exemplo menos importante, Olavo, coerente na sua fúria de mente naufragada de que o establishment nacional é corrompido e corruptor, passou a defender a desmoralização do sistema político por inteiro, defendendo a sua reconstrução a partir do zero. Além disso, foi radicalmente contra as investidas prudentes do Movimento Brasil Livre (MBL) e da advogada Janaína Paschoal de procurarem uma negociação institucional para resolver o imbróglio do impeachment de Dilma Rousseff. Ele escreveu literalmente que o impeachment não passava de “uma manobra para a salvação da classe política” e a manutenção da esquerda no poder. Como se isso não bastasse, o filósofo não parava de atacar vários membros do MBL – entre eles, o deputado federal eleito Kim Kataguiri, que no passado foi um grande fã do seu trabalho – por terem se lançado na política institucional, especialmente depois da eleição de sete vereadores em 2016 (um dos vencedores foi Fernando Holiday). Seu argumento foi que a chamada “nova direita” (cuja criação ele diz – e depois desdiz, naquela dialética típica de quem adora confundir a cabeça das pessoas – que não é culpa dele) deveria se concentrar na ocupação de espaços “nas escolas, na igreja, nas sociedades de amigos”, e não no Estado. Conforme o relato da jornalista Consuelo Dieguez, publicado na revista ‘Piauí’ de janeiro deste ano, “à maneira gramsciana, Carvalho privilegiava a busca de hegemonia no âmbito da sociedade civil”, mas, curiosamente, quando as eleições de 2018 mostraram o seu resultado nas urnas, com a vitória de Jair Bolsonaro por 55 milhões de votos, ele jamais reclamou da vitória de nove alunos do COF quando eles se tornaram deputados – incluindo aí, numa lista posterior e mais ampla, o mesmo Kataguiri antes tão criticado.

Esta contradição concreta entre o que Olavo escreve e o que ele pratica na vida real indica uma fissura muito mais profunda do que podemos imaginar. Não é apenas ficar entre o “nacionalismo da ordem” e o “nacionalismo da desordem”, salpicado com toques de uma caricatura de populismo – e que, no fim, é o mesmo tipo de ambiente cultural que o permitiu prever com exatidão todas as movimentações futuras do Partido dos Trabalhadores (e daí vem o fascínio que comove os incautos). Estamos falando de algo mais sério e que acompanha o drama da razão que nos consome desde os primeiros tempos da filosofia, quando Platão e Aristóteles já entendiam que toda a decisão política tem um caráter intrinsecamente trágico.

Ruínas Circulares
Nos dois artigos anteriores que fazem parte desta série, publicados anteriormente na Gazeta do Povo – e que são essenciais para entender o que está em jogo quando meditamos sobre a obra de Olavo de Carvalho –, argumentou-se que a poesia, a filosofia e a política só vencerão suas respectivas rivalidades se elas encontrarem sua unidade de significado e de significante na tragédia inerente a cada escolha que afeta o Bem Comum da sociedade. Além disso, esta visão também articulava uma “melancolia” toda própria na imaginação da esquerda (em especial, a brasileira) que, enrodilhada em um impasse desde as vitórias presidenciais de Donald Trump e Jair Bolsonaro, buscava reorganizar a realidade em um ritmo extremamente acelerado, capaz de diminuir as expectativas decorrentes do seu fracasso ao não compreender o atual horizonte de consciência.

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A importância de Olavo e seu impacto no tecido social do Brasil não se deve apenas às implicações existenciais dos seus ensinamentos, mas sobretudo porque a sua presença indica que ele é a encruzilhada encarnada entre a tragédia do filósofo que se envolve com as artes da política e o fato de que a superação da filosofia tão ansiada por ele é o resultado do que ocorre quando se vive aquilo que Paulo Eduardo Arantes chama de “o novo tempo do mundo”.

Ao procurar influenciar a decisão política correta na história brasileira, Olavo perde a chance de ser, no seu papel de filósofo, a nomos empsychos – a lei animada que orienta as múltiplas tensões que ocorrem na vida espiritual de um país quando estamos envolvidos na dinâmica do eros filosófico. Mas, ao mesmo tempo, ele não pode escapar deste papel. É de supor que, no fundo, o que aconteceu com o teórico da “contemplação amorosa” é que, na ânsia para vencer a luta espiritual dentro da sua alma, ele ficou completamente dilacerado entre as forças subterrâneas do Leviatã e do Behemot denunciadas logo na abertura de ‘O Imbecil Coletivo’.

Sua derrota é a derrota de todos nós, pois, como brasileiros, somos igualmente arrastados pela força insana de um eros filosófico que, no fim, conforme escreveu Mark Lilla em outro livro soberbo (’A Mente Imprudente’), mostra que “o filósofo também conhece a loucura do amor, o amor da sabedoria, mas não abre mão da própria alma em nome dele; mantém-se no controle, governando a si mesmo. O homem tirânico é a imagem invertida do filósofo: ele não é o governante das próprias aspirações e desejos, e sim um homem possuído pela loucura do amor, escravo de suas aspirações e desejos, e não seu governante”. (grifos meus)

É por esse motivo que não adianta nada chamar Olavo de Carvalho pelos clichês reducionistas proferidos a mancheias pela imprensa ou pela academia – e que vão desde “guru do bolsonarismo”, “líder de seita”, “ideólogo da Nova Direita”, passando por “astrólogo”, “picareta reacionário”, até chegar no risível “filósofo sem diploma”.

Ele tem a sua importância histórica já garantida, porém não do modo como seus detratores ou seus defensores querem. Temos aqui um homem que realmente ouviu o chamado da filosofia e sentiu o seu apelo. Contudo, por algum motivo desconhecido (e que não nos cabe julgar), a “pomba escura” (dark dove) que Eliot viu nas ruínas de Londres na Segunda Guerra Mundial, o “espectro da heresia” que visitou Bruno Tolentino sob a máscara do encapotado Charles Baudelaire e o fogo pálido da analogia tomaram-no de assalto, pervertendo completamente o eros filosófico que poderia ter sido semeado na sua obra e no resto da cultura brasileira.

A constatação desta tristeza não o exime de modo algum nas consequências dos seus ensinamentos, especialmente entre seus alunos ou entre os membros da elite política que julgam entender suas lições. Afinal, “no eros começam as responsabilidades” – e Bruno Tolentino já observava que, “sob a roupagem ilustre de algumas das mais sofisticadas construções da mente humana” – e este é precisamente o caso da obra filosófica de Olavo de Carvalho – esconde-se há tempos, “não em seu amor ao saber (philo-sophia), mas em seu ódio a esse saber (phobo-sophia), que a ultrapassa de fato e de natura, […], sempre a mesma e antiquíssima modalidade do absurdo: a absurda vontade do homem do homem enfermo de orgulho, e a sede de um ‘saber’ que desminta ou, melhor ainda, substitua a divina sabedoria”.

Desse modo, fica evidente que o filosofema sobre o qual Olavo tanto se baseia para dar coerência em seus pensamentos é apenas um recurso retórico, uma casuística, acentuado pelo abuso de uma analogia que busca justificar essa cisão entre o que acontece no mundo das ideias e no mundo real. Neste hiato, ele se separa das consequências das suas ações – e joga a culpa para aquela pessoa que ainda não entendeu que, para viver a sua filosofia, é obrigado a imergir “num certo modo de ver as coisas, que é transportável para fora deles e participável por quem quer que, saltando sobre os textos, faça esse seu modo de ver, integrando-o no seu próprio”. Temos aqui o exemplo do eros tirânico que habita na alma de um filósofo – e o resultado disso é nada mais, nada menos, nas palavras de George Steiner em ‘Lições dos Mestres’, que a derradeira solidão:

“O verdadeiro magistério pode ser um empreendimento terrivelmente perigoso. O Mestre tem em suas mãos algo muito íntimo de seus alunos: a matéria frágil e inflamável de suas possibilidades. Ele toca com as mãos no que concebemos como alma ou as raízes do ser, toque esse do qual a sedução erótica é a versão menor, ainda que metafísica. Ensinar sem grave apreensão, sem uma reverência inquietante pelos riscos envolvidos, é uma frivolidade. Fazê-lo sem se preocupar com quais podem ser as consequências individuais e sociais é cegueira. Ensinar com grandiosidade é despertar dúvidas no aluno, é treiná-lo para divergir. É preparar o discípulo para partir (‘Agora deixem-me’, ordena Zaratustra). O verdadeiro Mestre deve, no final, estar só”. (grifos meus) 

Entretanto, o filosofema de Olavo de Carvalho não faz o aluno abandonar o professor em nenhum momento. Quer mantê-lo em uma coleira até o final dos tempos. E aqui nos deparamos com a grande ironia: a de que na tentativa de superar o impasse da filosofia na modernidade, por meio de um ambicioso projeto idiossincrático, Olavo corrompeu não só a sua própria inteligência, como a dos outros ao seu redor, pois sua intenção primordial jamais foi a disputa do poder político, mas sim, como o próprio descreve sobre um dos seus grandes modelos – René Guénon – no texto “As Garras da Esfinge” (2017), “algo que está infinitamente acima disso e do qual […] o poder político não é senão um reflexo secundário, quase desprezível” – no caso, a disputa da autoridade espiritual sobre as consciências dos “anti-indivíduos” que somos todos nós.

É a filotirania em estado puro – o amor pelo desejo tirânico, personificado ora num líder político, ora em um mestre que guie nossas almas. Com isso, a obra de Olavo de Carvalho não passa de um conjunto de textos que, sem uma unidade esculpida na “lição de modelagem”, pratica a “indiferença à graça,/ na pompa e na soberba/ dos sonhos do intelecto/ que se presume autônomo”.

É algo semelhante ao famoso conto de Jorge Luis Borges, “As Ruínas Circulares”, no qual um mago misterioso se encontra em um local cheio de escombros para construir o homem perfeito e, entre um sonho visionário e outro, começa a conversar com “nuvens de alunos taciturnos”, todos ouvintes ávidos de “lições de anatomia, de cosmografia, de magia: os rostos escutavam com ansiedade e procuravam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria um deles da sua condição de vã aparência e o introduziria no mundo real. Durante o sonho e a vigília, o homem considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava engabelar pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Buscava uma alma que merecesse participar do universo”.

No final da história, a empreitada do mago fracassa, mesmo com a construção do homem perfeito que se revela não só como um sonho do feiticeiro, mas também – numa típica reviravolta borgiana – como a mesma pessoa que sonhava com o seu criador. Esta é a imagem recorrente para representar o falhanço de Olavo, pois o que temos aqui é um pensamento que não para de girar em falso, em que o filosofema é a raiz de uma separação que jamais existiu na palaia diafora entre poesia e filosofia, a “velha discórdia” terminada apenas com a união delas na tragédia. Esta divisão artificial é apenas o resultado de uma anomalia típica de um filósofo que incorpora (e tenta combater, sem sucesso) a cultura do esteticismo que sempre existiu no Brasil no centro da sua teoria, talvez ciente de que este recurso é a única forma que conseguiu para dar alguma coerência aos seus “rascunhos do ser”.

Na impossibilidade de se comportar como um estadista, alguém que pensa na sociedade onde vive igual a um grande drama em que cada um tem seu papel no funcionamento da cidade ou do Estado que governa, Olavo poderia ter sido o artista que comanda e que educa, que pensa e reflete, que age e reage de acordo com o que está dentro da sua nomos interior, mostrando aos outros a sua incorporação como algo vivo no tecido comunitário e não como uma mera regra a ser corrompida conforme as pressões da existência.

Quem perde isso não somos apenas nós, como verdadeiros indivíduos, ou então um país. É a filosofia como um todo. Ao provarem que o diagnóstico de Benedito Nunes sempre esteve correto, as ruínas circulares de Olavo de Carvalho passam a sofrer do mesmo mal do pensamento de Heidegger, ambos caindo nas malhas secretas que o Ser lhes preparou. A diferença é que, se o brasileiro precisa mergulhar nesta “soberba do intelecto”, o filósofo alemão reconhece que a “lógica está rodeada por um logos primevo, que a linguagem condensa e que os poetas reativam, liberando o mesmo fundo que à ontologia fundamental cabe mostrar, seja pela palavra, seja pelo silêncio. O silêncio, como ausência da linguagem, para expressar o sentido do Ser, é o momento da espera”.

Na busca trágica pela decisão política correta, o autor de ‘A Filosofia e Seu Inverso’ (2012) não quis esperar, nem ouvir o silêncio que ganharia se insistisse na sua liberdade interior – e na dos seus alunos. Por isso, recusou a tragédia que o tornaria de fato o grande filósofo que sempre quis ser. Seus últimos anos são como a anedota da raposa contada por ninguém menos que Hannah Arendt:

“Era uma vez uma raposa tão carente de astúcia que não só era constantemente apanhada em armadilhas como sequer era capaz de identificar a diferença entre uma armadilha e uma não armadilha. Construiu uma armadilha para ser sua toca. ‘Recebo tantas visitas na minha armadilha que me tornei a melhor de todas as raposas’. E também há uma certa verdade nisto: ninguém conhece melhor a natureza das armadilhas do que alguém que fica a vida inteira numa delas”. 

A obra de Olavo de Carvalho só pode ser contemplada com amor se a observarmos, logo no seu pórtico de entrada, com a ajuda do aviso dito por um grande moralista francês: Não podemos olhar fixamente nem o sol nem a morte. Essas palavras de La Rochefoucauld, o moralista a que nos referimos, valem por um resumo de tudo o que restou daquilo que conhecíamos como filosofia.

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pesquisador pela FGV-EAESP.


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